terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Adelson do Prado














































Pode ser um pintor naife mas a sua autenticidade comove-me. Há luz e cor, encanto e ternura na sua obra. Acompanhem-me na sua descoberta.

Mito e Tabu



Cada uma destas palavras tem vindo a ter o seu sentido modificado ao longo dos tempos passando para a linguagem corrente, mais propriamente, para a linguagem política e jornalística. Até aqui nada de grave. A Língua é assim mesmo; volúvel, recria-se em dinâmicas impossíveis de prever. A maioria das línguas latinas deriva do vernáculo que assimilaram as linguagens temporais e locais com o passar dos anos, com isso valorizaram-se e distinguiram-se do erudito latim.
A nossa Língua bebeu de muitas fontes, deu e recebeu contributos, o que faz dela, uma das Línguas mais ricas do mundo moderno.
Eu que gosto de brincar com as palavras e que sempre me entusiasmou esta forma de comunicação, tenho dificuldade em aceitar as opiniões dos puristas porque eles parecem desejar o imobilismo, a cristalização e isso provoca um desfasamento entre a realidade e apregoada pureza das suas origens.
Segundo a História e Arqueologia, em muitas culturas havia pelo menos duas línguas: a língua que a elite mais elevada utilizava entre si quer na forma oral, quer na forma escrita e, a língua com que o povo comunicava. Dessa forma, os estratos sociais vincadamente definidos eram detentores de códigos diferentes, sendo a língua um património próprio e distintivo de um grupo.
Hoje mesmo, subsistem linguajares, dialectos e variações linguísticas que nos direccionam de imediato para este ou para aquele grupo social, étnico ou regional.
Não me incomoda nada o vocabulário esotérico das diversas gerações de jovens, a juventude é um período demasiado fugaz para que nos preocupemos com isso! Logo que se integram na sociedade adulta, todos os jovens irreverentes ou não, são capazes de se adaptar ao discurso “oficial”da sua classe.
Também não me perturba a maneira como os fazedores de opinião pública (jornalistas, políticos, comentadores, entre outros…) ressuscitam vocábulos anteriormente eruditos e os lançam na linguagem de todos os dias. Claro que de início surge a estranheza, alguma dificuldade em perceber a nova roupagem dos seus significados, mas depois, todos acabamos por os utilizar sem quaisquer complexos.
No entanto, o que eu gosto mais, é a liberdade poética/científica dos neologismos. Eles surgem para preencher vazios e vêm geralmente para alegrar, espantar e provocar,
Venho com este discurso todo chamar a atenção de duas palavras ouvidas nos últimos dias com alguma persistência e que se despiram quase totalmente dos seus trajes iniciais: A primeira é mito.
Palavra que na sua origem designa uma parábola em linguagem simbólica que pretende explicar o inexplicável, justificando ou orientando os homens para o conhecimento social, científico e religioso que pertencem a uma determinada comunidade. Normalmente os transmissores dos mitos eram os homens mais sábios, mais velhos ou os que detinham o poder espiritual e temporal. Hoje a palavra mito tem uma simbologia diferente, quase se confunde com ídolo, aplica-se a tudo que se crê pouco real, usa-se para fugir às explicações menos cómodas, ou àqueles que se notabilizam em áreas que vão do futebol ao cinema. Ganhou duas vertentes e nenhuma delas tem a ver com o significado que ainda hoje vem escrito nos nossos velhos dicionários.
A outra é tabu. Acredito que esta palavra só tenha chegado ao nosso conhecimento depois de termos entrado em contacto com os povos aborígenes, pois tabu, é uma espécie de passaporte para a iniciação. A palavra ou o conceito proibido revelador de mistérios entre a divindade, o mundo dos mortos, os espíritos da natureza e o homem comum. Também aqui, só quem conhecia a essência do tabu ou a sua importância, era alguém com elevado estatuto sócio-religioso, como o xamã, o sacerdote, o monge de alta hierarquia, o chefe da tribo ou do clã.
Actualmente a palavra tabu é a porta fechada para uma conversa que não se quer ter, o travão para possíveis especulações e, muitas vezes, nem sequer quem a pronuncia, sabe exactamente o que dizer.
Estas duas palavras têm personalizado culturas, os seus valores e condutas, vale pois a pena, debruçarmo-nos sobre elas e reflectir se mudaram assim tanto, pois o senso comum diz-nos que apenas transferimos o “sagrado” que elas encerravam em si para outro “sagrado” bem mais material da nossa Era de brilhos sem luz interior.

Telmo, o marujo

A Ilha do Conhecimento (1ªparte)


Como não tinha quaisquer tarefas definidas e a quantidade de experiencias novas me haviam perturbado, comecei a ficar menos inquieto, deambulava pela Ilha do Ocaso sem grande entusiasmo, procurava castigar o meu corpo em caminhadas cada vez maiores e por trilhos mais difíceis. Era uma forma de não pensar, de afastar a angústia que me tomara desde a visita que fizera com Gisela.
Os Seguidores nem sempre podiam estar comigo, cada um tinha afazeres demasiado importantes para me incluírem, mas Hugo, o Mestre, apercebeu-se do meu ânimo e um dia veio ter comigo com a grande novidade.
- Telmo, meu rapaz, chegou a hora de mudares de vida! Tens que cuidar da tua educação. – Bateu-me amigavelmente no rosto e esperou a minha reacção.
Hugo, tinha uma idade bastante avançada, mas era um homem enérgico e optimista. O cabelo entre o uivo vivo e o branco descia em ondas pelas costas até às espáduas. Muito alto e seco como um pinheiro bravo, emanava energia mas também muita ponderação e sabedoria. Admirava-o tanto que ás vezes apetecia-me arrimar-me a ele para receber a sua força e conhecimento.
- E como vai ser isso? Quem ai ser o meu mestre? - Perguntei sinceramente interessado.
- Irás para a Ilha do Conhecimento, lá o teu corpo, a tua mente e o teu espírito aprenderão a crescer juntos. Terás, não um, mas vários mestres que te ajudarão nessa tarefa, mas ser-te-á dado um tutor que supervisionará as tuas aprendizagens te auxiliará a adaptar-te às rotinas e disciplina.
Por um lado estava feliz com a perspectiva de uma nova vida, mas por outro sentia um certo receio pelo desconhecido e por que queria verdadeiramente corresponder às expectativas que os Seguidores depositavam em mim.
Hugo, passou-me o eu braço sobre os meus ombros e animou-me garantindo que eu me sairia bem.
Nesse dia fui convidado a participar na refeição dos Seguidores para ter a oportunidade de receber alguns conselhos e despedir-me de todos eles.



domingo, 22 de fevereiro de 2009

Anúncio


Prometo voltar a escrever mais assiduamente mas por enquanto tenho estado a fazer de avó a tempo inteiro e a tratar de assuntos que uma boa chefe de família tem o dever de cumprir. Além disso este computador tem andado com problemas de saúde e o médico ainda não veio cá a casa. Não há serviço nacional de saúde para estes bichos de estimação!

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Vestida de uns sonhos limpos, calçada de asas...


Quando a luz do Sol me fez cócegas no nariz, teimei em fechar as pálpebras para terminar o meu sonho mas, o persistente raio de luz, abriu-me os braços e esticou-me o corpo…
Espreguicei-me e bocejei por fim. Inalei o ar fresco da manhã que entrou pela janela aberta do meu quarto, calcei os chinelos e saí dali…
Desfiz-me do suor da noite no chuveiro e deixei que os restos do sonho fossem engolidos pelo ralo.
Vesti um vestido leve de verão, volteei um pouco em frente do espelho do guarda-fatos e senti-me viva.
Esqueci-me de ligar o rádio porque a música era feita dos sons dos pássaros se ouviam e eles cobriram-me de bons augúrios.
Aceitei o convite do novo dia e calcei as asas partindo para a viagem sem rotas definidas.
Parti assim, vestida de uns sonhos limpos para integrar o Universo!

Vestida de uns sonhos limpos, calçada de asas...

Vestida de uns sonhos limpos, calçada de asas,
Na doce ingenuidade do pouco saber,
Esvoaçando por entre praças, ruas e casas,
Formosa e bela, vai menina, sem se perder…

Nadando nos vapores duma renda de aurora,
Perfumando-se de azul, ouro e púrpura
Banhando-se em as fantasias como outrora,
Reencontra nelas o seu rio de água pura.

Reflectindo o Sol e a Lua em seu redor
Qual princesa ou fada de um conto infantil,
Trauteia ainda os musicais versos de cor.

Vestida de sonhos limpos, cirandando, gentil
Murmura o embalo num cântico de amor,
Tingindo a noite de rosa, roxo e anil.

Telmo, o marujo

Olhar como Gisela (2º parte)

Primeiro, uma figura fluida, não se lhe percebendo feições pois, toda ela era cor onde as formas se adivinhavam apenas pela cintilação emanada de si. Espantei-me e perdi-me de mim porque me nasceu uma emoção que nunca sentira; era amor e doçura, liberdade e atracção, uma vontade de chorar e de rir sem saber por que razão! Deixei-me atrair para esse mar de ondas coloridas e embalei-me ao som de uma melodia estranha até cair numa espécie de sonho. Entrei num espaço onde nada me limitava, suspenso, flutuava naquele meio e interagia com a figura principal através de diversas luzes de um espectro de cor desconhecido e intenso. Não imagino sequer o tempo que demorei naquele limbo tão estranho mas, quando a consciência me acordou e me fez estremecer, fui atirado violentamente para o interior do meu corpo e acordei caído junto ao lago. Ainda tive tempo de ver as águas cobrirem aquele mundo qual cortinas brancas caindo sobre a liquidez das imagens. Sentia-me frágil, trémulo, tinha o meu rosto molhado de lágrimas e a garganta arranhada e seca.
Gisela estava junto de mim, nunca me abandonara, e dava-me a sua mão para me ajudar a erguer. Sorria, mas o seu sorriso não era de alegria, era antes de cumplicidade e também de compaixão.
Quando consegui falar perguntei-lhe porque me trouxera até ali e o que significava tudo aquilo. Disse-lhe ainda que depois de ter presenciado aquela maravilha, mais nada no mundo me pareceria belo, tudo para mim, a partir daquele dia, seria irremediavelmente comparado e tornar-se-ia grosseiro, incompleto e imperfeito. Até ela, a mulher da minha admiração!
- Apenas mostrei a tua e a minha pequenez perante aquilo que um dia poderemos ser se regarmos com esperança, virtude e amor toda a nossa vida. – Respondeu-me Gisela suavemente.
Compreendi que jamais seria feliz, a ignorância fazia o meu mundo acessível, depois do que vivera, percebia quão longínqua era a perfeição, desanimava, deixava cair os meus braços perante a grandeza da Obra! O esforço teria que ser eterno! E descobri também em mim a cobiça, o desejo de possuir parte da beleza transcendente que vislumbrara. Por isso voltei a chorar, num choro que me rompia por dentro, me magoava e me arrancava soluços e gemidos como nunca me acontecera.
A minha Seguidora, manteve-se serenamente a meu lado dizendo:
- Chora, Telmo, não esqueças que tudo é possível se acreditares, o teu espírito crescerá e saberás procurar a beleza que pretendes alcançar. De ti germinarão flores, as mais belas flores, que serão o retrato de ti mesmo. Tu, e só tu, poderás determinar a metamorfose da tua alma e descobrires a forma a dar-lhe. Não te envergonhes da cobiça que sentes em alcançar o que desejas, é legítimo, pois não é para possuir a materialidade, mas para adornar o teu espírito! Necessitas para isso de um amor infinito e incondicional, de desviar de ti os pensamentos mesquinhos. A Eternidade é um caminho e tu, nós, e todos os que existem neste processo de evolução, fazemos parte dela. E, é por essa estrada que avançamos e nos unimos, mesmo que os nossos passos nos pareçam curtos e lentos avançamos nessa via ascendente ao destino glorioso que nos espera.
Recolhi as palavras de Gisela no meu peito e saí com ela amparado ao seu ombro.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Palavras viajantes

Inimá de Paula
4. Rosa e amarelo, roxo e branco, pingos de cor no verde dos campos por onde passo.
Viagem de luzes e sombras que prometem imagens ao longo do olhar.
Sensação de dejá vu no fundo da minha razão. Sinto-me suspensa sobre elas.
O mundo que me recebeu não é suficiente para me prender, por isso, esvoaço no espaço da especulação.
É bom sentir-me assim, pairando sobre o mar das ideias e saber que posso mergulhar nele, inventar palavras para outros sentimentos.
É bom engolir a cor e dizer aqui o que o meu espírito se liberta e na forma de signos porque eles são também o contorno de mim mesma.
É bom tocar o presente na fracção de tempo que esta página ocupa porque depois dela, virá o futuro desenhado como um sorriso.
Amadeu de Sousa Cardoso
5. Sentada no muro que separa a certeza da interrogação, respiro o ar frio da manhã. E olho em volta…
O branco dourado da luz do dia recém começado fere-me um pouco a vista e o vento aguça-me os ouvidos. Mas mais importante do que ver e ouvir, é sentir também com os outros sentidos que possuo:
Os passos apressados dos madrugadores, ou os arrastados dos noctívagos, o ciciar de ninhos escondidos entre a folhagem, um cão ganindo, uma gata com cio.
Aroma de pedras húmidas, perfume de canteiros floridos, cheiro do café acabado de fazer.
A minha roupa tocando-me o corpo, o arrepio na minha pele.
O gosto da minha boca.
Para cá do mundo também há estradas e becos, cruzamentos de espera e rotundas…
Armadilhas e teias onde os incautos se perdem. Túneis que nos levam à luz.
Para lá do muro, trilhos ignorados, provavelmente bordejados de cardos e tojos onde os pés se magoarão, onde as dúvidas são feitas de encantos e sortilégios.
O vento empurra-me para lá!
O muro é estreito e baixo, vá lá, comprido… dá a volta ao universo que já conheço.
Não sou capaz de descer.
Não sei que lado escolher.
Dórdio Gomes
6. Contornando as costas de um país em cujas montanhas nascem rios que alimentam o mar que o semi-circunda, eu sinto-me essência do Império por descobrir. Sou uma habitante de um mundo de desejos por saciar!
Há uma imensidão para lá de mim, um espaço que me leva a todos os lugares que me abraçam quando chego.
Há um mistério denso que me recebe por entre ravinas e meandros e me acolhe no seu regaço morno.
Quase ilha, este país!
Quase ilha este rectângulo que semelha o rosto do continente! É por essa razão, que todos nós aqui, sentimos que tudo nos aperta e liberta, e eu vivo aqui!
Somos como pontos que pontilham as linhas das fronteiras, tão frágeis, tão débeis, mas ao mesmo tempo tão precisos.
País de viagem em que todos somos marinheiros, pelo menos através dos sonhos.
País de procura onde as respostas nos devolvem dúvidas.

E eu sou. Sou dele, inteiramente!
Porque nele me sustento como animal anfíbio. Porque são dele os sons que se reconhecem nas minhas palavras. Dele, apenas dele, é a areia das praias onde ouso estar viva.
País de partidas e chegadas, cais onde atracam fantasias.
Sou dele, como navio!
Ah estrela do novo dia, deixa-me vestir toda esta saudade que ele me dá!
Rubens
7. A horrífica intenção dos fados transformou no meu país, as avenidas em vielas de dor.
Um fado de palavras tão amargas, tão acres que o doce mel as não disfarça!
A culpa procura-se. Como se ela desbastasse as farpas da verdade!
E o medo? Esse mascara-se de obediência e simpatia.
O temor é tão escondido e sangrador que eu choro por dentro ainda, sem saber por que razão.
Apertam-se-me os músculos tensos no corpo, o sangue corrupia dentro de nós, o suor erupta de todos os poros, a língua seca e incha. E fica-se à espera, sempre à espera, em estado de alerta.
Quando por fim o momento chega, é como se tudo estivesse já acabado, é a espera que nos une!
E o fado que os deuses nos ensinaram, continua dolente, indiferente, a todos os actos e consequências. Sem nada que o desvie da rota destinada.
Que importa que o sol amanheça cintilante ou se vista de nuvens cinzentas?
Basta que o medo tenha lugar na construção de uma pátria!
Gonçalo Ivo
8. Clara, transparente, fria, tão líquida! A água corre, alegremente e sem sobressaltos de maior por entre pedras conhecidas, redondas e gastas, conhecendo de antemão o seu caminho que só tem um fim. A nossa voz, junta-se a outros fios e engrossa tornando-se numa unidade maior cuja individualidade permanece.
Qual ribeiro, qual rio!
Tal como essa água que nos compõe, nos rodeia, líquido amniótico desde a génese, prossegue pela vida fora, faz parte de nós, mergulhando-nos em mistérios.
A terra suporta-nos, o ar penetra-nos, o fogo incendeia-nos. Mas, a nossa voz-água, acorda o que de mais sublime temos em nós, porque ela é elemento primordial da concepção ao final do destino de um corpo.
Ela deixa que o imaginário flutue acima da existência deixando à superfície a nossa alma.
Helena Vieira da Silva


9. Numa conversa, salvaguardando algumas verdades imutáveis, a nossa vida é um corrupio de acontecimentos que surpreendem e nos espantam em cada momento.
Há sempre um pormenor, um pequeno desvio, uma leve paragem que nos faz confluir a outras vias, a outros rumos.
Como malha de rede entrecruzada, expande-se em diversos sentidos, num perpétuo movimento desrespeitando os ritmos certinhos e criando novos arranjos.
Matéria-prima para a construção de novas ideias, ou para a realização de novos projectos, ela é o desafio e o conflito, a barreira que nos ensina a descobrir-nos.
A conversa, é uma paisagem em que a luz e a sombra das nossas palavras dão forma diferente aos espaços e ao tempo.
E eu gosto. Gosto dela! Mesmo que esqueça de algumas vozes!

Telmo, o marujo

Olhar como Gisela (1ª parte)

Naquela tarde o céu era uma enorme mancha dourada salpicada de vermelho. Nunca o tinha visto assim, o recorte das colinas e dos vales confundiam-se com céu parecendo que nos encontrávamos todos numa mesma superfície sem relevo!
A brisa morna trazia consigo poeiras luminosas que planava e poisavam aqui e ali cintilando nos lugares.
Eu estava sentado no terraço do edifício principal e estava a ter dificuldade em disciplinar o meu espírito e o meu corpo. Queria fazer os exercícios de meditação que me recomendaram mas perante este espectáculo, distraia-me frequentemente. Aquele era o lugar que eu elegera para esse tipo de actividades porque não só era sossegado como também me permitia num só olhar, abarcar as corcovas da Ilha do Labor e o mar purpúreo que aprendera a amar. Do lado direito recebia o aroma dos frutos do pomar e, do meu lado direito a profusão de cheiros emanados das flores dos canteiros.
Foi daí que senti a presença dela. O suave deslizar do seu caminhar, feminino… Gisela, a branca imaculada, destacava-se do fundo irisado e tornava-se um lírio alto acima da profusão colorida do jardim. De cabelos lisos, cor de mel, bailando a cada um dos seus movimentos, de olhos azuis lembrando o mar da minha infância… a sua silhueta esguia às vezes perturbava já o meu olhar de rapazinho. Havia um desejo escondido que ainda era incapaz de compreender. Sabia que não era só admiração, pois junto dela tremia e confundia os pensamentos, mas não sabia definir o que sentia e isso deixava-me nervoso!
Quando chegou perto de mim, cumprimentei-a com as faces coradas, ela sorriu e correspondeu à minha saudação com um gentil aceno e fez-me sinal para que a seguisse.
Nem questionei a razão desse convite e apressei-me a seguir com ela pelo caminho que ia dar a uma gruta que eu nunca me atrevera a explorar. Antes de entrarmos, Gisela deu-me a mão e pediu-me que observasse tudo com muita atenção.
A escuridão envolveu-nos de imediato. Depois, de pouco a pouco, uma luz ténue foi-nos orientando. As paredes encontravam-se sapientemente lavradas pela natureza. Rebrilhando no tecto, cachos cristalinos faziam lembrar jóias multicolores incrustadas em relevos caprichosos. Percorremos um estreito corredor que nos fez desaguar num átrio onde um lago em forma de estrela de sete pontas reflectia os pontos de luz e entre os triângulos surgiam raios de luz tal qual o espectro solar. A água do lago, escura e lisa, funcionava como um diamante gigantesco.
Fiquei aturdido, tão fascinado que nem pestanejava. O refulgir das luzes encandeava-me e turvava-me o pensamento. Fiquei incapaz de organizar qualquer frase. Lembro-me que me curvei os braços sobre o peito e que comecei a transpirar, custava-me respirar e foi preciso que Gisela me ajudasse a recuperar e regressar a mim.
- A beleza em extremo pode levar à loucura, Telmo. Principalmente se não se estiver preparado para ela. Apesar disso, a todas as horas, os milagres de beleza se desenrolam ante os nossos olhares e são muitas vezes incompreendidos devido à sua enormidade… que outras coisas de mais belo que este lago e esta gruta? Que outra imagem te afectará como as que acabaste de ver?
- Não sei, Gisela, há tantas coisas que desconheço… ouvi dizer que no fundo dos oceanos há plantas e animais maravilhosos, que no interior da terra se escondem tesouros deslumbrantes, que nas selvas e nos desertos existem flores e seres tão delicados que emocionam até os mais empedernidos, mas eu sou tão jovem e tão pouco experiente que nunca me foi dado confirmar a verdade dessas informações. Desconheço o universo em que vivo e deve ter sido por isso que reagi assim, foi tão inesperado!...
- Há belezas maiores que as que mencionaste entre o mais longínquo universo e o mais profundo dos planetas. Há espectáculos cuja magnitude se tornaria indecifrável até para cada um de nós. Olha, experimenta olhar mais uma vez para dentro destas águas. Verás tu próprio, um dos seres que reina sobre nós e cuja beleza está no espírito que o envolve. Demora o tempo que for necessário para te preparares, segura a excitação e acredita sinceramente que todos fazemos parte deste reino.
Ajoelhei-me com Gisela na borda do lago, agarrei o rebordo e engoli o excesso de saliva que se acumulara na minha boca.
As águas agitaram-se levemente tornando se em breve uma tela que proporcionava imagens tridimensionais.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Palavras viajantes

Braque
Palavras viajantes

Os ventos arrastam palavras. Sem medo, flutuam por aí impregnando os pensamentos daqueles que permeáveis, colhem do ar, os sons esvoaçantes.
As palavras deslizam pelas gargantas enrouquecidas, pelos peitos arfantes, pelos ventres, pelos sexos e, quando voltam a sair, deixam-se levar pelo caminho das pernas até mergulharem na escuridão húmida da terra.
Depois, basta-lhes a primavera para que despontem e floresçam. A seguir vêem as brisas delicadas que as levam para que planem mais uma vez, assim, num ciclo interminável, enquanto houver linguagem!
Derain
Mesmo que o fio já esteja curto depois de enrolado em nós, vale a pena. Ah! Como vale a pena ter chegado até aqui!


1. Calço os meus sapatos de ânimo cristalino e visto o vestido de malha quente que me protege da frialdade das mágoas. Há muito tempo que o sol disse que a minha cor era esta, a cor inventada para separar a noite do dia.
Namoro estrelas e com elas me deleito no luar da serenidade.
Sou também amante das brisas matinais porque me acordam.
Sou assim, uma palavra solta que se reinventa cada vez que vibra e soa.
Gosto de me lambuzar nas nuvens pardas, provar-lhes o sabor da dor porque assim saboreio a alegria de aqui estar.
Não temo a experiencia, só receio arrastar para o caos, todos os me puxam para a dureza do solo.
É uma tentação, arrastá-los comigo para a aventura!
Viajo mil vezes em cada dia.
E encontro motivos para felicitar quem me projectou.
Assumo as hesitações como inevitáveis e acato também os progressos. Quero crescer.
Nem sempre me liberto do malquerer, mas luto, luto absolutamente para vencer inércias e negritudes!
Gauguin
2. Depois de todo o esforço que fiz para atingir o socalco onde me encontro, respiro fundo e, seguro o batimento do meu coração.
Agora sim, posso contemplar a profundeza do vale salpicado de variegadas cores. Em torno de mim e para cima, os picos acerados das montanhas feridas dizem-me que é possível.
Leva-me a tentação, a desejar o colo da terra-mãe, quente, fundo, encostar a minha cabeça e ouvir as cantigas de embalar meninos que afastam os sonhos maus.
Eu sei, sei que só rasgando a pele das mãos, dos joelhos, poderei subir. E, lá de cima, erguer ainda mais alto o meu olhar, respirar o ar sem mancha que envolve o espaço.
Mas por enquanto espero. Espero e recapitulo as veredas que pisei e me trouxeram aqui.
Auroras, amanheceres, ocasos, entardeceres, sucedem-se uns aos outros para poder entender o desfiar do tempo.
É bom estar aqui, perturbar-me com o eco da minha voz que ricocheteia das paredes de rocha. Sinto fome de palavras, das palavras de outras vozes, de ser penetrada por elas.
E o meu anseio é tanto que as oiço sem conhecer a sua origem ou meta. Vêm como poeira, desprendem-se das pedras, das ervas ou, talvez de mim própria. São como pensamentos materializados em ondas vibratórias e, retornam para mim.
O caminho é áspero e infinito, mas eu acredito em mãos estendidas à chegada.
Quem me quer agarrar o braço?
maurice de Vlaminck
3. Acabo de acordar…ou de adormecer.
De qualquer das formas tive um sonho!
As folhas dançam o bailado do vento no chão e no ar, rodopiam sobre mim, borboletas sem alma no encanto de rodar.
Amarelo, vermelho, cobre e castanho, estalar desprendido em outonal ode benzida.
Esquivas silhuetas de animais bravios saídos de suas tocas, lugares escusos prenhes de vida, sussurros de maternal confidência.
É este o cenário terreno que me enlaça o espírito em ascese,
Emissão cósmica e cúmplice da paz que se acama no meu peito. Estado consciente onde alinho palavras de expressão que legendam o meu pensamento vagabundo.
É desse lugar que às vezes nascem os meus versos emoldurados de madeira tosca e sem adornos. Nascem pintados de lágrimas e deslizam calidamente para sossego do meu corpo.
Sou um Outono.
Outono escorado nas traves a que o tempo limou arestas vivas de inquietação.
Outono de sono profundo que a noite invernará um dia.
Sonho vestida de plumagens.

Telmo, o marujo

Uma visita à Ilha do Labor (3ª parte)

Depois de um momento curto de silêncio, cada um dos elementos da família veio despedir-se da matriarca, com respeito mas sem ruído. Colocam-lhe também uma flor no leito.
Irene pediu-nos a todos que não perturbassem Naomi com pensamentos de tristeza e que dirigíssemos somente palavras de encorajamento e consolo. A seguir chamou-me à parte e pediu que a acompanhasse para fora da casa.
Encostados à parede, Irene explicou-me que tínhamos ainda que esperar até que levassem o corpo da sua amiga para a Ilha do repouso. Eu não poderia acompanhar esse cortejo porque só a família e os amigos mais próximos o poderiam fazer. Acatei essa indicação embora houvesse dentro de mim uma curiosidade sobre como faziam o funeral.
Enquanto conversávamos, dirigiu-se a nós um homem bastante novo que pediu nervosamente a Irene para falar com ela.
Irene voltou a apresentar-me como fizera à família de Naomi e perguntou por sua vez se havia algum problema em eu ouvir o que ele tinha para me dizer.
O homem sorriu e disse:
- De modo nenhum! Soube há pouco que a Seguidora aqui estava e portanto vim pedir a bênção da sua presença no primeiro parto de minha mulher.
- E para quando está previsto, jovem? - Questionou Irene.
- Já começou as dores de manhã… é capaz de não ser muito demorado…
- Vamos então, é sempre bom receber mais um neste mundo!
Descemos a vereda a sudoeste ao encontro da praia. A aldeia de pescadores era diferente, as casas encontravam-se muito mais próximas umas das outras e tinham um aspecto menos cuidado. Eram construídas com tijolos minúsculos cor-de-rosa e em vez de telhados tinham terraços que serviam para secar e salgar o peixe. À porta de uma delas encontrava-se uma pequena multidão em ar de festa, esperavam o primeiro grito da criança como era de tradição.
Ao chegarmos, reconheceram Irene e apartaram-se em duas alas deixando-nos passar com ar surpreendentemente feliz.
No meio da sala de qualquer aldeão da Ilha do Labor, existe uma espécie de altar aos antepassados porque acreditam que eles continuam a fazer parte da família e a ajudá-los nas dificuldades diárias. À sua frente, estava uma rapariga sentada numa cadeira especial para poder parir com maior comodidade.
Apesar de tão nova, controlava a respiração conforme a mãe e a sogra lhe indicavam. Algumas mulheres aliviavam-lhe o desconforto, limpando-lhe o suor e massajando-lhe a barriga. Também a animavam com carinho.
Irene abeirou-se da parturiente, fechou os olhos e, acocorando-se foi acalmando as dores com as suas mãos de pluma. Também soprava suavemente sobre o corpo da mulher. Daí a nada, quase sem esforço, nasceu uma menina que gritou bem alto a sua intenção de viver. Foi o pai quem cortou o cordão e foi ele que teve o privilegio de a pegar primeiro ao colo para a colocar logo em seguida no peito da mãe.
Cá fora os amigos e os vizinhos ansiavam ver o novo ser, portanto o pai voltou a pegar na menina para a apresentar à comunidade. Um dos velhos que assistia e que me pareceu ser uma chefe da aldeia, verteu sobre ela uma concha de água do mar e todos aplaudiram com alegria.
Antes de nos virmos embora, Irene deu alguns conselhos aos pais e abençoou-os.
Regressámos então à aldeia de Naomi. Pelo caminho meditei sobre os acontecimentos mágicos a que assistira num só dia. Percebi que os mistérios maiores eram afinal, as coisas mais simples da vida. Ao mesmo tempo, cresceu ainda mais a admiração que sentia por Irene, sobretudo pela sua capacidade de dar, pelo jeito carinhoso com lidava com os outros, pela sua simplicidade com que vivia!
Irene leu os meus pensamentos e com um ar humilde disse-me:
- Não faço mais que o meu dever, Telmo. É esta a minha missão. Em vez de me admirares, tenta seguir-me. É fácil, acredita!
Quando chegamos, os preparativos estavam quase prontos. O corpo estendido numa padiola encontrava-se embrulhado numa mortalha branca e rodeado de flores pequenas e perfumadas. Ao sair, iniciou-se um cortejo e à frente dele, um dos bisnetos tocava em compasso um instrumento parecido com um tambor metálico. Só a família e os amigos mais próximos acompanhavam. Os vizinhos apenas se abeiravam do cortejo e atiram pétalas sobre ele como despedida, desejando uma boa viagem.
Chegados ao porto vi a embarcação que levaria o corpo para a Ilha do Repouso. Irene e eu despedimo-nos da família e voltamos para a nossa ilha.
Pelo caminho pensei:
-Tudo está terminado!
Ao que Irene rectificou:
- Ao contrário, meu querido, está tudo a recomeçar.
Depois, rodeando os meus ombros com ternura, murmurou-me:
- Esta é a espiral da vida!

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Sopros

Júlio Pomar
Quem sou?

Inventei um lugar para além dos sentidos, não muito longe da curva de onde me debruço.
Um lugar miraculoso por onde vagueio nos sonhos que posso reinventar.
Para alguns, torno infantil o meu mundo, visto-o de roupagens singelas. Para outros, preencho-me de silhuetas, abstraio-me em ilusão.
Um pé em cada mundo!
E eu a equilibrar-me entre eles!
Sou aquilo que ninguém sabe que sou.
Pairo além do comum e pareço real!
Sou eu que construo o caminho entre o abismo.
Fui eu que calcei as sandálias de um romeiro e transporto comigo a consciência!
Maria Polo
Fora eu...

Fora eu formiguinha preta diligente
Em roteiros definidos e bem traçados
Com meus passos pequeninos desenhados
E, todo o meu caminho seria diferente!

Fora eu abelha esperta e laboriosa
Que em jardins se recolhe sossegada
Com uma carga menos pesada
E, toda a minha vida seria silenciosa!

Mas eu nasci larva em casulo distante
Hibernei durante toda a eternidade
Metamorfoseei-me ao sol radiante.

Por isso, qual borboleta de cidade
Tornei-me em insecto errante
E, continuo à espera da liberdade!
Manuel d'Assumpção
Montanha

Montanha erguida por entre as águas,
Cristal azul do meu lago serenado,
Desce em soluços sobre o meu pranto calado
E lava com ele as passadas mágoas!

Oh doce montanha dos sonhos erguida
Materialização de um pensamento meu,
Que se toque a um tempo, o lago e eu!

Montanha áspera e rochosa
Permite-me agarrar o espaço além,
Porque no teu cume a nuvem branca
Me atrai, me anima e me chama!

É por ti maternal montanha
Que quero subir, subir, subir
E depois então...sorrir!
Tarsila do Amaral
O meu segredo


Este é o meu segredo escondido:

Um dia a Lua
Outro dia o Sol
Apadrinharam-me com a bênção das suas luzes.

Adormeci então no colo do seu sossego!

Deixei que o sonho continuasse...

Pálida, a Lua, em sua serenidade
Banhou-me de nostalgia
E ofereceu-me um bilhete para a viagem interna
Indicando-me o lugar da sabedoria.

Doirado, o Sol, sempre quente e presente
No seu espreguiçar ardente
Deu-me a sua alegria
E ensinou-me onde vive a fantasia.

No regaço da Lua
Encostada ao peito do Sol
Depressa prendi este segredo só para mim.
Jorge Barradas
Os Grandes Olhos

Os Grandes Olhos que tudo vêem ergueram de imediato as suas pálpebras e com as suas íris profundamente escuras dirigiram-se ao misterioso objecto.
Os Grandes Olhos nem sequer pestanejaram, apenas as suas pupilas se dilataram.
No ponto visado estava um ser ridiculamente pequeno.
Um homem!
Esse homem arrastava um fardo volumoso embora leve.
Todo o corpo se flexibilizava para que a força e o equilíbrio se conjugassem.
Por vezes parava nesse percurso e enrolava-se sobre si mesmo chorando a sua fraqueza. Outras vezes, ao conseguir deslocar-se por breve espaço interrompia a tarefa e regozijava-se.
O fardo ia alterando a forma tornando-se menor, quiçá mais pesado.
A linha imaginária era sinuosa, com curvas apertadas, e declives íngremes.
Mas o homem na sua actividade sem fim, prosseguia, levando-o consigo.
Quando chegou perto dos Grandes Olhos, ele trazia apenas um grão de areia decuplicando o peso inicial.
Quase sem forças e apenas com a estratégia e a persistência, o homem num último arranque, atirou-o para a frente.
Os Grandes Olhos fecharam-se e a Grande Boca abriu-se deixando que a língua vermelha se estendesse como uma passadeira até aos pés do homem.
Só nesse momento o homem respirou fundo e, e pisando docemente a língua entrou dentro da boca.
A boca fechou-se.
A garganta engoliu.
E o Grande Rosto em que estavam implantados os Grandes Olhos, distendeu-se num sorriso, tornando-se maior!
Derain
Sou marinheiro

Sou marinheiro sem farol, sem leme e sem rota
Navego nas águas revoltas da fantasia
Tenho no meu corpo gingado o timbre da nota
Que canta a doce canção do mar em melodia.

O meu suor tem o cheiro fresco da maresia
E o meu cabelo dança ao vento, livre, solto!
Desfraldo-me como uma vela em rebeldia
Porque o futuro em névoa se vê envolto.

Sou marinheiro de mundos de mil tons e de cor
Já não procuro mais praias nem portos de abrigo,
Vou por onde este imenso oceano for.

Permito que o fecundo mar me chame amigo
Porque dele recebo anilada luz em cor
Sou marinheiro, e nestas águas me persigo!

Temo, o marujo

Uma visita à Ilha do Labor (2ª parte)

A entrada da aldeia fazia-se sem grande transição. Primeiro uma casa, depois duas, por fim meia centena delas nas duas margens de um pequeno riacho que ali passava vagaroso.
Umas quantas crianças brincavam com terra e calhaus, crianças como outras quaisquer d meu mundo. Irene perguntou-lhes qual era a casa de Naomi e eles, graciosamente, indicaram uma que ficava ligeiramente recuada, por de trás um muro pintado de amarelo.
A casa parecia muito antiga porque debaixo da camada branca actual podiam observar-se outras camadas de tinta de diversas cores. Havia manchas de humidade que confirmavam o clima pouco agradável daquela ilha, mas de resto, era uma casa sólida, capaz de durar mais três ou quatro gerações.
À porta estava uma mulher madura que ao ver Irene se precipitou nos seus braços:
-Que bom, Seguidora, afinal sempre conseguiste chegar a tempo! Minha mãe está prestes a partir para o lugar do Repouso e eu sei como ela era tua amiga! – As palavras da mulher eram ditas sem choro e sem aflição, talvez a ruga profunda que lhe separava as sobrancelhas fosse mais vincada! Além disso, havia no seu olhar alguma inquietude, nada mais.
Irene bateu-lhe levemente nas costas da mão e apresentou-me à filha de Naomi como um dos “eleitos” e a mulher, convidou-me também a entrar.
Lá dentro tudo era muito simples, limpo e confortável. Em redor do leito baixo estavam todos os filhos de Naomi, as noras, os genros, os netos e alguns bisnetos. Serenos, silenciosos e tranquilos, possuíam uma tal dignidade que me comoveu. Veio-me de repente à memória o funeral do meu avô, da gritaria e alvoroço dessa altura e não pude deixar de comparar os comportamentos de uma família e de outra. Aqui a morte era esperada como um facto natural sem deixar de ser respeitado.
Quando me aproximei do leito da moribunda observei como era velha, tão velha que nunca me passou pela cabeça ver alguém daquela idade. Magra, pálida, de rosto e braços enrugados e estendidos ao longo do corpo. Os seus cabelos entrançados com carinho, chegavam-lhe quase à cintura, eram tão brancos que quase resplandeciam. Tinha os olhos abertos, secos, cinzentos mas cegos… a respiração audível e irregular, mostravam o grande esforço que fazia para continuar viva.
Irene aproximou-se com o carinho que eu já lhe reconhecia há muito, debruçou-se e falou-lhe quase em segredo:
- Então Naomi, estás no fim da tua jornada? Agora é a minha vez de te ajudar a fazer a passagem como forma de te agradecer teres-me ajudado a nascer. Não tens nada a temer… há alguma coisa que te prenda a este lugar?
O abanar lento da cabeça da moribunda deu a entender que estava completamente lúcida e preparada para o que se ia passar.
- Naomi, minha velha, já sabes como é… lembra-te da tua verdadeira pátria, daqueles que irás rever… esperam-te, com certeza, cheios de alegria. Decerto que alguns já se encontram aqui para te acompanhar, conhece-los?
A velha rodou lentamente a cabeça, parou aqui e ali, sorrindo e mentalmente respondeu que sim, que os reconhecia.
Irene então endireitou-se e perguntou se ela estava pronta para iniciar o rito. Quando obteve a resposta, destapou o corpo e desprendeu-lhe os cabelos com paciência, alisou-os ternamente com os seus próprios dedos, depois, começando pelos pés, foi massajando-lhe o corpo com um óleo que trouxera consigo. A família afastara-se o suficiente para dar espaço à Seguidora e mantinha-se calma. À medida que lhe passava as mãos pelo corpo cantav uma melodia sem palavras, quase hipnotizante! Por fim, levantou os braços sobre a cabeça de Naomi e fez um movimento como quem ajuda alguém a sair debaixo para cima e exclamou: - “Estás solta!”- o suspiro que se ouviu foi tão leve qye se perdeu no emio da respiração dos outros.
Eu nunca tinha visto alguém morrer assim e fiquei verdadeiramente impressionado.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Yara Tupynambá
Do meu encanto

No deambular do meu encanto,
Desdobro-me em interrogações,
Herdo o peso das últimas gerações,
E venço a tempo, todo o espanto.

Eu que sou feita deste universo imenso
Modelado pela mão da divindade
Que cheiro a rosas e cheiro a incenso
Preencho-me ainda de santidade.

Palavras? Meras palavras de ocasião?
Ou o sentimento da humanidade
Transformando a desilusão
E pintando-o de claridade?

Ainda não sei por onde, mas vou
Para além de mim, até à eternidade.
Não interessa quem afinal sou
Mas vivo aqui, nesta cidade!
José Jorge da Silva Escada
Há palavras

Há palavras que são ditas sem razão
Que apenas formulam uma evasão
Que ao serem proferidas se gastam
E ao vento se perdem, e se arrastam...

Há palavras mudas que não se usam
Palavras que a outras palavras calam.
Palavras que permitem a confusão
E deixam no ar o sopro da intenção.

Há palavras que se tornam ideias
Construindo complicadas teias.
São palavras capazes de parir
E que depois, se soltam por aí, sem cair.
Mário Cesariny
Eu sou o Universo

As águas morrem devagar na areia da praia aonde vou. Trazem consigo as nuvens em choro.
Poderosas, as ondas, ameaçam os rochedos rugindo, gemendo...e depois, em doçura, lambem-me os pés nus.
E eu, que sou feita de lama, de terra e de água em segredo, fico aqui reconhecendo-me!
Aí sou também o fogo que me queima através dos raios de uma estrela distante! Vejam como eu reflicto o brilho na prata de luz!
Por dentro de mim, o vento, sopra em gasoso movimento circulatório, dando som às minhas palavras.
Eu sou a vida, construída pelos quatro elementos da matéria.
Eu sou o Universo!
Werner Rainisch
Sopro

Que a bandeira da vida se desfralde ao vento
Assinalando o perpétuo movimento da viagem.
E que a pátria dos sonhos que invento
Seja mais, muito mais, que uma miragem.

Que o sopro insistente da minha linguagem
No dédalo das palavras nunca se perca.
Que arraste consigo a única mensagem
E não esqueça o sonho que a cerca.
Helena Vieira da Silva
Bom dia!


Bom dia!
Bom dia, novo dia que estás a despertar.
Como te banha o sol nesta manhã de esplendor!
Bom dia, mundo garrido de cor
Como sorris! Oh como sorris só por acordares!
Tu és o começo do futuro a gritar,
O pequeno passo do resto do meu chão,
O pensamento que ao se desenrolar
Se torna simplesmente em oração.
Cada manhã traz consigo a frescura
Que limpa da véspera as gotas de suor,
Tornando a vida um pouco mais pura
Engrandecendo-a numa oportunidade maior.
Bom dia, novo dia, que estás a começar,
Manhã engrinaldada de intenções,
Eu digo-te baixinho aonde quero chegar
E tu, levas-me contigo sem ilusões!

Telmo, o marujo

Uma visita à Ilha do Labor (1ª parte)

O tempo passava numa rotina que me propiciava a aprendizagem da cultura daquele povo. Aprendi a usar a minha linguagem do pensamento, as regras e atitudes a tomar com os Seguidores da Casa.
Apesar de todos me ajudarem a responder às minhas dúvidas, gostava de estar sempre que possível com Helena e Irene. A primeira tornava a minha estada alegre e agradável, supria as minhas necessidades humanas e despertava-me o interesse pela aventura. A outra era sem dúvida uma mãe, sempre pronta a acarinhar-me e a ouvir os meus mais secretos sentimentos.
Era, o que se pode dizer, um rapaz feliz!
Uma manhã, Irene veio despertar-me com um sorriso no rosto:
- Quero convidar-te a vires comigo à Ilha do Labor.
Saltei rapidamente da cama e quando me preparava para vestir a roupa habitual ela entregou-me uma outra. Tratava-se de umas calças mais compridas cor de rato e uma túnica de um cinzento mais claro. Também me deu uma capa de feltro vermelho com um capuz. Calcei, pela primeira vez em muito tempo, uma botas grossas que me davam quase até ao joelho. Ela mesma trazia roupa muito mais quente e explicou-me que o clima da Ilha do Labor era muito húmido e bastante mais fresco.
Helena apareceu e trouxe-me um almoço mais consistente avisando-me que tomasse muita atenção aos acontecimentos desse dia porque eles seriam de grande utilidade no futuro.
Despedi-me dela e fui de mão dada com Irene à visita.
Primeiro descemos a rampa que nos levou à estrada marginal e seguimos por ela até à ponte que ligava as duas ilhas. O mar nesse dia estava rosa claro, quase branco e muito sereno.
A ponte era de pedra alaranjada, comprida, apoiada em nove arcos. Suficientemente larga para deixar cruzar dois carros e gente de um lado e do outro. À medida que avançávamos, apercebia-se da diferença de temperatura, mergulhávamos num nevoeiro amarelento que me arrepiou porque já não estava habituado. Lá em baixo, no mar, conseguia entrever as silhuetas de embarcações que navegavam em diversas direcções. Só quando nos aproximámos do final e deixamos para trás o nevoeiro é que pude divisar a Ilha.
Era toda constituída por outeiros e colinas, fazia lembrar ondas do mar com os pássaros marinhos que guinchavam enquanto cruzavam os ares.
Ao chegarmos, sofri um choque! Uma intensa mistura de odores atingiu-me de repente: Era cheiro a fruta, a peixe, hortaliças, a barro molhado e curiosamente, a gente. Espirrei uma dúzia de vezes e Irene olhava para mim e ria-se… ria e dizia: “- Estás a ficar muito sensível!”
O primeiro lugar onde parámos foi a feira. Havia tanto movimento e ruído que fiquei meio tonto. Eram centenas de homens e mulheres andando atarefadamente, vendendo e comprando. Comercializava-se de tudo. Desde produtos hortícolas, gado miúdo, artefactos, panos, enfim, tudo o que era necessário para viver com todo o conforto.
Naturalmente, parei junto de uma tenda de panos para apreciar a qualidade dos tecidos. Irene, olhou-me compreensiva mas depois puxou-me pela mão e levou-me até ao lugar onde se vendiam cabras e ovelhas. Perguntou a um dos vendedores por Naomi. O homem encolheu os ombros e disse que talvez fosse melhor perguntar ao vendedor de mantas. Em ziguezague percorremos mais uns caminhos e chegámos até lá.
Foi uma mulher que respondeu a Irene. Pô-la ao corrente da doença de Naomi, e acrescentou que devia estar tão mal que os filhos nem vinham ao mercado há mais de dois dias. Rematou a conversa com um: “- Naomi já viveu tanto!”
Irene agradeceu e saiu dali com um ar preocupado. Estugou o passo e enfiou por um carreiro que se dirigia ao interior da ilha.
Mais ao menos a meio cortou por uma azinhaga e aproximámo-nos da aldeia onde Naomi morava. Eu francamente já estava cansado embora não quisesse dar parte de fraco. Mas Irene percebeu pelo meu arrastar de passos, o meu constante parar para observar os campos ou os rebanhos que pastavam neles. Por isso me olhou com ternura e me disse:”-Já estamos a chegar, pequenote.” Envergonhei-me e acelerei o passo para a acompanhar.