quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Ao acordar


Chagal




REVIVER

Voltar a ser mulher e ter dentro de mim
O frémito do desejo em turbilhão.
Sentir que a alma não cabe nem tem fim
No corpo que entretanto se dilata.
Sorrir e poder ver reflectido
O meu sorriso num outro olhar,
Acordar manhã cedo e erguer
O peito que se inflama de prazer.

Quão longínqua é já a memória
De outras paixões passadas...
Encontrar na velha mala
Os restos bafientos das alegrias.
Saltar o tempo que é História
E só encontrar o que se quer.
Tão remotas são as recordações
Que se patinaram de decência.
Esquecer o buraco fundo aonde fui
O limite que foi das minhas forças.
Apagar o giz dos traços no negro
Que as regras me impuseram.
Rasgar os remendos puídos
Que fui obrigada a coser.
E ser, ser de novo borboleta
Com a capacidade de voar.

Não importa agora o tempo
Que posso usar para bailar,
Cantar e gritar se necessário
Para que outros me possam ouvir.
Falar e contar a muitos mil
Para que eu própria possa sentir.
Vão, vão por mim aí dizer
Que sou outra vez mulher!

O Evangelho de Íris


ÍRIS


Mensageira dos deuses Hera e Zeus. Metamorfoseada por Juno em arco-íris.




A gente de Geração anda preocupada. Íris, a Sétima filha que Tamara deixou, é estranha. Muito estranha mesmo. Passa a vida a perguntar coisas. Nunca pára ao pé de casa. Está sempre longe. Até já a apanharam uma vez a caminhar pelo carreiro que leva à aldeia.
Mas, o mais grave é que fala com as coisas, com os animais, as plantas, as fontes. sabe-se lá com quê mais.
Íris quase não dorme. Acorda ainda de noite. Vai até ao cabeço dos montes e espera que o Sol regresse ao dia. Gosta de ficar ali sentada em silêncio. Quando os primeiros raios furam o anilado do céu, levanta-se e dá-lhes os bons-dias - É Sol que me dizes hoje?- grita na sua vozita infantil. Ao entardecer faz o mesmo com a Lua e as estrelas. No outro dia, as estrelas desceram tanto que puseram as pontas na Terra e dançaram com ela. Íris não ri com medo de as assustar, só sorri e dança, dança! Apesar de gostar da Lua e das estrelas, prefere conversar com o Sol. Ele aquece-lhe o sangue e não se importa com as suas gargalhadas. Quando está com os astros, Íris toma todas as suas cores. Fica brilhante! A menina não compreende porquê que os outros não entendem as suas conversas e, quando fala nisso às suas companheiras, elas ficam amedrontadas e fogem dela.
Íris fala com as fontes. Elas são muito alegres. Passam muitas tardes juntas, principalmente no Verão. Elas explicam-lhe pacientemente como é o interior da terra, como é o rio onde vão desaguar, o mar, as nuvens, enfim, todo o mundo líquido de que fazem parte.
Íris viaja com elas em pensamento, mergulha nas suas águas e deixa-se levar até à foz do rio azul. Prova o sal do mar e extasia-se com todas as algas, todos os peixes que nele vivem.
Ás vezes Íris conta essas histórias às mães e elas ficam caladas, sussurram para o lado, coram ou empalidecem. Até o seu pai que parece um homem inteligente, meneia a cabeça e diz: - tch...tch... Que imaginação esta menina tem! Íris não sabe bem o que é imaginação, mas não fica muito contente com isso. Dá-lhe a impressão que não acreditam nela.
Por isso aprende a calar. Por isso se separa cada vez mais dos outros e se torna mais estranha aos seus olhos.
Uma manhã, depois da conversa com o Sol, Íris resolve ir até ao campo das flores situado no vale de Este. Elas chamam-na baixinho, estão muito magoadas. Na véspera um bando de crianças espezinhara-as, arrancara-as e, muitas delas sucumbiram.
Íris afaga-as devagarinho, canta-lhes uma cantiga sem palavras. Das mãos deixa que um clarão verde as ilumine. E elas sossegam. Íris promete falar com as crianças e explica-lhes que na Primavera seguinte as suas sementes brotarão multiplicadas tornando mais colorido o tapete onde crescem. A voz das flores é feita de perfumes, por isso o ar toma um intenso odor que chega ao terreiro. As pessoas, ao sentirem o cheiro, saem das suas casas, das suas oficinas, dos seus campos e olham para o local onde Íris está, toda rodeada de verde luminoso, dançando por entre as flores agradecidas, que se agitam também.
Mãe Vanda chama-a. Mãe Marta chama-a. O pai chama-a. Mas... o perfume solto pelo ar embarga-lhes as vozes e Íris não os ouve.
Quando regressa, Íris vê o medo espalhado nos seus rostos. Um medo que se transforma em cólera. Embora fique chocada não tenta justificar-se. Eles nunca perceberão o que se passa com ela.
Íris aprende a calar. Por isso se separa cada vez mais dos outros e se torna mais estranha aos seus olhos.
No cabeço de um dos montes está uma rocha desgostosa. Está farta de ter há tanto tempo a mesma forma, de estar sempre no mesmo lugar.
Atenta, Íris ouve-a. Depois diz-lhe que ela lhe poderá dar outra forma. Se ela quiser, embora isso possa magoá-la.
A esperança dá um sorriso à rocha. O sorriso da rocha é deixar escorregar devagarinho os seus grãos de areia. Mas, mesmo assim pede que Íris lhe dê outra forma. Mesmo doendo. Não há maior dor que ficar a vida inteira igual. Íris que traz consigo um pequeno fuso, passa a desbastá-la. Enquanto o faz, a rocha sorri e deixa cair uma gargalhada um pouco maior.
A rocha torna-se a pouco e pouco num enorme pássaro de asas abertas. Íris conclui que está pronto o seu trabalho e inocentemente arrasta-a para o terreiro. Está tão bonita!
Apavoradas as crianças vão chamar as mães, vão chamar os pais. Quando estes chegam ficam todos muito calados com os olhos muito abertos. Depois, num murmúrio que se torna brado, empurram uma escultura até uma ravina e despenham-na no vazio.
Íris acompanha escandalizada toda a acção. Quer reclamar mas não consegue. As lágrimas correm pelo seu rosto amargas, grossas. Quando todos se afastam, olha lá para baixo e grita à rocha.
- Perdoa-lhes rocha, que eles não sabem o que fazem!
A rocha que não pára de se rir, responde:
- Não faz mal, Íris. Eu mudei, eu mudei!
Íris aprende a calar. Por isso se separa cada vez mais dos outros e se torna mais estranha aos seus olhos.
A Avó Grande chama Íris. Ela só costuma falar com os pais e as mães e, mesmo assim, só quando é necessário. Íris está intrigada. Não sente medo mas também não se sente muito à vontade.
A Avó Grande é pequena, tem o cabelo e os olhos quase brancos. Está sentada num banco de pedra à porta da sua casa Como é que alguém tão pequeno pode dominar tantos? A voz sai-lhe lenta esganiçada e começa por perguntar:
- És tu Íris. A Sétima de Tamara?
- Sim, sou eu. E tu? Tu és a Avó Grande que comanda o destino do nosso clã e mantém o seu silêncio?
A velha franze o nariz, não está habituada a que a interpelem. Principalmente por uma garotinha que ainda nem chegou à puberdade. Por isso quando fala novamente é como se um vento gelado soprasse.
- Uma criança não faz perguntas. Limita-se a obedecer e a ouvir o que os mais velhos lhe dizem. Sabes porque te chamei?
- Não...quer dizer, talvez porque mudei a rocha num pássaro... Mas o pássaro não voava!
- Um pássaro de pedra ! Um ídolo! Uma blasfémia menina!- grita agastada a Avó Grande- E há mais, fazes as flores perfumarem o ar como se enlouquecessem, dizem até, que falas com as fontes e os astros. É verdade, Íris?
- É...é verdade! Não vejo que mal tenha isso. A divindade que habita em mim, é a mesma que habita todos os seres. É natural que me entenda com eles.
- Blasfémia, blasfémia menina!
É segunda vez que a Avó Grande usa aquela palavra! Não a conhece bem. Não é o mesmo que verdade nem o mesmo que mentira. É uma palavra que fere e não sabe porquê.
- Avó Grande o que é blasfémia?
- Blasfémia é o pecado maior. A divindade que habita os seres é silenciosa e tu pões nela a palavra.
- Mas...Avó Grande, as palavras não são minhas, são palavras de troca que o pensamento transporta.
- Cala-te. Cala-te. Serás votada ao silêncio. Ao silêncio absoluto. Durante sete luas ninguém te dirigirá palavra e tu não te dirigirás a ninguém. É o castigo.
- Mas...
- Vai-te! -Que eu não te torne a ouvir nem a ouvir o teu nome nesse espaço de tempo. De contrário serás banida.
Íris regressa com o silêncio. Tem vontade de chamar hipócritas a todos aqueles que falam com o pensamento mas não têm a coragem de o fazer de viva voz. A tortura dos homens é grande. Só lhe resta a fuga para os recantos mais escondidos e falar, falar com os animais, as plantas, a terra e as águas que não sabem o que é blasfémia e lhe respondem.
Íris já sabe calar. Mas continua separada dos outros porque é estranha aos seus olhos.


A tortura do silêncio mantém-se. Íris passa ainda mais tempo nos montes junto da natureza. Ninguém se importa com ela. Os estranhos não são bem aceites. Íris é uma estranha.
Ouve-se um grito lá em baixo. Íris acorre preocupada. Junto dos tanques de tingimento das lãs estão três mulheres petrificadas de medo. Um lobo enorme e preto, de baba escorrendo pelas queixadas e olhos vermelhos ameaça atacar.
Quando Íris chega o lobo sobressalta-se. Ela baixa-se até ele. Afaga o seu lombo, a sua cabeça, levanta-lhe uma das orelhas e segreda-lhe qualquer coisa. O lobo parece compreender. Lambe-lhe as mãos e parte.
O espanto das mulheres é tão grande que uma delas desmaia. As outras tremem. Íris afasta-se também e vai para debaixo da sua árvore preferida. Uma figueira mansa. Sente uma dor enorme no seu peito. Uma dor que se mistura com a náusea e a faz fechar os olhos e deitar-se no chão.
De repente sente-se levada, olha para baixo mas o seu corpo continua estendido de bruços no chão. À sua frente um vulto luminoso e amarelo dá-lhe a mão e leva-a a planar sobre toda a área do clã. entra nas casas e ninguém a vê. Leva-a até ao carreiro, pede-lhe que o siga. Íris pela primeira vez na sua vida sente medo e regressa ao seu corpo debaixo da figueira. É quase manhã e nesse dia ela não cumprimentou o Sol.
A população do clã vem em grupo até ela. Ouve gritar:
- Banida! Banida! Vai-te embora. Vai-te embora!
O corpo de Íris treme. Faltam-lhe as forças. Mas o medo é maior e empurra-a para o carreiro que vai dar à aldeia.

O Caminheiro


Recordações


Depois de um primeiro sono profundo e sossegado, o homem entrou num outro sono, pesado, preenchido de sonhos.
Viu-se multiplicado como numa sala de espelhos. Cada expressão, cada gesto era copiado simetricamente por todos os outros.
O espaço onde se encontrava era indefinido, vago! Envolvia-o uma bruma angustiante que o impedia de reconhecer os limites. Aqui e além vislumbrava silhuetas de árvores nuas e rostos muito brancos que o mimavam. Quando pronunciava um som, uma palavra, via apenas reflectido o movimento dos lábios, já que a ausência de ruído era absoluta.
Em jeito de desafio, avançou para o que estava mais próximo. Estendeu os braços para o tocar, tocou-o, mas não sentiu nada... as mãos interpenetravam-se, fundindo-se. Recuou. Onde estava?
Já não tinha medo, mas a curiosidade levou-o a desejar outro lugar.
Uma a uma, as cópias tomaram as formas do seu passado! Ali, um menino de escola brincando com o seu avião simulando voos acrobáticos. Mais à frente, um rapazinho debruçado num muro imaginário e estendendo o olhar sobre o abismo. Um pouco mais distante, um jovem nadando furiosamente num mar vigoroso que vinha morrer na praia dourada. Depois, um homem rodeado de gente, erguendo no punho um diploma enrolado.
Reconheceu-se.
Reconheceu os momentos de herói provisório que havia vivido.
Estava orgulhoso de si mesmo!
Ele era o guerreiro feito à medida da sua luta.
Esticando-se, o corpo cresceu-lhe e rodeou como uma circunferência o mundo inteiro, de uma forma maternal com o peito e o ventre colados a ele numa atitude interna de posse.
Essa imagem pairou durante largo tempo no universo escuro que a continha e só a sua florescência impedia de se tornar real. Ele sentiu-se nessa hora, o Senhor!
Acordou com o vento a bater nos vidros da janela, o céu estava nublado e prenunciava um dia desagradável. Há tanto tempo que não sentia a macieza de uma cama! Merecia-o. Deixou-se ficar nessa modorra vendo a manhã passar. Relembrou as imagens do seu sonho mas não se deu ao trabalho de as analisar. Fora só um sonho!
Involuntariamente, fechou de novo os olhos...
A mulher bateu à porta.
Sobressaltado, levantou-se e pigarreou uma desculpa. Vestiu-se à pressa e desceu. Passava do meio-dia.
A mulher serviu-lhe o almoço. Ele olhou-a com olhos de homem. Ela deixou-se olhar. Sem saber porquê decidiu ficar mais um dia. Propôs isso à mulher e ela, naturalmente, aceitou.
Enquanto ela lidava, o homem observava-a. Ás vezes levantava-se nervoso e ia até à porta, sacudia as pernas como para as sentir presas ao corpo. Depois voltava a sentar-se na sala só para a ver.
A mulher não possuía nenhum atributo demasiado relevante, mas tinha nela algo que o segurava. A dada altura ela passou junto a si, ele tocou-a, e ela enfrentou-o. Ficaram parados, inquirindo-se. Não havia nada para dizer com palavras porque o calor da proximidade dos corpos falava em todo o seu tremor. Um desejo imenso tomou conta de ambos...
Durante toda a tarde se roçaram e amaram em pensamento, fantasiando antecipadamente todos os gestos.
Ao anoitecer, em cumplicidade, subiram ambos para o quarto e permitiram que a torrente estrangulada do dia brotasse e queimasse os seus corpos.
No final da madrugada e pela primeira vez, a mulher fez uma pergunta:
- Porquê?
Ele ficou acordado e numa voz surpreendentemente clara, respondeu:
- Eu olhava e não te olhava. Dirigia o meu olhar para ti. Mas era de ti que vinha o meu olhar!
Ela sorriu e aconchegou-se na concha do homem. Ele sorriu e sentiu-se de novo a circunferência do mundo!

domingo, 8 de novembro de 2009

Ao Acordar



MEU AMIGO



Tu que passas individualmente
Por esta cidade anónima,

Tu que procuras no infinito
O ponto fulcral da glória,

Anda, vem, agarra a minha mão
E chora, chora a tua intensa solidão.

Tu que olhas o teu umbigo
E esqueces o resto do corpo sem razão,

Tu que aqueces o teu peito
Apenas com a voz da tua garganta,

Lembra-te que fora de ti, existes tu
Reflectido nos olhos de quem te vê.

Que há as mãos que te tocam e seguram
O fio delgado que te prende à vida.

Acorda, meu amigo, que é tempo
De fazer coisas e deixar rasto.

É com elas que serás eterno!




O evangelho de Iris


TAMARA



Já ontem ameaçava... O calor abafado e o céu de chumbo bem o previam... O temporal desencadeou-se a meio da noite, para além dos trovejos e chuva grossa, o vento enlouquecido parece descabelar todas as casas, arrancar todas as árvores. O caudal passa pela rua em atropelo. Tudo treme e geme...
No interior do casebre, na sua cama, geme também Tamara, a mãe velha. Já pariu seis vezes. Não é novidade. Sabe como se desenrola o fio. Primeiro a sensação de ardor junto dos rins que lhe apanha o ventre, depois a ardência torna-se pouco a pouco numa insistente e regular dor impossível de desprezar. Pode demorar horas, ás vezes dias. No entanto esse processo tem um fim. Um fim que é um começo, com o rebentar das outras, mais fortes, mais profundas, que parecem arrancar todos os órgãos internos. Dores molhadas.
Com ela, não costuma ser demorado, acaba abruptamente com a expulsão de um ser que ela não compreende muito bem como foi que lá cresceu. Depois, depois gosta de sentir aquela pequena coisa a mexer, a chorar, a cheirar a sua pele. Seis vezes! Seis mulheres que darão ao seu clã outras oportunidades de crescer.
Costuma pedir ajuda a Vanda ou a Marta, suas irmãs e vizinhas. Mas hoje, a madrugada está louca e mesmo que mandasse uma das suas filhas buscar as tias, ia ser difícil elas virem. Talvez de manhã o tempo ajude e ela possa ter a sétima com conforto. É a sétima, disso tem a certeza. Mais uma mulher em casa! É uma honra, segundo a tradição, ter sete filhas. O mais natural é não ter mais filhos depois desta. A idade já não favorece. Antes dela teve dois abortos e daí para a frente é muito provável ter mais. Por isso a Sétima vem na hora certa.
As filhas, alheias ao que se passa, dormem no espaço do lado dividido pela parede frágil. Duas já passaram a puberdade mas vivem ainda com a mãe. Se ela as chamasse?...
Mas não, deixá-las dormir. Por enquanto aguenta. O pior é que o peito parece rebentar, o coração pula apressado e o calor sufoca-a, tem sede, mas sente que as pernas não vão aguentar o peso.
Ainda falta algum tempo para que o dia aclare. Talvez se dormisse um pouco... Se as dores abrandarem é o que vai tentar fazer. Dormir. Sente o sono vir. Suave como um bálsamo. Às vezes não sabe se está a sonhar, ou se está acordada. Deve ser da febre... Há-de passar!
O quarto ilumina-se suavemente. Uma luz azulada percorre-o, preenche-o e, dá uma sensação diferente a tudo o que conhece. Dessa luz, sai de repente, um vulto de azul mais carregado que se dirige a ela. Não percebe muito bem se é homem ou mulher. Só vê o seu sorriso doce e sente as suas mãos macias. Comunicam-se mas não utilizam palavras, apenas ideias através do pensamento de ambos:
- Está próximo, mulher, muito próximo...
- O que é que está próximo? Quem és ? Que fazes comigo?
- Schiu...Calma! A Sétima! Aquela que virá de ti! Trocarás o teu espaço pelo dela. Porque ela será diferente. Será ela que tornará os homens e as mulheres diferentes.
- Como? Porquê?
- Porque o desejaste. Porque o mereceste. A Sétima será a Primeira.
- Não percebo.
- Agora não. Depois. Depois de feita a troca. O teu corpo deu-lhe a matéria, mas o seu espírito encerra já o conhecimento. Foste tu que o desejaste.
- Eu? Quando?
- Tu. Quando te dirigiste à montanha do Sol e disseste:" Que o espírito me escolha e se torne carne."
- Eu disse isso? Quando?
- Ainda antes de nasceres nesta vida. Foi noutra, numa vida em que o sofrimento te era incompreensível e tinhas o coração tão magoado que pensavas carregar a dor colectiva.
- Não me lembro.
- Suave foi o teu esquecimento...
- Foi isso que pedi A quem não tem nome mas tem vida?
- Foi.
- Então percebo. Faça-se em mim a Tua vontade e Graças a ti por tua lembrança.
- Estás pronta?
- Estou pronta.
O espírito decresceu. Decresceu tanto que o corpo da criança que saía o acolheu. A aurora surgiu radiante e o corpo de Tamara sossegou cumprindo o seu destino.
Nasceu a Sétima! Nasceu a Sétima!

O caminheiro


A pensão




Quando abriu os olhos compreendeu que ainda estava sentado na esteira e protegido pelos muros da ermida. Tacteou os braços, o peito e o ventre verificando se havia vestígios da “luta”.
Nada. À parte a cor afogueada, resultante da exposição ao calor, a pele apresentava-se intacta, nem um arranhão! Tudo se passara no domínio de outros espaços! Ele vencera. E isso tornava-o diferente do homem que naquela manhã se encolhera. A sua glória varrera de dentro de si o medo.
Preparou as coisas e, com um passo firme, marchou de encontro ao mundo. Estava cheio de admiração por si próprio, tudo agora lhe parecia vulgarmente pequeno! Deixou de ouvir o gorjeio dos pássaros, o restolhar dos coelhos a fugir, a serrazina dos grilos. A noite aproximou-se e tornou tudo de uma mesma cor!
A povoação era já ali.
À sua entrada, como convidando, havia uma pensão. Pequenina, mas com um aspecto agradável! De dentro vinha um cheiro bom de sopa acabada de fazer. Entrou.
A sala era toda branca e castanha.
Branca da cor das paredes caiadas de fresco, castanha dos madeiros patinados e sólidos.
Havia seis mesas quadradas prontas a servir, um balcão e umas escadas que ligavam ao andar de cima.
Uma mulher apareceu. Era bonita, desenxovalhada, com ar de quem estava habituada a decidir. Quando falou, a voz saiu-lhe forte, ligeiramente rouca, mas segura do que oferecia.
O homem pediu uma refeição quente, um banho e uma cama. Ajustaram o preço. Não era caro! A mulher subiu as escadas e ele seguiu-a.
Mostrou-lhe o quarto mobilado modestamente cheirando a limpo. Gostou dele.
Ela deixou-o, e ele dirigiu-se ao duche. Ah como era bom sentir a água correndo, morna, lavando-o do cansaço e das emoções! Demorou algum tempo a fruir a frescura desse banho. Depois vestiu a outra muda de roupa que trazia consigo e penteou-se cuidadosamente.
Desceu à sala e encontrou uma mesa posta com um fumegante prato de sopa, pão e vinho. Comeu devagar, se o tivesse feito mais rápido sofreria um enjoo. Soube-lhe bem! A mulher trouxe-lhe ainda um prato de guisado e ele saboreou cada pedaço como se fosse a primeira vez. Já não pensava em nada. Agora o que era importante, era manter o corpo forte.
Quase no fim da refeição olhou a mulher que estava ali à sua frente, calada e serena. Agradeceu-lhe, mas ela encolheu os ombros, estava a ser paga pelo serviço! Não fizera mais do que uma troca...
Arrastou a cadeira para trás e esticou as pernas. Estava satisfeito, completo! Ficou assim durante algum tempo, depois levantou-se e foi até à entrada. O ar do campo entrou-lhe pelo nariz e perfumou-lhe a alma. Atentou aos ruídos nocturnos, eram sons de vida! O luar diluía-se pelo céu tornando mágico o momento!
Quando regressou ao quarto estendeu-se abandonado no conforto da cama e, adormeceu.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Ao acordar


DESEJO ACORDADO

Acordaste-me o desejo e subtraíste-me a chave
Que a minha alma inquieta guardava fechada.
Num esgar de deleite, de repente, soltaste
A esperança que me fora proibida e, alcançaste
O meu peito, que num ímpeto de ansiedade
Se abriu, feminino, a uma espécie de felicidade.
Agora manténs secreta uma esquiva distância
Como se fora apenas brincadeira de infância.
Torturas o meu corpo sem o tocares e, por o não roçares
Magoas-me a alma, que vive a intolerância.
Onde pensas que podes ainda abrir e ferir?
Eu, aquela que ainda vive e é capaz de rir!
Destapa-te desse lençol de confusão e procura
Dentro da minha ilusão a gargalhada pura.
Porque escondes os sentimentos dentro de ti?
Fala, fala com o teu corpo dentro de mim!

O Evangelho de Iris


I

GERAÇÃO



Entre o oceano bravio e a serra áspera já calva de erosão, à distância de uma manhã da aldeia mais próxima, fica Geração. Um lugar em que as casas de barro e areia dão guarida a uma família, a um clã, que não tem para comunicação mais que um carreiro torto e pedregoso, e que devido ao seu isolamento, vinca as suas particularidades. Não chegam as trezentas almas incluindo crianças, não têm lugar de culto, escola ou órgão representativo de poder que lhes lembre que fazem parte deste planeta. Todo o seu património é colectivo e todos os seus bens são retirados da terra. Os pouquíssimos objectos que não podem ser produzidos por si, trazem-nos de longe em longe, e porque que necessidade a isso obriga, por um voluntário que se dirige à aldeia vizinha. Como não comercializam, não têm moeda de pagamento, recorrem à troca directa onde a boa vontade dos aldeões acaba por aceitar, mais como por superstição do que por solidariedade. Geralmente trocam cabras, ovelhas ou animais de pêlo, apanhados em armadilhas, por lâminas, pregos ou outros utensílios.
A comunidade vive sob a autoridade do mais velho elemento. Tradicionalmente é uma mulher, uma avó, por quem nutrem imenso respeito e reverência. Ela, pela sua experiência lega aos outros a sabedoria e a justiça. Também é ela que decide quando devem ser feitas as sementeiras ou as colheitas, ou ainda, quando é necessário que um emissário enfrente o mundo exterior e vá até à aldeia.
O casamento, digo antes, o acasalamento, não é monogâmico, nem esse conceito é perceptível por eles. Apesar de tudo evitam as ligações entre pais e filhos e entre irmãos, quase como por instinto, em defesa do seu património genético. A mãe é quem fica encarregue da educação e da subsistência dos filhos. Os homens respeitam as crianças mas não nutrem por elas nenhum sentimento paternal. Defendem-nas, vigiam-nas mas separam-se totalmente dos aspectos afectivos. A partir da puberdade os rapazes desligam-se das mães e passam a acompanhar os homens adultos, enquanto as raparigas começam também a assumir as suas funções femininas. Não há rivalidade entre os dois sexos, mas sim uma espécie de cumplicidade.
A moral existente é um conjunto de regras aceites comummente. Fechados em si próprios, receiam o que vem do exterior e hostilizam os forasteiros que por qualquer razão atravessam os seus domínios. Embora não utilizem armas nem se possam considerar guerreiros, mantêm para com os outros uma total frieza que desmotiva qualquer um. Não dão, nem recebem com facilidade, como se esse facto implicasse o abaixamento das suas defesas.
Vivem um presente contínuo.
Fisicamente são todos parecidos. Nem de outra maneira poderia ser; não muito altos, secos e rijos. A pele é muito branca, quase leitosa, enquanto os olhos e os cabelos variam de azul a cinzento, de vermelho a castanho. Proporcionalmente têm os membros muito compridos em relação ao tronco curto e estreito. São ágeis, resistentes, quase incansáveis.
Apesar do grupo ser muito silencioso, têm um vocabulário extenso e o seu pensamento não é linear. Chegam a ter um gosto pelo poético das palavras e pela sua musicalidade. Mas, como em tudo o que fazem, a sua arte é íntima e só se manifesta em ocasiões muito especiais. Nas longas noites de invernia ou nas tardes ardentes de verão, quando o trabalho físico é quase impossível de realizar, juntam-se numa espécie de assembleia e dão largas aos seus dotes numa disputa saudável de reconto de poemas e histórias.
Professam uma ideia de sobrenatural. Consideram as forças da natureza ou os próprios elementos portadores da divindade única existente. Essa divindade não tem nome, é simplesmente divindade. Respeitam os ciclos naturais e agradecem à divindade única que se manifesta na terra, na chuva, no vento, todas as suas benesses e sobretudo, têm de si mesmo a ideia de que fazem parte desse corpo divino. Para eles qualquer que seja o ser, animal, planta ou rocha é composto de duas partes; a eterna, que transmigra de forma em forma e vive para todo o sempre e, a outra, que só é utilizada em cada vivência e que alimenta com os seus despojos a primeira. Assim o nascimento e a morte têm uma importância relativa. Pois que cada morte dá vida e cada vida tem morte. Sem religião instituída não têm festividades exaltadas. Para eles o nascimento e morte de um ser humano é tão importante como o despontar de uma seara ou a queda de um rochedo.
As suas vidas são círculos concêntricos.
Não parecem aspirar à evolução. Não utilizam a escrita e tudo o que sabem é transmitido oralmente e guardado na memória ao longo das suas existências.
Não se esforçam por mudar. Aliás, a mudança de hábitos é para eles uma violação, tão grande que quase não sobrevivem.
No entanto, apenas à distância de uma manhã, o mundo «civilizado» evolui.
Geração é um hiato da História da Humanidade e não se sabe até quando conseguirá essa (in)diferença...

o CAMINHEIRO


A luta


Uma nuvem de vapor abafava o azul carregado do céu envolvendo-o em ameaças.
O silêncio absoluto permitia distinguir o crepitar das folhas secas, o ligeiro zumbido dos insectos e o coaxar longínquo de rãs em um qualquer charco.
Sem se encostar à parede para não adormecer, fechou os olhos e regulou a respiração. A princípio tudo eram manchas vermelhas, alaranjadas e negras, depois pouco a pouco, enquanto calava o pensamento, formaram-se as imagens. Partiu com elas.
Encontrou-se no meio de um vale desértico ao lusco-fusco. As montanhas erguiam-se como agulhas e rompiam o alto, profundamente! O quartzo-róseo das rochas provocava reflexos que quase o cegavam. Todo o seu corpo parecia esmagado com a energia emanada delas.
Ficou quieto. A habituar-se...
O vento veio enrodilhá-lo de poeira. Era frio, quase gelado...
Gritos acutilantes penetraram então o vale. Asas negras de aves de grande porte surgiram sobre si. A primeira reacção foi encolher-se, depois pensou ainda em fugir, recolher-se entre as arestas das rochas. Mas ele estava ali para vencer e não para ser derrotado. Por isso fincou os pés na terra, como num desafio e, esperou.
Uma a uma, como obedecendo a uma ordem maior, foram pousando em círculo à sua volta, olhando-o de lado com um único olho amarelo e ameaçador.
O terror voltou a encharcar-lhe o corpo, desta vez de um suor pegajoso e frio. Sabia que empalidecera, que as pernas esticadas tremiam. Não possuía qualquer arma com que se defendesse. Descobriu então que isso excitava as aves, que estas estendiam as asas, prolongavam os pescoços e abriam o bico prontas a despedaçá-lo. Então pensou que elas eram apenas animais movidos por instintos e por um espírito de grupo rudimentar e que ele era um homem pleno na sua individualidade, capaz de usar para além das emoções a sua inteligência lógica.
Deu um salto para a frente e lançou um grito de guerra. As aves sobressaltaram-se e desmancharam o círculo desorientadas. Colocaram-se então a uma distância prudente esperando novas ordens. Uma delas que parecia dominar o bando, levantou voo e desceu perpendicular à sua cabeça.
Era o sinal!
Reunindo todas as forças, ele lutou com a ave. Ela arrancava-lhe pedaços de carne nas suas investidas, ele arrancava-lhe porções de penas na sua defesa.
O duelo tomava agora proporções angustiantes.
A um novo grito, outras aves vieram. Não todas, mas algumas delas... usando todos os seus recursos, com brados e pedras, o homem excedia-se.
O tempo parecia parado e os movimentos repetidos constantemente. Toda a fúria que havia dentro dele soltou-se e já sem limites, redobrou-se de forças e conseguiu agarrar o pescoço serpentilíneo da ave maior e atirá-la ao solo. Pisou cada uma das suas asas, ignorou o ataque das outras e foi estrangulando-a, torcendo sem piedade até ouvir o som dos ossos partidos e sentir o estrebuchar do corpo em agonia. O bando afastou-se...
A morte foi breve. O bando órfão levantou voo entrechocando-se no ar, procurando as escarpas mais altas para chorar o seu chefe.
O rosto do homem estava desfigurado, o sangue e a terra, o suor e o brilho da vitória escorriam até ao seu peito.
- Vitória! - Gritou. – Vitória... vitória... – sussurrou.
E deixou-se cair em gargalhadas no pó do chão avermelhado e penugento.
Olhou o cadáver torcido no meio da arena.
Ele era o Homem!