sábado, 3 de abril de 2010

O Caminheiro


O tapete vermelho



A mãe, como já era previsto, preferiu ficar na sua própria casa, rodeada pela sua gente. Gente que a vira lutar, vencer e ganhar a paz que trazia consigo. Ele responsabilizava-se para que nada lhe faltasse e tivesse sempre quem a ajudasse nas tarefas do dia a dia. Sempre que podia visitava-a. A mãe elogiava-o sempre, dizendo a todos o bom filho que ele era, mas interiormente ele sentia que não era o suficiente. Um enorme complexo de culpa invadia-o de vez em quando e corria para ela. Tinha medo, um medo terrível que lhe acontecesse o que tinha acontecido com ao pai.
Entretanto o seu nome era cada vez mais conhecido, um produtor de cinema tinha-o abordado para fazer alguns trabalhos baseados nos seus contos. O contrato era aliciante e ele não foi capaz de dizer que não, mesmo sabendo que teria ainda menos tempo disponível. Em breve a sua vida voltava a tornar-se num corrupio incessante sem horas para nada nem para ninguém. Tinha-se mesmo tornado antipático com as pessoas. Trajava agora o fato de luzes, o mundo girava à sua volta, enquanto as folhas do calendário caiam uma a uma sem que ele se apercebesse disso.
Muitas eram as mulheres que o procuravam, que o desejavam, que dormiam com ele porque sabiam que ele estava bem relacionado com o mundo das artes e dos espectáculos. Claro que ele sabia isso, mas já nada lhe importava! Embalado na dança do socialmente aceitável, lá andava de um lado para o outro, esquecendo-se de si próprio e esculpindo a imagem de um homem-estrela.
Poucos eram os amigos verdadeiros, os mais fieis sentiam-se acabrunhados pelo peso da sua nova imagem. E ele não reparava...
Ufano, impunha a todos um comportamento de subserviência e quantas vezes tinha para com os seus colaboradores uma atitude tirânica!
Se por acaso alguma vez parava e olhava o espelho não era a sua imagem real que via mas, a caricatura de um homem que fora um dia.
Uma tarde, sem saber bem porquê, sentiu-se só, estava cansado das letras do seu nome imprimidas nos cartazes que enfeitavam os escaparates das livrarias, que iluminavam os cinemas, que se arrastavam nas folhas de jornal perdidas no chão da cidade.
Sentiu o vazio que construíra e, lembrou-se das palavras do pai.
Não dormiu nessa noite e, ainda madrugada, dirigiu-se até à praia mais próxima. Não era sequer primavera, mas o sol brilhava contente brincando com a areia fina e dourada. As ondas esverdeadas, vinham uma após outra, desfazer-se em espuma nos seus pés. Não havia ninguém e as gaivotas aproveitavam para deixar as marcas tridentes à beira-mar. Os gritos delas rasgavam o ar feito de vento frio e leve. E ele aproveitou e gritou também. Gritou tanto que a voz enrouqueceu . Deixou que o ar puro e salgado lhe entrasse pelos pulmões limpando-lhe a alma.
De repente o desejo de liberdade invadiu-o e fê-lo mergulhar no oceano e deixar-se levar pela corrente.
Era como se sentisse de novo livre!
Cansado, tremendo de frio, voltou para o carro e embrulhou-se numa manta que ali estava. Lembrou-se dos tempos da procura. Da caminhada.
Que passos havia ele dado então desde aí?
Recordou o livro das mensagens. Onde estaria? Em sua casa ou na casa da mãe? Subitamente toda a urgência estava em encontrá-lo.

Regressou rapidamente a casa e revirou-a de uma ponta a outra, como o não encontrou, deslocou-se ainda nesse dia a casa da mãe. Admirada, esta perguntou-lhe ao que vinha e ele nem sequer respondeu, dirigiu-se de imediato ao seu antigo quarto, abriu e fechou quantas gavetas havia nele. Estava a ficar desesperado quando, finalmente, por detrás de uma fotografia sua de criança, o encontrou.
Tremeu de emoção, pegou no livro cuja capa quase se desfazia, e sentou-se aos pés da cama com ele.
Assustava-o a ideia de que as palavras se tivessem apagado durante a sua ausência. Teve medo simplesmente de não conseguir ler e entender. Por fim, sustendo a respiração, abriu o livro.

“Os teus pés calcam agora a fortuna
O teu corpo arrasta-se na falsa ilusão
A tua alma sofre a eterna secura
E tu, só encontras a solidão.
Tens os teus ombros carregados
Com a miragem do teu sucesso
E os teus sonhos foram relegados
P’ros confins d’outro universo”

Os pensamentos enturbilharam-se no seu cérebro. O coração arrítmico abrandou tanto que quase parou. A mágoa. A mágoa emergiu manifestando-se num mal-estar esquecido. Que caminho tomara ele? Em que beco se perdera? Mentalmente murmurou: - Não sou digno da esperança que foi confiada! Não soube encontrar-me... – e abriu de novo o livro. Nunca o fizera duas vezes seguidas. Estava desesperado!



“Do caos nasce a nova ordem
Porque não mergulhas nele?
Volta à primordial viagem
E pede ao Espírito que vele.
Terás nas tuas mãos um tesouro
Vislumbrá-lo-ás rebrilhando
Mas só serás senhor desse ouro
Enquanto a tua alma for clamando”

Esta era a réstia de esperança que lhe davam!
Sim. Ele teria que voltar a caminhar, ser o nómada do deserto do entendimento. Por isso, guardou o livro consigo e inventou uma desculpa ao despedir-se da mãe.
Voltou à cidade e demorou dois dias para suspender todos os assuntos pendentes. Não deu explicações a ninguém. Para quê? Alguém o poderia entender?
Uma última oportunidade tinha-lhe sido dado e desta vez ele não a queria desperdiçada. Sabia que a caminhada seria dura e dolorosa, mas era a sua caminhada. E sem ela, jamais se encontraria.

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