quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Cego



Tu não reparas, não vês e não sentes
Que toda eu te anseio em ternura
Que neste sentimento a mistura
De mágoa e alegria, me tortura.

Tu não reparas, não vês e não sentes
Que me sobressalto a toda a hora
Que o meu espírito por ti chora
Calado no tempo da demora.

Tu não reparas, não vês e não sentes
Que despertaste em mim o alento
Que semeaste um sentimento
Que às vezes sozinha, chorando, lamento.

Não fora por ti não fora por ninguém
Porque antes de ti não há mais alguém
E porque és para mim último também.
Tu não reparas, não vês e não sentes.

O Evangelho de Íris


Vera

A verdade não é uma. Antes é una, porque é feita de muitas verdades que a completam.





O subúrbio da cidade é feito de lata e de madeira apodrecida que acoberta os homens.
Os seus trilhos são de lama mal-cheirosa mas servem de apoio aos passos cansados.
Os cães e os gatos disputam o lugar e ao mesmo tempo comungam do desalento.
No bairro das barracas há uma nudez que descobre as nódoas e os vincos das almas.
O horizonte do subúrbio é feito de estacas e silvas e fere...e fere...

Vende o seu corpo num bar da cidade. Uma troca que considera justa. Não finge o prazer nem disso é capaz !
Durante o dia serve outros senhores. Uma troca que considera injusta. Não finge o agrado porque isso não é capaz !
Vera é feita dessa verdade. Tem o corpo moído dessa escrava função. Mas mesmo nascida no lodo, Vera traz agarrado a si o cheiro das madressilvas do passado.
Vera recusa sempre a falsidade. Não entra na ilusão daqueles que mascaram a vida com químicos e éteres. Não se deixa embrulhar pela apatia dos que se defendem fugindo.
Vera é uma ponte que une o desejo à realidade. Sólida, ligação entre a vida e o sonho. A falta de esperança não a inibe, porque a sua esperança a empurra para a realidade quotidiana e a faz falar e agir com vigor.
Quem a rodeia não a teme. Vera não esconde nada. E ali é quase respeitada, quase amada, porque é nua, tão nua que se lhe vê a alma !

Quando Íris, Ofélia e Leonor entram no subúrbio, recebem dele o fedor da miséria. Pela primeira vez têm contacto com o pecado, mas não sabem o que é pecar. Recebem a esmola de quem nada tem para o seu sustento e, a indiferença que se molda nos rostos não as magoa. Na sua inocência não compreendem como pode a divindade estar presente ali ! No entanto, o vermelho espírito pairou sobre elas assinalando que aquele é também um lugar de recolha.
Sentadas no muro arruinado as três obedecem. Leonor tem nos seus olhos as lágrimas, Ofélia tem nas suas mãos o pão, e Íris no seu espírito, a vigia.
Esperam...

No crepúsculo da tarde, quando a luz do dia torna mais nítidas as formas, vêem Vera a regressar. Traz gravadas as expressões do dia. Os seus passos não se apressam nem se arrastam porque sabe que a esperam...
Quando se encontram, Vera é intuída pela voz da divindade:
- Viva quem de tão longe traz a Palavra e os Sentimentos. Não sei quem me guiou até vós, mas sei que em vós me completarei!
Íris levanta-se e sorri. Deita sobre ela a bênção do seu olhar e responde:
- Bem vinda sejas Vera. Esperávamos por ti. De nada vale a verdade senão ajudar o outro. De nada vale a verdade se não for vestida de compaixão e o inverso também é certo, a ajuda e a compaixão devem conter cada qual, parte da verdade.
- No entanto...- hesita pela primeira vez Vera- É visível a minha nudez. Nem sempre salvo com ela quem se ornamenta de ilusão e quase nunca a verdade se reconhece na Palavra.
- É para isso que aqui estamos. Para te levar connosco no caminho que nos indica a divindade.
Vera recebe de Leonor o sorriso e de Ofélia o seu abraço. Despede-se sem mágoa do bairro e descem o trilho que as conduzirá mais além.
A faixa vermelha do pôr-do-sol já escondeu o dia. Serão as estrelas e a Lua que a partir de agora as iluminarão.

O Caminheiro


Uma vida



Sabe, nasci nesta casa há setenta e oito anos. Foi herdada pelo meu pai de um tio solteirão que tinha fama de ser rico e avarento.
Os meus pais poderiam ter tido uma boa vida não fosse a doença da minha mãe. Nunca soube exactamente que tipo de doença era, só sei que me lembro dela passar os dias e as noites fechada no quarto aos gritos. Ás vezes escapava à vigilância do meu pai e fugia para a rua onde deambulava seminua.
Meu pai tratava-a pacientemente e com uma resignação única! Ouvi muitas vezes comentários maldosos à cerca da nossa situação mas nunca o ouvi queixar-se.
Talvez para me afastar desse ambiente, o meu pai enviou-me para o seminário. Tinha eu aproximadamente dez anos.
Naquele tempo era um estabelecimento de ensino acessível e com qualidade. Como eu era um garoto inteligente, obediente e sossegado, adaptei-me facilmente.
Quando acabei o correspondente ao ensino liceal, perguntaram-me se eu queria seguir a via sacerdotal e, até para surpresa minha, respondi claramente que não. Fui convidado a sair, está claro!
Entretanto a minha mãe falecera e o meu pai arrastava-se como podia aqui. Vim visitá-lo e falar-lhe da minha decisão. Não concordou nem deixou de concordar, limitou-se a falar de uma certa quantia depositada no Banco e no valor desta casa. Perguntou-me ainda qual era a minha ideia em termos de curso. Respondi-lhe que me inscrevera em Ciências. O meu pai acenou levemente a cabeça e sentenciou:
“- És tu que deves viver a tua vida. Por isso em nada te influenciarei.”
Fui pois para a Universidade. Os dois primeiros anos foram bem empregues, depois... depois entreguei-me aos desvarios, ás farras, deslumbrado com os novos amigos e o brilho da fama académica.
Levei quase sete anos a terminar a licenciatura e quando isso aconteceu não tinha um tostão no Banco.
Tive que me virar! Fui dar aulas para um liceu. Era mal pago, mas pela primeira vez comia o fruto do meu trabalho.
Foi por esse tempo que tive pela primeira vez contacto com uma organização de filosofia esotérica. Até aí nunca tinha pensado muito nesses assuntos, mas naquele momento senti uma necessidade enorme de compreender a minha própria existência.
Toda a doutrina aprendida no Seminário ficava-se pelo aspecto religioso, não me respondia, sentia-a como forma de repressão em vez de um meio de libertação das consciências. O meu espírito científico não se coadunava com dogmas.
Na altura em que frequentara a Universidade tinha-me assumido como agnóstico, era mais prático e ao mesmo tempo era uma espécie de reacção à educação que tinha tido.
No entanto, chegara o momento de perspectivar outro caminho. Só não sabia que esse caminho de busca era eterno, individual, evolutivo e extremamente doloroso no caso de o querer cumprir inteiramente.
Comecei como é evidente com conversas quase banais, depois pouco a pouco, um amigo aproveitou para me indicar alguns livros. Foi com um misto de curiosidade e desconfiança que os aceitei.
Ao começar a ler o primeiro não fui capaz de interromper, tudo era uma surpresa, uma revelação! A minha cabeça ficou um caos, mas o meu coração abriu uma porta que eu ignorava existir dentro de mim.
Falei com o meu amigo sobre os sentimentos que me assaltavam, a inquietação e o súbito reconhecimento da necessidade urgente de respostas a todas aquelas dúvidas que me haviam surgido.
Era como se uma comporta tivesse permitido uma avalanche de mistérios. E eu queria resolvê-los a todos! Com uma serenidade imensa, o meu amigo seleccionou as questões e as prioridades e ajudou-me a sistematizar a minha aprendizagem.
Ensinou-me sobretudo que livros daqueles não se liam assim de fôlego. Que capítulo a capítulo, parágrafo a parágrafo, frase a frase, palavra a palavra, eu deveria parar para, reflectir e meditar.
Confesso que me foi muito difícil essa aprendizagem. Naquele estado de ansiedade em que me encontrava era como parar a meio de uma corrida para recordar e reflectir sobre cada uma das minhas pegadas. Aprendi a anotar cada dúvida e cada pensamento que surgisse, aprendi a caminhar na corda bamba do pensamento sem me deixar cair.
Demorei quase dois anos recuando e recuperando, equilibrando-me!
Mas finalmente, estava preparado para ser um iniciado. Encontrei-me então numa casa situada num barro antigo da cidade. Uma casa por onde provavelmente teria passado milhares de vezes sem nunca suspeitar que estava destinada a pertencer ao meu destino.
Era uma bela noite de Verão. Jantamos ainda à luz do pôr-do-sol, tranquilamente, como se fôssemos tratar de assuntos vulgares. Depois, enquanto fumávamos, fizeram-me saber que uma das principais regras era o sigilo. Nesse tempo além de ser proibido pelo governo as “ seitas secretas”, também era arriscado passar por louco ou por feiticeiro. Assenti. Afinal quem era eu, acabado de entrar, que os contradissesse! Acima de tudo tinha que provar ser merecedor da confiança que depositavam em mim.
Quando se entra nestes ciclos dificilmente compreendemos a dimensão diferente que o conhecimento tem em relação aos conhecimentos adquiridos academicamente. A alquimia foi o ramo escolhido por mim para alcançar as respostas que procurava. E, a alquimia, é uma prática intensa que requer o treino da paciência e da persistência, aliadas a uma disciplina rígida da nossa conduta moral. É fácil sermos tentados a utilizar as nossas aprendizagens para resolver problemas comuns. É fácil sermos tentados pelo o nosso orgulho a destacarmo-nos dos outros. A primeira coisa que aprendemos é que tudo tem um tempo e uma medida certa que não depende inteiramente de nós. Mas o mais importante é que deveremos ser prudentes para não sermos enganados pela aparência. Sobretudo é preciso não uma, mas várias vidas de estudo intenso para se subir um degrau que seja. Descobrir o ouro alquímico é descobrir a perfeição espiritual e, essa não tem limites!
Uma guerra perdida, pensará você?! Talvez, mas repleta de pequenas batalhas que se vencem e nos dão o conhecimento. A “magia” aliada à manipulação dos elementos é uma forma de consubstanciar as ideias. Através dela chega-se à ciência perfeita porque agrega a física, a matemática, a química, a biologia, a ética. É a antiga filosofia, mãe do saber universal.
Enfim, apesar de tudo sou humano e, ao chegar aos trinta e cinco anos, senti-me de repente sozinho. Nunca me havia preocupado com esse aspecto até que conheci aquela que viria a ser a minha mulher. Foi uma revelação! Ela era a outra parte de mim. Conhecia-a por acaso. ( Como se o acaso existisse...), em casa de um médico meu conhecido que também fazia parte da organização.
Logo no primeiro olhar a reconheci. A ela aconteceu-lhe o mesmo. O curioso desta situação é que nunca falámos de amor, como se esse sentimento fosse tão evidente e conhecido de nós que nunca houve dúvidas. Era uma espécie de reencontro, sabíamos os dois o que esperar. Deste modo tivemos um namoro pouco convencional e no final do terceiro encontro propus-lhe casamento. Ela aceitou sem subterfúgios, era tão natural! Casámos precisamente três meses depois e foi nessa altura que lhe confessei que estava ligado a um grupo de estudos e que ela teria que me partilhar. Outra mulher talvez tivesse ficado assustada com a ideia, ou aborrecida... no entanto ela sorriu e disse-me que era melhor assim, porque aprenderia através de mim. Fiquei admirado com tanta compreensão mas com o decorrer do tempo entendi que afinal era ela que me ensinava a mim. No final do segundo ano apercebemo-nos que não poderíamos ter filhos. Não houve culpas e a minha mulher reagiu sentenciando:
-“ Se não nos é permitido ter filhos é porque teremos que amar de uma outra forma.”
Pedi transferência para o colégio da vila e viemos morar para esta casa. Eu ainda quis modificar alguns pormenores para a tornar mais cómoda, mas ela opôs-se dizendo que era nesta simplicidade que queria viver.
Começamos então a amar o nosso quintal. Plantámos árvores, fizemos a horta e o jardim. Construímos um pombal e umas colmeias. Aos poucos o nosso quintal foi-se tornando a nossa razão de viver, o nosso pequeno paraíso.
Eu continuava, como continuo, a trabalhar em alquimia. Ela entretinha-se neste lugar. Tudo o que fazia lhe dava prazer, nunca a ouvi dizer que trabalhava, mas sim, que se ocupava de...
Adoeceu há quatro anos, quis levá-la ao médico mas recusou-se. Disse-me que me preparasse porque estava na hora de nos despedirmos mais uma vez. Fiquei magoado e andei uns dias rabugento, sentia que me iam roubar um pedaço de mim. Mais uma vez, foi ela que me ensinou dizendo:
-“ Nada do que demos um ao outro pode ser tirado porque foi de alma para alma e não apenas de corpo para corpo.
Depois de partir ficarei contigo em cada canto desta casa, em cada flor do nosso jardim. Ter-me-ás quando comeres os frutos das nossas árvores ou os legumes da nossa horta. Afagar-me-ás quando afagares os nossos gatos, os nossos pombos. Cada átomo do ar que respiramos está aqui, no ar que ambos fecundámos. Um dia, quando tu partires também, e nos voltarmos a ver, perceberás como realmente somos um só!”
Partiu. Eu fiquei. Não lhe vou dizer que não sinto a sua falta, mas a recordação das suas últimas palavras acompanham-me.
As pessoas daqui nunca nos viram com bons olhos. Não estão habituadas à felicidade dos outros, nunca entenderam porque vivíamos no nosso mundo sem o partilhar com elas. Sabem que tenho um laboratório e então, na sua ignorância, chamam-me bruxo...
Não me preocupo. Afinal tenho a consciência que nunca os prejudiquei! Que falem, isso dá-lhes prazer!
Acho que estava à sua espera. Sabia que viria alguém ter comigo antes de terminado o meu tempo e que lhe teria que revelar algo. Obrigado por ter vindo. Obrigado por me ter escutado!
O que tenho que lhe dar é segredo. Um segredo que você usará da forma como entender. A responsabilidade é inteiramente sua e as consequências também. Percebeu?