sábado, 5 de junho de 2010

O nascimento de uma flor


Depois veio o vento. Zumbia com violência fazendo-me vergar, vinha carregado com o peso das viagens, e poderoso na sua força.
Em regra, o vento não pára para olhar pormenores, passa, cheio de si, varre tudo e, foge depressa para outros lugares. Mas, naquele dia, quando me viu, serenou arfando e perguntou:
- Pequena haste de planta, admiro-te! Como consegues manter-te presa quando ainda há pouco derrubei ramos e caules mais fortes do que tu?
- Porque sou muito pequena e frágil – respondi eu com sinceridade.
O vento amansou mais e murmurou mais para ele do que para mim:
-Como podem as coisas pequenas ter tanta força como eu? – e soprou num assobio que curvou o ar.
-Que importa a dimensão dos seres, oh vento! Tu viajas por eles e não os conheces! Vês tudo de forma igual nessa correria, vais tão cheio de ti que nem mesmo sabes porque avanças nesse delírio interminável! Sabes porque vens e porque vais? Nem mesmo te deténs para observar a tua obra!
- A minha obra?
-Sim, muito do que existe a ti se deve! A rocha ficaria eternamente informe, não se esculpiria de graça, as plantas não se reproduziriam, os pássaros não voariam… tudo se infectaria de podridão. Não percebes quanto és importante na tua passagem? Como podes mudar a vida?
O vento enrolou-se num redemoinho de embaraço e ronronou como qualquer brisa infantil.
- Sim, torna-te brisa e… afaga-me… preciso desse carinho no meu corpo jovem. De que tens medo? Essa é uma forma de cativar, não precisas de dominar!
Desajeitado, o vento, soprou devagarinho sobre mim e fez-me dançar. Logo as nossas emoções nos uniam numa coreografia de sons e gestos. Ele aprendia a alegrar-se e descobria o seu lado terno da existência.
Já quase no final da tarde despediu-se, ia ameno, completo. A sua paixão tornara-se algo mais perene, firmava-se agora na certeza da sua utilidade.
Fiquei contente. A partir desse dia, todas as plantas conheceriam a meiguice do vento em suas folhas!



O Evangelho de Íris


Planície


A planície é o lugar onde o espaço se dilui com a consciência dos homens.






A muitas horas de distância da última fonte, sob o sol ardente do meio da tarde, pela planície queimada, vão arrastando-se, sedentas, suadas e entorpecidas as companheiras de Íris.
O mundo que já percorreram vem-lhes à memória, sobretudo os momentos amargos que lhes deixaram o travo nas línguas doridas.
Qualquer direcção dos pontos cardeais leva-as ao infinito. Só se vêem searas queimadas e aqui e além uma gota de sangue no corpo das papoilas, um grito aflito em raros sobreiros.
A planura torna mais pequenos os homens, fá-los reconhecer a sua pequenez. A aridez torna mais frágeis os homens, fá-los reconhecer a sua dependência. O calor intenso esgota-lhes as forças e cala-os, levando-os a falar com o seu interior e a perder-se em meandros labirínticos de confusão.
As serpentes e os escorpiões escondem-se na palha, prontos a morder os pés incautos.
A dimensão da planície não se mede, o horizonte longínquo é enganador. Somente o carreiro de terra vermelha bordado de tojos, indica um rumo.
Agora que falta tão pouco para acabar este ciclo, Íris sente na alma o tormento da dúvida e, pressente já a borrasca que tentará romper a teia urdida por si. Já vê nos rostos das outras o medo, o desalento e a revolta.
Vai ouvi-las...

Vera já dominou o que tinha a domar, quase rebenta de fúria, por isso pára e grita. Grita tão alto que algumas das suas palavras se arrastam e espalham na planície!
- Parem! Parem! Ouvi o que tenho a dizer. Estamos perdidas num círculo. Um círculo que nos veda os avanços. Aonde nos levas Íris? Para que nos levas?! Acreditámos em ti, conhecemos de cor as tuas palavras, mas é uma loucura! Estamos vencidas, somos filhas de homens e de mulheres, o nosso espírito não voa como o teu, já não conseguimos ajudar ninguém! Quem quis mudar mudou, que mais poderemos fazer pelos outros? Hoje és já uma mulher, tens poder e força para prosseguir. Deixa-nos regressar à nossa origem. As caminhadas são demasiado longas, tornam-se inúteis. Acabou Íris, acabou!
- Cambada de cobardes!- vocifera indignada Andreia- Onde está a vossa convicção? Alguma de vós foi obrigada a segui-la? Porque não ficastes nas vossas vidinhas cheias de coisas pequeninas? Vejam, ela não mostra, mas doem-lhe as vossas palavras, os vossos pensamentos. Há mais tempo do que nós, ela caminha. Já percorremos tanto! O que custa terminar? Todas sabemos que não é fácil, que é tortuosa esta via, mas viemos. Porque querem agora desistir? Vamos! Ânimo! Depois da planície virá a lagoa onde repousaremos e lavaremos as nossas feridas. Temos fome, sede, estamos cansadas. Mas quantas vezes isso aconteceu? Também sabemos que logo seremos generosamente recompensadas! Vá, dêem as mãos, soltem uma bela e sonora gargalhada, lancem no ar um canto de alegria, é só mais um passo! Estamos a chegar.
Íris escuta-as atentamente, depois de forma enérgica pergunta:
- Quem me quer seguir?
Leonor, Andreia, Constância, Ema e Lectícia colocam-se a seu lado. Vera e Ofélia afastam-se um pouco.
- E tu não dizes nada?- Pergunta a Paula que se não movera.
- A minha casa fica por de trás da colina, só agora aqui cheguei. Não tive tempo ainda de aprender. Nada me pediste, nem eu a ti, segui-te porque vi em ti a luz. Ainda vejo...
É a vez de Sofia, que conhece tão bem como Íris a Palavra. a sua voz é suave mas pincelada de desafio.
- Íris, minha irmã será realmente este o caminho?
- É, tu sabes que sim. Pode ser o mais longo, o mais árduo, mas é o mais seguro para atingir a glória.
- Eu prefiro atingi-la de outra forma...
- Eu sei. Por isso a divindade maior me enviou a mim. És tu que me segues e não eu a ti. - Responde com uma autoridade desabitual, Íris.- Dispam as vossas roupas, montem uma tenda aproveitando o que puderdes. Esperem-me aqui até que regresse. A sombra que conseguirdes aliviará um pouco do vosso calor. A brisa do entardecer refrescar-vos-á. Sofia, Paula, acompanhai-me. Vera, Ofélia, apelo agora à vossa obediência.
O silêncio voltou ao grupo.
As ordens foram cumpridas.
Íris acompanhada pelas escolhidas avança pelo carreiro.

No final do carreiro há dois desvios: um dirige-se para a lagoa, outro vai até uma anta milenária. É este o que Íris escolhe.
Antes de entrar no velho monumento indica a Sofia e a Paula onde devem aguardar.
A noite já caiu. Hoje não há lua e as nuvens que ameaçam trovejar escondem as estrelas.
Aplanando um pouco o chão, limpando-o à entrada da anta, Íris senta-se. Está tranquila apesar de tudo. Ordena então ao seu coração que pare por momentos e, fica queda, esperando o milagre.
Sofia e Paula não adormecem, estão inquietas e olham para a frágil figura com uma interrogação. De repente, da abóbada escurecida, três astros luminosos descem sobre Íris. O espírito desta também se eleva e juntos iniciam um bailado de luz. As voltas, os ziguezagues que fazem entontecem Paula e estremecem Sofia. Não sabem quanto tempo dura a coreografia porque o tempo pára nesse momento.
Depois, quase madrugada, os astros recolhem-se e o espírito volta ao corpo de Íris. Estremunhadas, gatinham até ela e Paula pergunta:
- És tu a própria divindade?
- Todos o seremos um dia- responde Íris- esta é uma das suas manifestações da qual faço parte. Por ora não digais a ninguém o que vistes. Podereis falar depois, depois de tudo terminado. Regressemos irmãs. Regressemos porque nos esperam.

O Caminheiro


O tesouro




Alugara uma carrinha daquelas que têm três lugares à frente e atrás um amplo espaço para levar toda a tralha que julgamos necessária. Ainda pensara comprar uma caravana, mas não se tornava tão cómoda!
O veículo estava em bom estado, mas como era natural, custou-lhe a adaptar-se à sua condução. Rolava por isso com alguma lentidão.
Levava o que considerava imprescindível; fogão de campismo, cobertores, caixa de primeiros socorros, etc. Tudo poderia vir a revelar-se útil.
A estrada do litoral por onde seguia era recortada por falésias e praias, alternando com espaços agrícolas. As povoações conciliavam as casas brancas e pequenas com prédios de apartamentos para turistas.
Nessa noite talvez fosse dormir a ...., uma pequena cidade que já fora outrora rica e próspera. O nome dessa cidade sempre despoletara nele um interesse estranho; um misto de saudade e sofrimento e no entanto era a primeira vez que resolvia visitá-la.
Durante a caminhada da sua juventude nunca se afastara muito do centro do país mas agora que possuía um transporte aventurava-se a ir mais longe.
Com o entardecer a temperatura baixou e por isso fechou a janela. A carrinha não estava equipada com rádio nem leitor de cassetes portanto, a única coisa que podia fazer, era cantarolar umas velhas canções.
A sua voz não era das melhores, felizmente ninguém estava ali para o ouvir! Desconhecia metade das letras e desafinava na outra metade. Com uns lá-lá-lás à mistura com hun-hun-huns, acabava por ser divertido! Quando esgotou o stok musical virou-se para as últimas piadas que ouvira. Eram francamente estúpidas, mas tudo isto tinha o condão de o pôr a rir de si próprio. Foi com agrado que ouviu as suas gargalhadas soarem alto naquela solidão!
Mais cedo do que pensara foi surpreendido pela noite e com a falta de iluminação deixou-se de brincadeiras e levou muito a sério o resto do percurso.
Quando entrou na pensão já não serviam refeições, porém, solícito, o dono preparou-lhe umas sandes e uma cerveja. Logo que acabou de comer foi para o quarto. Enfiou-se na cama. Então, o cansaço do dia fez-se sentir, os músculos das costas e das pernas começaram a doer-lhe horrivelmente. Levantou-se e tomou um duche de água quente para os relaxar. Voltou para a cama, mas apesar de ajeitar vezes sem conta a almofada, de afastar a coberta, e de mudar de posição, ao ponto de se ter virado para os pés da cama, não conseguia dormir. Ficou tremendamente irritado. Afinal no outro dia estava decidido a levantar-se cedo para retomar a viagem, desta forma não iria conseguir com certeza!
O vento começou a soprar de madrugada, primeiro, brandamente, depois sacudindo com força os ramos das árvores e assobiando por entre as gretas da janela. Enrodilhou-se ainda mais nos lençois já soltos, como se se protegesse. Até que uma espécie de sonho o veio embalar.
Viu-se a observar cenas de uma batalha medieval. Ouviu: o entrechocar de espadas e lanças, o relinchar dos cavalos, o som dos seus cascos raspando a terra, e os gritos dos homens excitados e doridos. Viu: as expressões de raiva e de medo, o relampejar das armaduras em movimento, as lágrimas sujas escorrendo pelas barbas emaranhadas. Cheirou: o suor e o sangue dos homens, a poeira e a urina, e ao mesmo tempo o doce aroma dos pinheiros que emolduravam o cenário.
E ele ali estava!
Entre os outros, montado num cavalo malhado e forte, pouco elegante, mas ágil e resistente. Um cavalo de batalha! O peso da sua espada deslocava-se para a direita e para esquerda num contínuo espadanar. A certa altura passou por si um vulto, e simultaneamente, uma dor intensa perfurou-lhe o abdómen. Tão intensa! Tão viva! Que ele deixou de ver tudo o que se passava para se centrar apenas nela. Tudo o que existira até ao momento foi-se diluindo, e lentamente, foi entrando na escuridão do próprio som.
Sentiu-se flutuar desamparadamente num vácuo sombrio. Não conseguia reagir. Era incómoda aquela sensação de dormência! Angustiante! Eterna!

Acordou encharcado em suor e custou-lhe a levantar-se. A luz do sol já inundava o quarto. Pôs os pés nus no chão de madeira arrastou-se até à janela. Abriu-a. estava linda a manhã! O cheiro dos campos entrara de golfada no seu peito, lavando-lhe as angústias da noite. Que sonho!

Voltou à estrada para procurar um lugar que nunca tinha visto. Esta ramificava-se em caminhos estreitos e mal tratados. Entrou instintivamente por um à sua direita e foi ter a uma pequena aldeia sentada no sopé de uma velha montanha que há muito havia perdido a vegetação. Parou a carrinha no largo, tirou a mochila, e resolveu subir por entre pedras e espinhos. Trepou com um impulso irracional a encosta bravia até chegar ao seu cume. O sol do meio-dia reflectia-se nas rochas esbranquiçadas duplicando o calor. Resolveu tirar a camisa e atá-la na cabeça para se proteger e verificou estupidamente que se havia esquecido de trazer água, ainda por cima não vislumbrava um pequeno fio que fosse. Mais teimoso que a própria sede, não desistiu. Ao chegar ao cimo do monte compreendeu que se tratava de um planalto ligeiramente inclinado para o interior, aumentando assim a dimensão aferida antes. Não havia um único arbusto por perto. Passou a língua pelos lábios e sentiu-os gretados. Acalmou a respiração e voltou a olhar em redor. Um enorme penedo chamou a sua atenção. Ficava quase no declive oposto e tinha uma forma invulgar.
Aproximou-se. A rocha parecia ter sido escavada no seu interior por mãos humanas. Ao tocá-la foi como se uma descarga eléctrica o atingisse. Talvez fosse a emoção! Só não compreendia porque a sentia! Havia nela qualquer coisa de chamativo. De um salto alcançou a borda e sem pensar internou-se nela. Arrastando-se num túnel diagonal avançou na sua exploração. Tornava-se obsessivo! Deparou-se então num espaço circular. Apontou o foco da sua lanterna lançou um grito de surpresa.
As pernas fraquejaram, o suor escorreu desenfreadamente pelo seu corpo e, um enorme arrepiu desceu da sua nuca até à cintura. Era como se reconhecesse aquele lugar!
Nunca estudara arqueologia mas tinha a certeza que se encontrava dentro de uma capela cuja construção se situaria algures no século XII ou XIII. As paredes conservavam ainda o colorido dos frescos que em narração pictórica contavam a vida de um dos muitos santos da época. O chão, lajeado tinha inscritos nomes e datas assinalando que aí repousavam resto mortais de homens contemporâneos. Recuado e tombado, um altar de pedra rosada. Simples, sereno, digno.
O tempo havia submergido a capela e o destino tinha-o chamado para a reencontrar. Com que finalidade? Elevou os olhos para a cúpula branca e resvalou pelas paredes os dedos trémulos. Sentiu o calor das imagens, as arestas, as fissuras, e nada mais. Baixou então o corpo acocorando-se, e procurou decifrar as palavras inscritas nas lajes, foi atraído para uma da qual só conseguiu ler: JOANNES V ALVARES, MONGE-CAVALEIRO, M—XXXIV. Não conseguiu perceber se se tratava de um C ou de dois CC, só sabia que ali havia um espaço em branco demasiado largo par conter uma letra e demasiado estreito para conter duas, entretanto a luz da lanterna começou a esmorecer e ele resolveu sair e regressar no dia seguinte, desta vez com as ferramentas necessárias. Foi difícil escalar porque tinha muito pouco a que se agarrar, teve que fazer um movimento de lagarta o que, para quem não está habituado, se torna extremamente cansativo e doloroso. Ao chegar à superfície ficou encadeado com o sol da tarde. Desceu até ao vale bastante entontecido mas com a firme decisão de voltar a pesquisar melhor aquela capela.
Na aldeia não existia qualquer lugar onde pudesse pernoitar, nem nenhum armazém onde pudesse comprar o que necessitava, portanto resolveu voltar à cidade. Antes disso, assinalou bem o lugar num bloco de notas, o percurso, e fez uma pequena lista de compras.
Apesar das emoções e da rudeza do dia, quando chegou à cama, a mesma da noite anterior, caiu num sono profundo.

Logo de manhã, assim que se despachou, rumou de novo de encontro ao seu achado. Desta vez proveu-se de tudo e encheu a mochila com mantimentos. Ah! A água não foi esquecida! Falou com um homem da aldeia e disse-lhe que era professor de História e que andava a estudar o local, pediu-lhe que guardasse a carrinha de forma segura. Por incrível que pareça, o homem não se mostrou admirado e referiu-se até que ele era já o terceiro doutor a aparecer no espaço de meio ano. Interessado, ele perguntou se por acaso tinham falado nalgum achado. Se sim, nunca o tinham revelado, um deles parecia ter feito qualquer descoberta pois, quando regressara, vinha com um ar estranho, quase mágico. O outro, tanto quanto sabia, desaparecera sem deixar rasto. Só se tinha saído de noite e ninguém o tivesse visto! Intrigado, mas não desiludido, ele iniciou a subida. Quem seriam os outros dois? O que fora que os levara ali, um de cada vez, sem que nenhum soubesse da existência dos outros? Não se apercebera que alguém tivesse entrado dentro da capela antes dele! E a população também parecia não saber de nada!
Agora parecia-lhe menos penosa a subida, reconhecia até certos pormenores, e quando chegou à entrada suspirou de alívio. Mas mesmo assim relanceou o olhar por cima dos ombros como se sentisse observado. Ao mergulhar, arrastava a mochila, a pá, o cantil e isso dificultava-lhe bastante os movimentos. Tivera ainda o cuidado de atar a ponta de uma corda ao exterior para que o regresso fosse mais fácil que na véspera.
A sensação de espanto que tivera pela primeira vez foi substituída pela sensação de regresso ao lar. Antes de iniciar a abertura da sepultura, pensou se não seria mais natural verificar as outras. Quem sabe se algum dos nomes lhe soasse conhecido? Limpou cuidadosamente uma a uma das inscrições, quase todas pareciam referir-se a monges e clérigos da região. A única que mencionava a qualidade de cavaleiro era a tal de Joannes.
Esteve muito tempo acariciando a laje, passando nela, os dedos com ternura. Depois, com uma espátula foi raspando cuidadosamente o seu perímetro tentando encontrar uma abertura. Logo que conseguiu encaixar o pé-de-cabra, mais em jeito do em força, levantou a tampa. Demorou horas nesse trabalho, a terra soldara com firmeza as brechas! Mas à medida que a ia destapando, aumentava o seu nervosismo. Por fim conseguiu erguê-la. Pesava muito mais do que imaginara pois tinha quase vinte centímetros de espessura! Quando viu o buraco aberto sentiu temor.
Iluminar a profundidade de uma tumba era afinal algo que o incomodava ainda! Esperava encontrar ossadas, restos de tecido, enfim qualquer vestígio da humana presença! Nada. Absolutamente nada! A sepultura parecia nunca ter servido a alguém. À parte alguns insectos e outros bichos rastejantes que se sentiram atarantados pela invasão dos seus domínios, nada existia. Sentou-se desanimado no chão. Quase que sentia raiva por ter feito todo aquele esforço inglório, era como se tivesse sido enganado!
Passados os momentos de frustração, lembrou-se do seu guia, o velho livro deveria dizer alguma coisa sobre o assunto. E leu:

“O óbvio não existe quando há procura
É o mistério que impulsiona o saber
Aquele que pensa que a vida é segura
Jamais virá um dia a poder entender.
No entanto a resposta pode estar perto
Naquilo que negligentemente desprezaste
E encontrá-la é o caminho mais certo
Será que para isso te esforçaste?”

Tinha que estar ali. A resposta para a pergunta que ele ainda não formulara. Voltou a olhar atentamente em redor. Centímetro a centímetro, e a luz já enfraquecida varrendo o friso do rodapé! Quando estava para desistir, reparou então numa espécie de alavanca que se disfarçava debaixo do altar. Premiu-a com firmeza e um ruído áspero e seco fez-se ouvir. O altar apesar de derrubado, foi-se deslocando e mostrando uma nova entrada subterrânea. Excitado nem hesitou, pegou em tudo o que lhe pertencia e desceu. Os degraus eram sólidos, pisou-os um por um na certeza do caminho.
Encontrou-se então numa sala rectangular onde se mantinham três mesas de madeira e bancos compridos de cada um dos lados. Sobre uma delas, estava um livro aberto, intacto, grande e pesado. Sentou-se, e com todo o cuidado, foi passando as páginas que ameaçavam desfazer-se. Tratava-se de um livro de crónicas, vidas de santos e de heróis. De repente lá estava, Joannes V Alvares. Quase saltou de alegria! E com sofreguidão, leu tudo a seu respeito.

Joannnes V Alvares, havia sido um jovem nobre mui parco de haveres, por isso partira como tantos outros, à procura da glória e da fortuna. Fizera-se cavaleiro de uma ordem monástica e durante cerca de dez anos nada fizera que merecesse relevância até que, não se sabe bem por que razões, fora enviado para a Palestina.
Segundo constava, a viagem fora dura e tormentosa, e como era natural fora difícil adaptar-se ao clima e à nova sociedade. Nessa altura o mais importante era manter os domínios da Ordem em solo estrangeiro e inimigo, o que levava a que os cavaleiros estivessem constantemente em rixas quer com os infiéis, quer com as outras ordens ali fixadas.
Pela descrição, Joannes teria sido um homem intempestivo e pouco prudente, daqueles que por isso mesmo se tornam mitos. Numa dessas lutas foi capturado e vendido como escravo. A seguir o livro narrava todos os tormentos e sacrifícios que ele passara com cada um dos donos que o compraram. Um dia porém conseguira iludir a vigilância e fugira para casa de um velho que tinha fama de santo e sábio. A partir dessa altura tudo mudou para ele. Aprendeu com o velho todo um pensamento diferente daquele em que fora educado. O livro referia-se a esta personagem como um mago mas o mais provável é que se tratasse de um alquimista árabe. Respeitosamente tratado, Joannes interessou-se pelo conhecimento do seu protector e, a pouco e pouco, foi modificando o seu temperamento, alterando as suas atitudes, tornando-se ele próprio num estudioso. O livro não esclarecia quanto tempo ele vivera foras do país, mas fazia referência que à sua chegada andava pelos cinquenta anos e, o mais importante, que trouxera com ele um tesouro.
Talvez pensasse vir gozar com tranquilidade os seus últimos dias, mas uma guerra interna apanhou-o e, como era seu dever, teve que entrar nela e lutar ardentemente até ser atingido por uma lança que lhe pusera fim à vida. A curiosidade natural dos que lhe eram próximos, levou a que lhe revistassem os aposentos embora nem ouro, nem prata, nem relíquias de santo, encontrassem.
Apenas um livro. Um pequeno livro que tinha o condão, quando aberto, indicar à pessoa que o possuía, o caminho a seguir. Aterrorizados, os homens que o acompanharam nos últimos tempos de vida, foram entregar ao abade o livro que desde logo o considerou perigoso e o fechou em lugar seguro.
A história do monge-cavaleiro terminava dizendo que o corpo dele desaparecera enigmaticamente antes do funeral. Em breve nasceu uma lenda em redor do monge-cavaleiro Joannes V Alvares, lenda essa que com o passar dos anos, foi esquecida.

Sem saber bem porquê, as lágrimas correram-lhe pela cara abaixo, voltou a subir os degraus e com reverência sincera colocou o livro no túmulo aberto e fechou-o em seguida. Voltou à superfície com a sensação de ter feito uma viagem no tempo e de ter cumprido um destino.

Ainda não era noite, mas as nuvens cinzentas obrigaram-no a conduzir com os máximos acesos. Desta vez não fazia ideia nenhuma para onde ir.




quarta-feira, 26 de maio de 2010

Esclarecimento


Tenho andado com muitas actividades e com problemas de saúde que me têm impedido de manter a regularidade deste blog. É coisa passageira. logo que possível retomo, de Acordo?

sábado, 3 de abril de 2010

O nascimento de uma flor


4. A terra, o vento, a chuva e o sol



Passavam os dias e eu, cada vez mais presa à terra, continuava o meu percurso ascendente enquanto me fortalecia e me tornava maior.
A terra quase negra segredava-me confidências num diálogo íntimo… daqueles que acontecem quando nos reconhecemos próximos!
Naquele mesmo espaço, dizia ela, haviam já nascido muitas plantas que ela sustentara. Vira-as nascer, crescer e morrer. Isso desencantava-a porque tinha sempre que despedir-se quando encontrava!
Não havia revolta nela, apenas uma tristeza, uma conformação por não poder manter quem amava!
Expliquei-lhe que talvez fosse essa a sua missão; permitir que a vida se manifeste, mesmo que por pouco tempo e, sublinhando a sua generosidade, valorizei o seu serviço.
Ela não me respondeu logo mas por fim perguntou:
- Será que sou de facto como me vês? Não ocultarei eu desejos inconfessados de domínio sobre aqueles que me são entregues? Não serei apenas um instrumento com que a natureza se dotou para dar a outras formas de vida o valor que não tenho? Quem sou afinal? Uma amálgama de rochas desfeitas e restos de podridão material de seres que já cumpriram!
Sorri, sacudindo o orvalho que se depositara em excesso nas minhas folhas.
- Os outros ver-te-ão como tu te quiseres mostrar, porém aconselho-te a não te deslumbrares com o brilho fugaz das vidas que contemplas. Temes o desejo de possuir mas, somos nós que te possuímos enquanto vivemos aqui! Sem ti não desabrocharíamos, ficaríamos eternamente numa semente anunciadora… o que serias tu sem o nosso ciclo de nascimento/morte/renascimento? É isso que te torna tão diferente das areias estéreis. Tu és abrigo, calor, segurança, alimento. Sem ti nada seria como é e nada poderia realmente manifestar-se neste lugar… mesmo que por breves momentos!
A terra soluçou comovida ao descobrir a grandeza que tinha em si, ela que sempre se considerara um meio e não uma entidade plena, ao ter consciência disso percebeu que tinha uma responsabilidade maior, tornava-se cúmplice do processo transcendente que é a vida. Era-lhe difícil assumir, assim de imediato, esta nova personalidade, quase doloroso! Porém, humilde como era, a terra encheu-se de brios e passou a acreditar que todas as coisas eram importantes a partir desse momento. Deste modo perdeu o desejo de possuir e ganhou o conceito de contribuir.

(continua)




O Evangelho de Íris


Paula


A humildade é a virtude que torna os pequenos homens em grandes sábios ou anjos.





Ali, no alto da colina, há um casal que é banhado pelo sol assim que nasce o dia.
Ali, onde a subsistência obriga a um trabalho contínuo, há um canteiro mimado. O canteiro de Paula. É ela que prepara a terra, a rega, é ela que o planta e semeia para depois, a cada milagre de cor e perfume dar um nome, um carinho, através dos gestos e sussurros sorridentes.
Paula não desvenda mistérios nem medita na criação. Basta-lhe presenciá-los, aceitá-los, com o amor genuíno das almas simples.
Paula não sente a nostalgia pelo passado nem ansiedade pelo futuro. Pisa com alegria o presente. Vive. Vive cada momento da sua vida com singeleza e quietude.
Esta manhã, descortina na planície circundante um grupo de jovens que têm um aspecto diferente das demais raparigas que conhece. Não é hábito receber visitas, ainda por cima a uma hora destas e com este número! Porém, estende os braços e acolhe-as no seu lar. Convida-as a entrar e oferece-lhes alimento e água fresca, numa franqueza própria de quem não tem malícia.
Quando estas se sentam, cansadas e empoadas pela jornada, num impulso irresistível, ajoelha-se a seus pés e lava-os com água perfumada por pétalas das suas rosas. As companheiras de Íris esquivam-se envergonhadas, julgam que esse gesto resulta do seu aspecto pouco limpo. Mas Íris sorri docemente e diz-lhes:
- Abençoada seja aquela que se ajoelha perante os seus iguais, porque ao curvar-se, se eleva para além do tamanho de todos. Esta é a violeta rasteira e sombria que exalta o jardim com o seu aroma!
A seguir, Íris dá-lhe a mão e ergue-a, senta-a junto de si e oferece-lhe ela própria, a sua tigela de leite.
A conversa entre as nove é agradável e risonha. Todas tentam explicar a Paula os seus percursos e Íris fala-lhe que aquelas mulheres estão atadas por um nó que as aperta e torna fortes, capazes de reunirem todas as virtudes humanas e elevá-las até à divindade.
Paula não entende exactamente o sentido das palavras mas intui a verdade, por isso se comove e deixa que as lágrimas caiam e escorram no seu rosto.
Os dedos de Íris não resistem a enxugá-las e passam ternos sobre a rosada e suave face de Paula, num acto de amor tão espontâneo que ela própria se surpreende.

Paula perfuma até a própria alma!

Há mais de uma semana que o grupo se acolhe na colina. Há mais de uma semana que partilha as tarefas e se senta à tardinha junto do canteiro, falando de coisas simples e quotidianas. Durante este tempo recuperam as forças, ganham energia e preparam-se para a próxima etapa.
Íris parece feliz, quase voltou a ser menina. Mas esta tarde está mais séria. Sente que é chegado o momento de partir. Sabe que todas a seguirão mas, está apreensiva quanto a Paula. Esta, tem uma vida quieta, não tem dúvidas nem parece aspirar a mais nada do que já possui. Paula está incluída no seu projecto desde o princípio, pela primeira vez, vacila em pedir-lhe que a siga. Isso significa deixar tudo para trás, viver ao sabor dos ventos e dos trilhos, sofrer as agruras do descrédito, sentir o desprezo dos acomodados. No entanto, a virtude de Paula tornaria as outras mais firmes...
Sai por fim do seu encanto, indica que está pronta a partir. Obedientes, todas as outras se erguem. Despedem-se de Paula e seguem Íris pelo campo.
Ainda não tinham descido a encosta, quando Íris olha para trás. o fim de todas, na cauda do grupo, segue saltitante Paula. Olha para o céu e murmura feliz:
-Paula perfuma as nossas almas!

O Caminheiro


O tapete vermelho



A mãe, como já era previsto, preferiu ficar na sua própria casa, rodeada pela sua gente. Gente que a vira lutar, vencer e ganhar a paz que trazia consigo. Ele responsabilizava-se para que nada lhe faltasse e tivesse sempre quem a ajudasse nas tarefas do dia a dia. Sempre que podia visitava-a. A mãe elogiava-o sempre, dizendo a todos o bom filho que ele era, mas interiormente ele sentia que não era o suficiente. Um enorme complexo de culpa invadia-o de vez em quando e corria para ela. Tinha medo, um medo terrível que lhe acontecesse o que tinha acontecido com ao pai.
Entretanto o seu nome era cada vez mais conhecido, um produtor de cinema tinha-o abordado para fazer alguns trabalhos baseados nos seus contos. O contrato era aliciante e ele não foi capaz de dizer que não, mesmo sabendo que teria ainda menos tempo disponível. Em breve a sua vida voltava a tornar-se num corrupio incessante sem horas para nada nem para ninguém. Tinha-se mesmo tornado antipático com as pessoas. Trajava agora o fato de luzes, o mundo girava à sua volta, enquanto as folhas do calendário caiam uma a uma sem que ele se apercebesse disso.
Muitas eram as mulheres que o procuravam, que o desejavam, que dormiam com ele porque sabiam que ele estava bem relacionado com o mundo das artes e dos espectáculos. Claro que ele sabia isso, mas já nada lhe importava! Embalado na dança do socialmente aceitável, lá andava de um lado para o outro, esquecendo-se de si próprio e esculpindo a imagem de um homem-estrela.
Poucos eram os amigos verdadeiros, os mais fieis sentiam-se acabrunhados pelo peso da sua nova imagem. E ele não reparava...
Ufano, impunha a todos um comportamento de subserviência e quantas vezes tinha para com os seus colaboradores uma atitude tirânica!
Se por acaso alguma vez parava e olhava o espelho não era a sua imagem real que via mas, a caricatura de um homem que fora um dia.
Uma tarde, sem saber bem porquê, sentiu-se só, estava cansado das letras do seu nome imprimidas nos cartazes que enfeitavam os escaparates das livrarias, que iluminavam os cinemas, que se arrastavam nas folhas de jornal perdidas no chão da cidade.
Sentiu o vazio que construíra e, lembrou-se das palavras do pai.
Não dormiu nessa noite e, ainda madrugada, dirigiu-se até à praia mais próxima. Não era sequer primavera, mas o sol brilhava contente brincando com a areia fina e dourada. As ondas esverdeadas, vinham uma após outra, desfazer-se em espuma nos seus pés. Não havia ninguém e as gaivotas aproveitavam para deixar as marcas tridentes à beira-mar. Os gritos delas rasgavam o ar feito de vento frio e leve. E ele aproveitou e gritou também. Gritou tanto que a voz enrouqueceu . Deixou que o ar puro e salgado lhe entrasse pelos pulmões limpando-lhe a alma.
De repente o desejo de liberdade invadiu-o e fê-lo mergulhar no oceano e deixar-se levar pela corrente.
Era como se sentisse de novo livre!
Cansado, tremendo de frio, voltou para o carro e embrulhou-se numa manta que ali estava. Lembrou-se dos tempos da procura. Da caminhada.
Que passos havia ele dado então desde aí?
Recordou o livro das mensagens. Onde estaria? Em sua casa ou na casa da mãe? Subitamente toda a urgência estava em encontrá-lo.

Regressou rapidamente a casa e revirou-a de uma ponta a outra, como o não encontrou, deslocou-se ainda nesse dia a casa da mãe. Admirada, esta perguntou-lhe ao que vinha e ele nem sequer respondeu, dirigiu-se de imediato ao seu antigo quarto, abriu e fechou quantas gavetas havia nele. Estava a ficar desesperado quando, finalmente, por detrás de uma fotografia sua de criança, o encontrou.
Tremeu de emoção, pegou no livro cuja capa quase se desfazia, e sentou-se aos pés da cama com ele.
Assustava-o a ideia de que as palavras se tivessem apagado durante a sua ausência. Teve medo simplesmente de não conseguir ler e entender. Por fim, sustendo a respiração, abriu o livro.

“Os teus pés calcam agora a fortuna
O teu corpo arrasta-se na falsa ilusão
A tua alma sofre a eterna secura
E tu, só encontras a solidão.
Tens os teus ombros carregados
Com a miragem do teu sucesso
E os teus sonhos foram relegados
P’ros confins d’outro universo”

Os pensamentos enturbilharam-se no seu cérebro. O coração arrítmico abrandou tanto que quase parou. A mágoa. A mágoa emergiu manifestando-se num mal-estar esquecido. Que caminho tomara ele? Em que beco se perdera? Mentalmente murmurou: - Não sou digno da esperança que foi confiada! Não soube encontrar-me... – e abriu de novo o livro. Nunca o fizera duas vezes seguidas. Estava desesperado!



“Do caos nasce a nova ordem
Porque não mergulhas nele?
Volta à primordial viagem
E pede ao Espírito que vele.
Terás nas tuas mãos um tesouro
Vislumbrá-lo-ás rebrilhando
Mas só serás senhor desse ouro
Enquanto a tua alma for clamando”

Esta era a réstia de esperança que lhe davam!
Sim. Ele teria que voltar a caminhar, ser o nómada do deserto do entendimento. Por isso, guardou o livro consigo e inventou uma desculpa ao despedir-se da mãe.
Voltou à cidade e demorou dois dias para suspender todos os assuntos pendentes. Não deu explicações a ninguém. Para quê? Alguém o poderia entender?
Uma última oportunidade tinha-lhe sido dado e desta vez ele não a queria desperdiçada. Sabia que a caminhada seria dura e dolorosa, mas era a sua caminhada. E sem ela, jamais se encontraria.

domingo, 28 de março de 2010

O nascimento de uma flor


1. A cor que grita: Esperem por mim




Estava eu toda verde quando passou a manhã e veio a tarde. Revesti-me de exuberância e multipliquei o prazer de me ver assim! O vento roçava-me com ternura sem saber, o sol beijava-me morno e o dia avançava com o respirar de todas as coisas vivas.
Eu também estava viva! Sentia que sempre o estivera. Mas agora a força que me animava era outra, mais material e mais física, fazia-me agarrar ao mundo onde estava! Projectei a minha sombra no chão e vi como a dimensão dela fazia uma curva diferente.
Um bando de pássaros passou por ali. Conversámos longamente sobre primaveras vividas antes e eles trouxeram consigo as lembranças de ninhos em escarpas frígidas.
- Ter asas e voar é mais do que uma função, não é? - Perguntei eu.
Um dos pássaros olhou para mim enquanto catava a base das asas e respondeu-me:
- Quando voamos vemos o mundo e aprendemos com ele. Que conheces tu dele e dos seus contrastes? Dos desertos e das florestas, dos céus e dos mares, dos campos e das cidades? Só conheces o perímetro de ti mesma…
- Eu não preciso de asas para aprender sobre o mundo, ele vem até mim através das emoções dos outros, de maneira intocável é certo, pois estou presa à terra, mas repara, como se ergue a minha cor para além do solo! Aprendo o mundo através dos elementos que vêm até mim.
- Nesse caso tudo o que aprendes vem travestido, não é autêntico, vem transformado pela percepção dos outros… que tens realmente de teu no teu conhecimento?
- Tudo! Eu pertenço a este todo e partilho-o sem medo de perder o meu poder. Para que me serviria o teu conhecimento? A tua sabedoria serve para dominar, eu porque comungo da vida, desejo apenas estar viva e ser feliz.
O pássaro pareceu não concordar comigo e para mostrar todo o seu poder, convidou o bando a um voo uníssono e levantaram-se do chão formando uma nuvem anónima pelo céu.
De facto esqueci-me de lhe dizer que pensar individualmente era importante mas não evitava que eles agissem assim sincronizada e impessoalmente. Eu ao menos, oferecia-me de forma única. E isso era o mais importante.
Perdoando-os, ainda lhes gritei:
- Ei! Esperem por mim! Levem o meu verde pelo mundo fora!

O Evangelho de Íris


Sofia


O conhecimento é o conjunto de saberes, mesmo daqueles que ainda não pertencem ao nosso universo.





O recorte do litoral neste lugar é de falésia. Ela estende-se a dado momento por uma faixa estreita e prolonga-se pelo mar dentro. No seu limite está um farol. Tão velho e sólido que o mar apesar da sua fúria o respeita. O vigia luminoso passa de geração em geração sempre na mesma família. A solidão é um vício. O caminho rochoso é batido violentamente pelas águas que ora abrem fendas, ora o cumulam de areia e lodo como presentes.
O farol é um lugar de romagem obrigatório para Íris. Ela sabe-o e sabe também que só ela será protegida na sua passagem e, mesmo assim...
Pede então ao grupo que a acompanhe que fique em terra esperando. Que aguarde e vele. Pede ainda que aproveitem o tempo para sentir a vibração divina da voz das águas e reflictam um pouco na existência do horizonte.
A sombra da tarde já ilude o olhar, confunde os vultos e torna mágicos os elementos. A distância não é longa mas apenas pode vislumbrar a silhueta de quem a espera à porta.
É Sofia, aquela que rege o mundo das trevas através da luz rotativa que se espalha em raios de claridade. Sofia que adivinha já o seu encontro e que põe sobre os seus olhos a mão em pala como forma de dirigir a sombra até si.
Quando as duas se encontram não são precisas palavras. São os seus pensamentos que falam, se encontram e reconhecem.
As mãos tocam-se. Certificam-se de que é material a sua presença.
Quando entram na construção cónica, sóbria e sólida, sobem até à cúpula e esperam caladas que a primeira estrela anoiteça o céu.

- Esperei por ti toda a minha vida, mesmo antes de saber que vivia...-sussurra Sofia confidente.
- Estive sempre aqui. Mesmo sem saber que era aqui o teu lugar - responde Íris no mesmo tom.
- No entanto é longa a jornada que tens feito!...
- Mais longa será o resto dela...
- Íris, como podes ser filha da mulher se a tua semente veio de além, onde é impronunciável o nome? És semente divina, Íris?
- Todas as sementes são divinas, todas as mães são mulheres. São elas que dão corpo e forma à existência. Sem elas a divindade ficaria eternamente no seu casulo adormecida.
- Eu também sou semente divina! Lembras-te? Lembras-te quando antes nos fundíamos e éramos aspectos diferentes de uma mesma identidade? Lembras-te como éramos antes de sermos como somos?
- Lembro Sofia. Lembro. Mas foi necessário separarmo-nos para nos reencontrarmos. Eu vim trazer a Palavra e ela só pode ser dita através da voz e do gesto, de modo a que todos a compreendam. Tu conheces a Palavra porque fazes parte dela como eu. Mas...eles, os homens, continuam a procurar-nos mesmo depois de nos conhecer.
Mas foste concebida sem acto carnal enquanto, bem, nasci de um homem e de uma mulher.
- Foste mais feliz do que eu! Nasceste do amor entre dois seres iguais. Foi o amor que te ungiu e nada há de mais belo neste lugar que o amor entre um homem e uma mulher que dão forma e corpo à semente adormecida!
Eu, fui a escolhida. Tornei-me mensageira, nunca estive em nenhum lugar nem nunca saí de algum lugar. Sou como um arco, uma ponte, que une as margens e não as toca...
- Íris, tu sofres?
- Tudo o que é matéria sofre, porque ela limita o espírito e torna espessas as ideias. O meu sofrimento faz parte do Inominável. É ele que torna o conhecimento visível e claro aos homens.
- Eu não sofro...
- Não. Tu vives na solidão desde que nasceste. E quem tem como gémea a solidão não sofre. Tens todo o tempo para ti. Quando partirmos e nos reencontrarmos, quando a nossa existência se fundir de novo, verás como cada uma terá alargado a sua verdade. E como seremos grandes depois!
Sofia e Íris esperam a madrugada comungando do crepúsculo. É necessário voltar de novo a estar juntas.
Íris regressa para o pé das companheiras. Elas dormem um sono profundo. Íris deixa escapar, leve, uma censura:
- Então não foram capazes de ficar acordadas ao menos uma hora?

É preciso estar de novo com Sofia. Íris deve voltar ao farol. Por isso separa-se do grupo na tarde do dia começado e avança pelo cabo pedregoso. O sol baixo que ilumina a sua imagem pinta-lhe a aura de dourado.
Juntas, Sofia e Íris, assistem agora ao declínio do dia, quando o primeiro luar as toca, voltam a retomar o diálogo do dia anterior.
- Sofia, o tempo ainda não está esgotado. Faltam ainda fios com que é necessário tecer a corda que rebocará a humanidade. Ainda falta percorrer parte do arco circular deste caminho. é por isso que estou aqui!
- Não compreendo Íris! Como pode a divindade enviar-te se os homens continuam sem ouvir? Todos os que vieram antes de ti tiveram dois destinos: ou foram imolados ou foram idolatrados. Qual é o teu destino Íris?
- Já te disse Sofia, o meu destino é a passagem. É deixar no meu rasto o espectro luminoso da Palavra. Somente isso! Será a última prova, a última fase da sublimação do meu ser.
- Também eu estou no último degrau, também eu me preparo através da meditação para tornear o patamar e entrar no corpo sublime da estrela-mãe. No entanto não tenho precisado de me liquefazer em dor...
- Há sempre formas de atingir esse momento; tu fá-lo através da meditação, eu, através da acção. Ambas são legítimas e seguras. No entanto ambas são incompletas. Por essa razão te reencontro. A partir de agora teremos que caminhar juntas, para conseguirmos alcançar o nosso objectivo. Só quando nos completarmos, poderemos terminar. Vem Sofia, está na hora.
- Não posso deixar de sentir receio pelo que vou encontrar. Há muitas histórias da História da humanidade que têm chegado até mim através dos ventos e das marés. Falta-me a coragem, confesso, Íris, de avançar por esse caminho. Há muito que esqueci a provação !
- Afasta as tuas dúvidas minha irmã ! Para lá do farol estão aquelas, que com as suas virtudes, representam o melhor da humanidade ! São elas que me têm amparado e incentivado até aqui. Continuarão a fazê-lo.
- Fá-lo-ão por ti, Íris, não por elas próprias !
- É verdade...mas quando partirmos, entrelaçarão as suas forças e continuarão a arrastar os homens. Vem Sofia, está na hora !
- Espera. Espera só mais um pouco. Deixa que amanheça e partiremos.

Outra manhã começa. Íris e Sofia trazem consigo a luz do farol que encandeia e prostra o grupo. É necessário que Íris as sossegue:
- Não temais amigas. É apenas a luz que transborda. Logo vos habituareis a ela. Esta é Sofia, minha irmã. Também ela percorrerá a partir de agora o que falta.
Não temais. Esta luz não vos cegará, apenas abrirá aos poucos os vossos olhos. Logo sereis capazes de a seguir e vós mesmas, depois de nós a transportareis, iluminadas.
Não temais. Não temais.

O Caminheiro


Vaidades



Como é estranho o sucesso dos homens! Do baú tinha nascido o reconhecimento material e social da sua vida. E, enquanto seu nome era falado ele ia calando cada vez mais o segredo da sua caminhada.
O regresso às obrigações do trabalho tornara-o a pouco e pouco insensível, sobretudo em relação ao seu mistério íntimo.
No tempo em que falara do seu baú ainda fora capaz de tocar os sentimentos, mas agora, que escrevia sobre os baús dos outros, a memória deles era filtrada por uma mente racional e fria.
Vendia bem as histórias. O público prefere histórias vulgares que apenas rocem as suas próprias histórias. Nada de muito profundo...
O tempo antes não tinha dimensão, agora perdia-se escoado nas alíneas da agenda. Como é estranho o sucesso dos homens!

Naquela noite quando chegou a casa, encontrou sobre a secretária um telegrama. Suspirou, tirou o casaco, desapertou o nó da gravata e por fim abriu-o e leu-o: PAI FALECIDO ESTA MANHÃ. Nunca a morte lhe tinha sido tão próxima. Com uma espécie de desconfiança e os dedos incertos carregou nas teclas do telefone.
Foi a mãe que o atendeu.
- Mãe?
- Filho!
- Só o soube agora. Acabei de chegar... Como foi?
- Naturalmente, meu filho, suavemente...
- Mas...assim? Estava doente?
- Não. Porque é que há-de haver razões para a morte? Morre-se e pronto!
- Há tanto tempo que não estava convosco!
- Mas nós estivemos sempre contigo!
- Mãe?
- Sim?
- Amanhã estarei aí.
- Esperarei por ti.
Pousou o auscultador. Custava-lhe a acreditar... sentou-se no sofá e ficou muito tempo sem conseguir ordenar as ideias. As imagens do pai assomavam constantemente. Parecia-lhe ainda ouvir a voz dele, levemente arrastada, e sentir, sentir as mãos de pele áspera de encontro ao seu rosto, cheirando a coiro. E ele que abominava o cheiro do coiro! Agora entrava-lhe pelo o nariz e arranhava-lhe a garganta, e ele gostava!

Só as lágrimas é que não vieram ter com ele, teimavam e negavam-se a correr, ou então, corriam dentro dele como lava quente queimando-o por dentro.

Logo que amanheceu, comunicou a um colega o sucedido, e preparou-se para sair. Pegou numa pequena maleta de coiro e enfiou lá para dentro alguma roupa juntamente com os objectos de higiene. Depois ficou parado algum tempo remirando-a poderia ter sido feita pelo pai, mas tinha uma marca estrangeira e custara bastante dinheiro. Porque nunca pedira ele ao pai que lhe fizesse uma mala como aquela?

Fez-se à estrada. Agora já não andava de mochila às costas. Conduzia um bom automóvel e seguia pela estrada asfaltada em grande velocidade apesar do especial cuidado que esta exigia. Admirou-se consigo mesmo. Estava tão calmo e seguro que aparentava frieza. À medida que se ia aproximando mais rígido parecia. Porque não conseguia chorar? Como se comportaria na hora do funeral? Acusava-se intimamente da pouca assistência que lhe dera. Quem teria tratado de todas as formalidades? A mãe? Apesar da idade continuava enérgica e cheia de sangue frio. Mas... naquela hora de perda...amando o marido como só ela fora capaz. Teria tido coragem? Talvez algum dos vizinhos?... Quem sabe? Um dos seus irmãos?... Achava pouco provável que algum tivesse essa iniciativa. Era a ele que lhe competia a tarefa, a mais ninguém, afinal era seu pai, não era o pai dos seus irmãos.
Quando entrou no prédio, a D. Mingas nem o deixou tocar à porta, era a vizinha do rés-do-chão, abraçou-o a chorar comovidíssima e comunicou-lhe que o corpo estava na capela mortuária da igreja do bairro. Ele agradeceu, desembaraçou-se como pode do abraço e dirigiu-se para lá.
O cheiro adocicado e crepitante das velas misturado com o perfume das flores irritaram de imediato as suas narinas obrigando-o a uma série de espirros ruidosos. A mãe reconheceu-o e veio ter com ele.
Olharam-se com ternura, nos olhos, e ampararam os corpos um no outro, sem se apertarem, apenas de forma que eles confirmassem a materialidade da sua existência.
A mãe vestia de negro com a mesma naturalidade com que vestia qualquer cor, talvez estivesse um pouco mais pálida, mas de resto, parecia tranquila. Ela dando-lhe a mão, levou-o até a galeria dos amigos e parentes afastados sentados cerimoniosamente nas altas cadeiras de espaldar. Todos aqueles rostos pareciam esculpidos de conveniência, nem um só gesto desajustado, nem uma só expressão menos correcta. Nada fugia às normas convencionais.
Sem dar por isso deixou escapar um leve sorriso, não era um sorriso de alegria, claro! Mas um sorriso nervoso de quem não está habituado aqueles cenários.
Depois, com naturalidade, dirigiu-se à urna do pai.
Era de madeira escura e pesada, forrada de cetim azul claro. À sua volta uma moldura de flores torneava-lhe a cabeça e o corpo. Poucas vezes tinha visto o pai sem óculos e estremeceu ao notar como eram grandes as semelhanças entre si e ele. Era como se estivesse a presenciar o seu próprio futuro! O pai estava vestido com o melhor fato que tinha, o cinzento escuro, uma camisa imaculadamente branca e uma gravata azul escura e branca que ele lhe oferecera num Natal distante. Aquele não parecia ser o pai, estava habituado a vê-lo com roupa de trabalho, sobretudo com o enorme avental de couro enegrecido. Aproximou-se um pouco mais e estendeu a sua mão direita sobre as mãos dele que estavam cruzadas no peito. Sim. Aquelas eram as suas mãos! Mãos que não souberam mascarar a vida e que traziam com elas as cicatrizes da sovela e do fio. Mãos endurecidas e, no entanto, tão delicadas, tão cheias de carinho.
Em pensamento dedicou-lhe as palavras de amor que nunca lhe expressara claramente, pediu perdão pela negligência que tivera nos últimos tempos e viu-se de repente a confidenciar-lhe os últimos projectos. Tudo em silêncio! Depois sentou-se ao lado da mãe e passou-lhe o braço pelos ombros. Ficaram quietos, calados, sem lágrimas nem inquietações.
Uma hora depois chegaram dois dos seus irmãos com as respectivas mulheres e filhos. Nunca haviam sido muito chegados ao padrasto, mas soube-lhe bem que tivessem vindo para confortar a mãe. Desculparam a irmã, dizendo que ela vivia longe demais e o marido estava fora, mas traziam da parte dela palavras sinceras de condolências. A mãe abraçou-os e parecendo quase feliz.
Depois do funeral propriamente dito, os irmãos chamaram-no. Era a primeira vez que o tratavam como irmão verdadeiro, e a questão principal era saber exactamente o que deviam fazer com a mãe, pois com a idade que tinha já não convinha ficar tão sozinha. Ele nunca pensara nisso, por isso respondeu que o melhor seria falar com ela logo que fosse possível. Talvez aquele momento não fosse o ideal para o fazer. No entanto não acreditava que a mãe, sempre tão independente, quisesse ficar em casa de algum deles. Os outros desculparam-se imediatamente com o facto de terem casas demasiado pequenas e, provavelmente porque a sua solidão seria maior pois, as respectivas mulheres trabalhavam também, e ela desse modo, ficaria sem ninguém durante todo o dia. Mas o mais grave seria o desenraizamento. Ela vivera quase toda a vida naquele prédio, naquele bairro, naquela cidade. O mais sensato seria que ele, solteiro, e um escritor famoso, com melhores condições económicas do que eles, pudesse assumir o encargo financeiro de manter alguém de confiança junto dela.
Teve vontade de os mandar passear, mas conteve-se. Descansou-os, dizendo que sim, que assumiria esse compromisso com toda a alegria, que ficassem tranquilos quanto a isso. Percebeu os seus suspiros de alívio e nem sequer ousou criticá-los.
A mãe voltou para casa com os vizinhos, ele precisava de espairecer um bocado e sobretudo preparar a conversa com ela de modo a não a magoar.
Quando entrou no carro sentiu uma enorme necessidade de rolar pela cidade sem rumo definido. Parou por fim na parte alta e sem saber como, rompeu num pranto. Não chorava a morte do pai. Uma vida inteira de generosidade e pureza. Chorava o desmembrar do casal feliz que os seus pais tinham formado.
Esgotado pelo esforço do choro, reclinou a cabeça e fechou os olhos. Sentiu o cheiro a cabedal, o afago no alto da cabeça que o pai gostava de lhe fazer, olhou para o lado. Ali estava ele, de camisola azul e calças cinzentas de algodão. Estava a rir. Parecia estar a fazer pouco dele. Quis dizer-lhe alguma coisa mas a voz embargou-se-lhe. Não teve medo mas sentiu-se atrapalhado pela presença etérea do pai.
O velho piscou-lhe o olho como se dissesse: - Desta já me escapei! – E ele riu.
Com mais segurança perguntou-lhe:
- E agora? E a mãe?
- Agora nada! Vou viver a minha verdadeira vida! A tua mãe? Bom, ela é forte, saberá encontrar pensamentos de conforto. É uma grande mulher, sabes?
- Sei.
- É contigo que me preocupo, meu filho.
- Comigo?
- Sim. Procuras sempre fora o que tens dentro de ti. Arriscas-te a perder no meio da ilusão que criaste para ti. Tens fama, tens sucesso, serás cada vez mais solicitado para te integrares nesta sociedade de bem estar material. Dessa forma irás perder tudo. Tem cuidado, não te desiludas a ti próprio!
- Que hei-de fazer, meu pai?

O pai esfumou-se sem palavras.

sábado, 20 de março de 2010

O nascimento de uma flor


2. A haste verde que estende os braços



Pouco maior que o musgo atapetando o chão, encarei o orvalho e fiquei a recebê-lo…. Bebi-o até não poder mais, numa atitude cortês de quem recebe um prémio.
Estava tão cheia de orgulho de mim mesma que nem reparei na minha mãe longínqua plantada naquele vasto lugar.
Interessava-me rever e reaprender tudo. Sobretudo voltar a sentir o perturbante enleio que vinha do ar; os cheiros, os sons, os toques macios e ásperos das brisas e dos ventos, do calor do sol filtrado por entre as minhas irmãs.
Tinha urgência em abraçar o universo. Quem chegava era eu e vinha de novo para o mundo que entrava em mim. Havia que estender os meus braços e estender-me à vida. Em breve, um pequeno animal, um grão de terra, vieram cumprimentar-me trazendo-me as suas mensagens através de folhas desprendidas…Do meu corpo então em alvoroço estendi o verde da minha folhagem

O Evangelho de Íris


Lectícia




A alegria dá à vida o brilho com que se destacam os pormenores da neutralidade dos factos.





Íris não dorme, fica ali sentada, vigiando, junto das suas companheiras. Acompanha o percurso da noite e recebe de seus pais intemporais a mensagem do dia próximo.
Quando o horizonte muda de tom não pode evitar um sorriso de bem estar. Acorda as companheiras deixando que a energia transmitida pela paisagem lhes toque a alma. Correm para as águas cantantes que correm no ribeiro, mergulham nelas e lavam nelas as tristezas do passado.
Com a voracidade juvenil comem todos os frutos que podem oferecidos pelos arbustos e as árvores. É preciso dar alimento ao corpo que as transporta.
A aurora do dia chega plena de luz, desperta os bandos de aves que repousam nos ramos e enche as margens do ribeiro com criaturas diversas, dispostas a viver mais um dia. O sol ainda se orna de rosa, mas aquece já o orvalho que se eleva no ar formando uma neblina baixa e mágica que encanta. Cheira a pinheiros, fetos e violetas. Uma mistura de aromas que inebria os sentidos. O vale coberto de musgo abraça e recebe a graça divina de uma primavera benevolente.
Apetece gritar bem alto:
Bom dia! Bom dia!

Da encosta do monte desce a voz de uma pastora que canta. Cantiga simples em que as palavras jogam com os sons da rima quebrada, mas, a música, vem de dentro, sobe e desce e volteja no ar como trinados. O eco repete-a como um coro no espaço. A pastora pensa que está só em intimidade com a natureza, por isso se despe de todo o pudor e através da voz se mostra nua.
O grupo faz-se encontrado e ela recebe-o surpreendida. O breve momento de hesitação desvanece-se e abre o seu sorriso franco. Oferece então o pão da partilha e o leite das suas ovelhas.
Emocionada com a simplicidade da jovem, Íris pergunta-lhe o nome. O nome é fundamental porque imprime no espírito a personalidade.
- Lectícia.
- Lectícia!- Repetem em conjunto as companheiras.
Íris convida-as a todas a sentarem-se, dá a mão a Lectícia e, virando-se para o grupo, explica:
- Lectícia é a alegria. A alegria que nos falta tantas vezes. Toda a caridade, toda a verdade, toda a coragem e acção devem ser feitas com alegria. Agradece-se a oportunidade de viver, demonstrando a alegria, porque ela filtra a luz que entra no coração dos homens e torna maior a dimensão em que vivemos.
Tu, que és pastora, que estás longe das estradas e das cidades, que vês o mundo do alto dos montes e o céu inteiro do fundo dos vales, tu que aprendes com os pássaros a voar com a tua voz para além de todas as dores e de todas as dúvidas, tu que calcas as ervas que atapetam o solo, és outro elo da cadeia que arrasto e com a qual desejo prender o mundo de meu pai ao de minha mãe, vem. Vem connosco espalhar generosamente os teus risos e deixa, Lectícia, que eu ria também contigo, que eu aprenda contigo a tua música e dance, dance até à exaustão, o bailado, que o Divino coreografou!
Talvez Lectícia não perceba todo o sentido das palavras que ouve, Talvez se acanhe perante aquela que veste todas as cores. Mas sente no seu corpo o desejo de ir. Olha, uma a uma, cada uma das presentes e vê nelas a mesma ansiedade que vê em Íris.
Mas e o rebanho? Que contas dará dele?
Não pode haver alegria sem liberdade diz-lhe Íris.
- Homens! Eis que a Palavra se mistura com o som da música no meu peito.
Homens! Ouvi comigo a canção e deixai que o vosso corpo se contagie de ritmos e baile...baile...
Homens, aquela que foi escolhida também me acolhe, como acolherá a vós se quiserdes!
Glória. Glória à Vida. Deixai que o Sol solte uma risada e vos aqueça até ao fim dos tempos. A alegria chegou!

O Caminheiro


O Próximo




A corrente de ar deslizou fria por cima dos seus cabelos arrepiando-os. Depois muito lentamente afagou todo o seu rosto passando em seguida para o peito. Aí, foi aumentando a temperatura tornando-se tão quente que lhe abrasou todo o corpo. Gemeu. Depois, desceu arrefecida, pelo seu ventre, pelas suas pernas, terminando na ponta dos pés e, fluiu como se de um rio de suor se tratasse. Suspirou. Daí a pouco um novo fluxo fez o percurso inverso enchendo-o de força e de paz. Uma paz a que não estava habituado.
O conjunto das vozes em confusão foi deixando distinguir alguns termos técnicos sobre o seu estado de saúde. Até que uma mais forte disse: - Abre!
Foi então que as vozes passaram a ter rostos.
Eram homens e mulheres de idade e aspecto diferentes que tinham apenas em comum o estar vestidos com uma espécie de túnica verde-água que lhes escondia o corpo de modo que os contornos se perdiam em pregas soltas.
Reparando mais atentamente, pode verificar que algumas das formas não eram humanas, tratavam-se de criaturas com feições bizarras mas que apesar disso inspiravam confiança e bondade.
Uma delas, com cerca de um palmo de altura e olhos encovados de uma cor violeta deslumbrante, levitou até junto da sua fronte. À sua volta havia um halo luminoso amarelo dourado que lhe acariciou o coração.
- Pronto. Daqui a pouco poderás descansar, agora no entanto é necessário que aguentes a dor para teu próprio bem. Depois disto compreenderás muitas coisas que te estavam vedadas.
Foi o que percebeu! Pois a voz que ouvia não tinha som, apenas entrava nele como um pensamento.
De repente, aquilo que lhe pareceu ser um dedo comprido e delgado, tocou-lhe um ponto entre as sobrancelhas. Uma dor aguda e ardente violou-lhe todo o crânio. Vulcões de fogo, explosões de estrelas, ondas gigantescas de lava, encheram-lhe a visão. Durou uma eternidade!
Quando acordou verificou que tinham passado apenas quinze minutos desde a última vez que olhara para as horas. Tinha a certeza absoluta disso porque o seu velho relógio de parede continuava fiel na marcação do tempo. Já não sentia dores nem calor excessivo, embora estivesse completamente transpirado. Sentia um torpor agradável que o embalava.
Com incredulidade reparou que tudo à sua volta estava rodeado de auras luminosas que se exprimiam em cores e intensidades diferentes. Algumas dessas auras, como as das plantas do vaso sobre o parapeito da janela, pareciam intermitentes, outras, eram pálidas e pouco definidas.
Quando a mãe voltou a entrar, vinha rodeada de um largo espectro. Azul. Verde. Matizando-se com um dourado fascinante. Emocionou-se. Um nó na garganta impediu-o de falar. E ao sentir as suas mãos magras a afagá-lo, teve vontade de chorar.
A mãe. Quem era aquela mulher?
Tivera-o em fase adiantada da vida, no entanto a diferença de idades nunca obstara a um óptimo relacionamento e até a uma certa cumplicidade. Ela compreendia porque razão aquele filho tinha tanta necessidade de se afastar e de viver uma vida solitária porque o aceitava e o amava tal como ele era.
Fora sempre uma grande mulher, a mãe! Tivera uma infância pobre e com poucas oportunidades, casara muito cedo com um homem doente e agressivo. Criara três filhos dele com imensas dificuldades e muita instabilidade afectiva. Quando o marido morreu de forma atroz, ela ficou sozinha com todas as responsabilidades e sem ajuda de ninguém, mas o mais grave, sem um trabalho que lhe garantisse o sustento dela e dos filhos. Desembaraçou-se. Fez limpezas, costurou para fora, dormia e comia muito pouco para que nada faltasse. Encontrou então um homem tranquilo e bondoso que por amor dela aceitou o encargo de uma família já formada. Casaram. Sem exigências, apenas com a ternura de bagagem. Os filhos cresceram e tomaram conta dos seus próprios destinos. Nunca souberam agradecer à mãe e ao padrasto a vida que puderam usufruir.
O nascimento dele fora aceite de má vontade, como se o considerassem um intruso. Um bastardo. O que fazia sofrer aquela mãe divida entre o amor dos primeiros e a paixão do último.
Tanto o pai como a mãe pareciam ter sido talhados à medida um do outro. Tinham uma delicadeza de trato que mesmo nas horas de maiores dificuldades se fazia sentir. Nunca os ouvira queixar um do outro, nunca se apercebera dos defeitos de um através da crítica do outro. Eles amavam-no e mimavam-no com alegria. Deram-lhe todas as possibilidades de progredir e desenvolver as capacidades. Sem grandes recursos contudo, tornaram-lhe a infância feliz e tranquila. Com o seu exemplo, ensinaram-lhe a ser tolerante, generoso e respeitador para com toda a gente. Fora um privilegiado!
Agora voltar à casa paterna era reaprender os afectos.
- Então, meu filho, como te sentes? – perguntou a mãe suavemente.
- Bem, obrigado, minha mãe. Perdoe o trabalho que lhe estou a dar!
- Ora filho, que trabalho? O que me fez mal foi o susto que nos pregaste. Já não somos novos e situações destas perturbam-nos muito.
Ficou envergonhado. A última coisa que desejava era fazer mal àqueles dois seres maravilhosos.
- Eu sei que já és adulto e tens a tua própria vida, mas filho, ficamos tanto tempo sem ter notícias tuas!
- Não é por indiferença, mãe, sabe que não é por mal! É que o meu trabalho não tem horário fixo... nem lugar...
- E os outros teus colegas que têm família? Será que a abandonam assim?
- O que eu faço é diferente. Sou repórter.
- Quando telefonei para o jornal, ninguém sabia dar resposta. Disseram também que havias deixado de enviar trabalho há algum tempo. O que se passa? Confia em mim!
- O segredo é alma do negócio, não é? – Disse para desviar a atenção- E sabe, tenho andado todo este tempo à procura do sentido da vida. Quero escrever sobre ele.
- O sentido da vida? Porquê? A vida não tem que ter um sentido! Talvez seja bom que o não o conheçamos. O melhor é viver. O ontem de uma maneira, o hoje de outra , e o amanhã ... Bom o amanhã logo se verá! Para que queres tu complicar as coisas? E ainda por cima escrever sobre isso? A tua vida é tão importante como a dos outros! Só tu é que a vês diferente...
Era verdade. A mãe sempre fora uma mulher muito prática. Nunca tivera tempo para problemas existenciais. Sorriu. Que mais poderia fazer? Prometeu à mãe que voltaria a trabalhar e a pôr em ordem as suas ideias. Talvez fosse interessante falar da vida dos outros, daquilo que aprendera a conhecer neles. Sim, falaria dos homens e das mulheres que encontrara no caminho.
A mãe respirou fundo aliviada e convencida que ele a havia escutado.
Assim que ela saiu, retirou o livro do peito e passou a mão pela sua capa macia e lustrosa. Que lhe diriam agora aquelas páginas de sabedoria?

“ Nas angústias do Ser há sempre um cais.
Um cais onde o Homem pode aportar
E, olhar o horizonte, e exigir dele mais,
Estendendo a mão de modo a poder agarrar.
Em cada viagem há outros companheiros
Que de tão próximos de nós são esquecidos,
São como nós, também, caminheiros,
E dão-nos a comparação do que sentimos.”

Fechou os olhos e compreendeu. O seu orgulho de homem convencido foi rasgado pelas lágrimas da compreensão.
A mãe, o pai, eram os eus próximos que havia esquecido. Nunca lhes soubera agradecer realmente a oferta da sua vida. Pensara que ela era só sua!

A vida! Agora entendia-a como o entrelaçar de todas as vidas.



Passado o tempo da convalescência era preciso voltar à vida activa. Tinha deixado de ganhar dinheiro durante a sua aventura e precisava de voltar a tê-lo para subsistir, tornava-se urgente voltar à redacção, rever os colegas e sobretudo concretizar as ideias que germinavam dentro de si.
Preparou-se para sair de casa naquela manhã com a sensação de ter fechado um parêntesis na sua vida. A mãe abeirou-se com a sabedoria dos anos e o hábito velho de o aconselhar: Estava nevoeiro, não convinha uma recaída, que tivesse cuidado, que se agasalhasse... ele abraçou-a com a ternura feita de reconhecimento. Era bom!
A rua agora parecia-lhe um lugar mágico, envoltos como estavam, os contornos do que via.
Apanhou o autocarro e saiu em frente da porta castanha do edifício decadente que o esperava. O cheiro familiar do papel e da tinta, do fumo e do suor, escorregou-lhe pela garganta, obrigando-o a tossir.
À sua entrada, os colegas de trabalho regozijaram-se com o seu regresso, como se ele fora um filho pródigo! Palmadas nas costas, piadinhas salgadas, e apertos de mão viris e sinceros. Sentiu-se amado, sentiu-se protegido, no seu lugar.
O chefe da secção ainda não tinha chegado por isso a confusão soava alto. Mas poucos minutos depois, o “Riscos” apareceu e a sua voz rouca surpreendeu-os como a meninos apanhados em falta. Todos voltaram as suas mesas de trabalho para voltar a martelar textos. Só ele ficou em pé à espera de ordens e... talvez um cumprimento!
“Riscos”, sem o olhar, disse:
- Duas colunas sobre as condições hospitalares. Estiveste internado, não foi? Um gajo como tu deve ter percebido muitas coisas. Ao meio-dia quero tudo pronto.
E foi sentar-se na sua velha secretária. Preparou a máquina e ficou à espera. Que havia para dizer? Dois terços do tempo estivera a dormir, o outro terço entre a vida e a morte! Pediu com jeitinho ao seu cérebro que se recordasse e o ajudasse. Uma enxurrada de palavras soltou-se e pespegou-se no papel. Quando terminou de escrever eram onze e meia. Levantou-se e foi mostrar o trabalho ao chefe.
O velho leu em silêncio e depois tirou de trás da orelha o famoso lápis vermelho e desatou a riscar. – O “Riscos”- remontava o texto e acrescentava, encavalitando, algumas palavras.
- Continuas o mesmo literário! Mais objectividade, menino! Bem, passa isto a limpo e envia para baixo.
Quando ia a sair ouviu:
- Depois volta aqui que quero propor-te uma coisa. É bom ter-te de novo!
Ele sorriu e levou a mão à cabeça em jeito de continência.

Escrever contos para o jornal? Era uma ideia aliciante. Sempre sonhara ser escritor de verdade e aquela era uma óptima oportunidade para começar.
Logo que chegou a casa revirou a secretária para encontrar os seus cadernos. Leu-os de um fôlego, a mãe até lhe veio trazer o jantar num tabuleiro, porque ele não conseguia interromper a leitura.
Os olhos ardiam-lhe e a noite estava já cerrada quando concluiu com uma certa decepção que todos aqueles contos religiosamente guardados eram imaturos, quase infantis. Ficou desconsolado e deitou-se sobre a cama. Escrever sobre o quê?
De repente a sua atenção foi desviada para o baú onde guardava os despojos da sua vida: brinquedos, cartas, fotografias, etc. tudo era tão vulgarmente raro! Tudo estava tão impregnado de história! Da sua história, da história dos outros!..
E se escrevesse sobre esses objectos?
Naquele momento tudo se tornou mágico, as palavras que lhe vieram à memória encheram de vida as vidas antigas desenhando-se nas páginas brancas do caderno recém aberto.

terça-feira, 16 de março de 2010

O nascimento de uma flor


1. Rompendo a terra escura

Acordei a consciência de mim quando, imobilizada no quente torrão, me abrigara no meu milagre.
Embora incomodada naquela prisão, eu trazia em mim o registo da liberdade, encontrava-o ainda na minha memória desprendendo-se de uma corola!
Era apenas um começo. Mais um! Por isso decidi utilizar o meu esforço em direcções opostas afundando-me em múltiplas raízes que tacteavam o silêncio e na escuridão procuravam equilíbrios e…me seguravam. Foi dessa parte de mim que saciei de seiva, alimento que me trouxe um novo alor e me fez prosseguir. Depois, absorvendo o ar que chegava até mim, elevei-me em altura, e iniciei o exercício de subir arranhando-me nos grãos de terra áspera que me envolviam.
Eu sabia que esse era o meu destino; por um lado prendia-me a terra, por outro, libertava-me da minha forma inicial.
A distância media-se em tempo, em dor, em ansiedade. O importante era chegar segura e forte ao novo mundo que me receberia. O importante era testemunhar que existia e que viveria de forma material para despertar nem que fosse apenas por um só sorriso.
Faltava-me apenas romper a barreira. E assim… numa madrugada, despontei!

O Evangelho de Íris


Constância e Ema



A perseverança e o trabalho são as chaves que abrem a porta ao sonho para este entrar no real.




Constância é coxa. Tem uma perna mais curta que a outra, mas isso não a impede de percorrer quilómetros na cidade e de estar sempre onde é necessária. Teimosa, não desiste nunca dos seus objectivos. Inventa todas as formas que dão corpo aos desejos dos outros.
Ema, qual abelha laboriosa, não pára nunca. Obreira incansável, tem no ócio o seu pior inimigo. Constrói e reconstrói mil vezes a matéria sólida que sustenta a vida.
Num mundo de multidões como é a cidade, tratam por tu toda a gente e chamam-lhes amigos.
Quase não têm vida própria, as suas vidas são as vidas de quem servem, como se fossem essas as suas únicas missões. Por isso são procuradas por todos e esquecidas em seguida. Porém o despeito não entra nos seus corações. Aceitam essa atitude, naturalmente, sem esperar nada em troca.
Durante o reinado de Íris ouviram os seus discursos e sentiram o impulso de a seguir. Modestamente, colocam-se na retaguarda das peregrinas, prestando-se nas suas virtudes, sem palavras. Como oásis no deserto, servem os alimentos simples e a água fresca que revigoram o equilíbrio daquela que jejuara toda a semana.
Íris está fraca, triste e sem voz. Mas tem o braço de Ofélia que a ampara. Mas tem o ombro de Leonor onde chora. Mas tem as palavras consoladoras e animosas de Vera e Andreia e, tem agora os membros do seu corpo em Constância e Ema.
Os sete raios iluminam a sua cabeça.

No lugar onde repousam há água limpa e frutos maduros.
No lugar onde repousam há uma lapinha que as abriga do sol e da chuva.
O lugar onde repousam fica situado numa colina e daí, lobriga-se a extensão da terra até ao limite de outras colinas.
Íris e as companheiras estão saciadas.
Íris e as companheiras, na amenidade do lugar, reflectem sobre a cidade e...turbam-se.
Íris e as companheiras lançam o olhar para além do vale e interrogam-se entre si se devem continuar a semear a Palavra na terra.
- Como podemos levar aos homens o socorro e a ajuda nas suas dores, se eles vestem couraças de orgulho?- Pergunta Ofélia de voz tremida.
Constância que penteia os cabelos de Íris responde:
- Em todas as couraças há costuras. Em todas as costuras, orifícios, onde uma agulha fina penetra e entra. Sejam as nossas palavras agulhas penetrando no seu orgulho e elas percorrerão o corpo inteiro dos homens.
- Como podemos nós levar o consolo aos homens, se o sofrimento lhes endurece os rostos e trava-lhes as lágrimas?- Pergunta Leonor de voz magoada.
Constância que entrança os cabelos de Íris responde:
O sofrimento abre nos corações dos homens a compreensão, no entanto quando ele é demasiado, fecha-os e cerra-lhes os maxilares de desespero. O sofrimento deve ser dado em doses certas. Cada um, por isso, deve aliviar as dores dos outros. Só dessa forma as lágrimas se enxugarão e as bocas se abrirão coniventes num sorriso.
- A verdade, minhas irmãs, a verdade é que os homens sustentam dentro de si monstros escuros que iludem a verdade e os induzem ao erro. Outros, antes de nós vieram e falaram. Cegos os homens não os expulsaram!- Grita Vera revoltada.
Constância que enfeita as tranças de Íris, pára um momento e coloca sobre o ombro de Vera, a mão. Depois responde:
- Não há monstros nos peitos dos homens. Se os houver, também há anjos, que os incitam para a verdade. Os homens são seres frágeis por isso os que vieram antes de nós e nós mesmas, temos que os auxiliar a verem claro.
Quando o conseguimos, Vera, os homens calam os monstros e deixam os anjos falar.
- É isso!- exalta-se Andreia- É isso. A nossa função é abrir os olhos, abrir os ouvidos e abrir as suas mentes para que distingam correctamente as diferentes vias e possam escolher livremente e sem medo.
Constância corre a abraçar Andreia e diz com embargo na voz:
- Querida irmã corajosa, como sabes bem o que é preciso fazer! O que é preciso é não desistir, fazer e refazer um milhão de vezes se for necessário. Outros virão depois de nós para continuar a mudar o rumo dos transviados. Somos nós que temos que recolher os pedaços de ilusão e colá-los de novo tornando-os no primordial objecto.
Só assim o Divino nos poderá enviar o conhecimento através da certeza do nosso pensamento.
Ema, que estivera calada todo o tempo, providenciando o conforto de cada uma, sente que é a sua vez de falar e dela saem palavras serenas:
- Alegra-me ouvi-las nas vossas resoluções. Alegra-me ouvi-las nas vossas certezas. Mas além deste lugar, há outros lugares que ainda não acolheram os nossos passos. É preciso que a Palavra ande, não fique só no ar que respiramos.
Levemo-la connosco sem tardança. Urge o tempo de a lançar.
Íris aplaude emocionada as suas amigas. Resolve que é hora de regressar ao mundo dos homens. Abraça uma a uma agradecendo-lhes e dá ordem de partida.
O sol, que até aí estivera encoberto pelas nuvens, desvia-se e lança lá de cima a luz branca e quente que as anima.

O Caminheiro


O mergulho total




A sua estrada desaguava numa outra, uma estrada de asfalto, barulhenta e movimentada.
A mudança de ambiente fê-lo estremecer. Tinha-se desabituado a viver naquele alvoroço. Apesar de já ter trepado montanhas e descido a vales, caminhado por areia e rochas, o piso desta nova estrada fazia-lhe doer as pernas e sentir-se cansado. Era demasiado plana!
Pela primeira vez em muitos dias preocupou-se com o seu aspecto. Quem o visse julgá-lo-ia um mendigo, um vagabundo. A barba e o cabelo haviam-lhe crescido desordenadamente e em resultado da exposição ao sol apresentavam um tom amarelecido e baço. A pele estava queimada e seca como se tivesse vivido toda a vida ao ar livre e a roupa esfarrapada e suja. A cor das calças já não se podia adivinhar...
Tinha deixado tudo para trás, agora era completamente anónimo.
Estendeu o braço e pediu boleia. Durante muito tempo ninguém lhe prestou a menor atenção até que um camião de gado parou a uns cinquenta metros à sua frente fazendo chiar horrivelmente os pneus. Lançou-se numa pequena corrida e parando junto da cabina abriu a porta. O motorista era um rapaz gordo e boçal.
- Vou até ao mercado. Queres vir?
- Se fizer favor. Agradeço.
O outro ficou admirado com a delicadeza dele. Com o seu aspecto devia estar à espera de um outro tipo de linguagem.
- Que fazes aqui na estrada? Não me pareces um vadio qualquer! – Disse enquanto punha o camião de novo em andamento.
- Ando em viagem...sem rumo...
- Hum! Trazes pouca bagagem. Foste assaltado?
- Não. Deixei-a para trás. Não era necessária.
- Aposto que és daqueles tipos malucos que têm tudo e só se lembram de experimentar ser pobres!
- Mais ou menos.
- Se calhar nem conheces a cidade para onde te levo!
- Não. Mas isso não me interessa.
- Eu vou lá três vezes por semana. E chega!
- Ainda falta muito?
- Mais hora e meia de caminho. De que é que vives? Tens uma profissão, não?
- Sou jornalista. – Soaram-lhe estranhas estas palavras aos seus próprios ouvidos, há muito tempo que não trabalhava. Nem acreditava já que fosse voltar a sê-lo.
- Ah! Se calhar estás a fazer uma daquelas reportagens malucas sobre a vida das pessoas!
- Não é bem isso... (é mais sobre a minha vida) pensou ele!
- Olha eu cá não entendo como é que um tipo é capaz de escrever tanto. Eu quando tenho que escrever fico completamente estúpido. Não me saem as palavras... eu sei o que quero dizer. Mas escrevê-las... também não leio muito. Os títulos dos jornais... e se forem de desporto! Chateia-me a política, não ligo nenhuma às notícias, quero lá saber quem morreu, quem casou ou quem roubou! Quero é saber da minha vida e, pronto.
- Ele sorriu. Fechou os olhos. A trepidação do camião estava a fazê-lo enjoar.
- Estás mal?
- Um pouco... isto já passa. Não se preocupe.
- Abre a janela e apanha ar.
Foi o que fez.
O estômago vazio parecia acumular rios de espuma. Sentia-a ao longo do esófago, da garganta. Uma acidez incrível! A cabeça andava à roda e só conseguia aguentar com os olhos fechados e o corpo quieto.
O outro continuava a tagarelar, não se apercebendo da realidade do seu estado. Ele tinha a certeza que se tentasse responder largaria o vómito ali mesmo.
Quando entraram na cidade, ele pediu que o deixasse ficar ali mesmo. Agradeceu balbuciante e, logo que pôs os pés no chão, dobrou-se para a frente e vomitou.
O suor cobriu-lhe o corpo inteiro, as pernas tremeram-lhe. Nunca se tinha sentido tão mal!
Quando conseguiu recuperar, respirou diversas vezes com força para tentar acalmar-se mas os cheiros da cidade penetravam-lhe o nariz e sufocavam-no.
Há muito tempo que não comia. E ainda por cima sem dinheiro algum. Todos os seus documentos perdidos. Sentia-se fraco. Só lhe restava pedir esmola. Nunca o fizera, mas agora, era uma questão de sobrevivência. Quando se dirigiu aos transeuntes sentiu o medo deles revelar-se nas esquivas negativas ou nas ofertas apressadas. Nunca ninguém tivera medo dele! Era uma sensação esquisita!
Só a meio da manhã conseguiu juntar uns trocos e entrar num supermercado para comprar pão e água. O segurança perseguiu-o descaradamente. A empregada da caixa mostrou-se irritada por contar tantas moedas e, mesmo assim, mirou e remirou algumas não fossem elas falsas!
Acabou por se sentar num banco de pedra do jardim raquítico ali perto. Mastigou o pão lentamente para que o estômago não reclamasse. O sol pálido veio adormecê-lo.
Acordou sobressaltado ao sentir-se apalpado. Era um velho nojento que tresandava a alcool e a roupa suja.
- Desculpe...
Ele reparou que lhe faltava o livro. Provavelmente ao tirá-lo pensara que fosse uma carteira.
- Desculpe... pode entregar-me o meu livro?
O velho descaradamente e sem sequer se mostrar comprometido tirou-o do bolso e devolveu-o sem pressa. Depois levantou-se lentamente com um riso cínico e foi-se embora.
Ele, ficou ali. Sentado sob o calor morno do sol da manhã. Passou a mão em forma de afago na capa do livro. E quase inconsciente abriu de novo as suas páginas.

“ Para que te eleves ao cume sagrado
Deves descer ao negro abismo
Respirares o seu ar envenenado
E libertares-te do dragão do egoísmo.
É que no doentio pântano fedendo
Encontrarás a essência do teu ser
Só nele lavarás o teu espírito doente
E poderás finalmente renascer”

Leu com dificuldade aquelas palavras, como se cada uma aprofundasse o seu mal-estar. Elas diziam-lhe quem era ele na realidade, e que os seus monstros escondidos, calcados pela educação e pelos preconceitos intelectuais, ainda urravam dentro de si. Ó! Que juízo benevolente sempre fizera de si! Não se lembrava te ter magoado alguém propositadamente, de ter roubado, agredido, invejado, ofendido... mas, na verdade tudo lhe tinha sido dado de graça, fora sempre um privilegiado, nunca sofrera privações, a sua família protegera-o de tudo. Agora estava sendo posto à prova, duramente, tornando-o um indigente numa cidade estranha, tendo apenas como arma a sua inteligência e a sua moral!
O céu cobriu-se entretanto de nuvens cinzentas e pesadas e o vento começou a soprar frio e raivoso. Frio. Não sabia ao certo se ele vinha de fora ou de dentro de si... era inquietante!
Deambulou durante o resto do dia pelas ruas irreconhecíveis e a noite veio apanhá-lo de surpresa na margem de um rio poluído que as atravessava sem música, enquanto luzes da cidade se acenderam sinistras dando forma aos fantasmas, diluindo a materialidade da sua existência.
Uma prostituta aproximou-se dele, já não era jovem, mas o seu rosto tinha ainda vestígios da sua beleza anterior. Olhou-a nos olhos, estavam aureolados de roxo e amarelo, e no entanto eram de um castanho puro, tão doces, que o fez sorrir com simpatia. A voz da mulher, rouca e sem entoação, fez-se ouvir no convite óbvio, ele voltou a sorrir, que tinha ele para lhe dar em troca?
A prostituta percebeu, encolheu os ombros, encostou-se ao muro de costas voltadas para o rio. Puxou por um cigarro, acendeu-o, e ofereceu-lhe. Ele aceitou. Partilhou assim o fumo e o fôlego da sua alma!
Ficaram ali durante muito tempo, sem uma palavra, cada qual guardando o seu próprio mundo. Ainda lhe passara pela cabeça fazer perguntas, como por exemplo o porquê daquela escolha, mas sentiu-se ridículo, tinha a certeza que em breve estaria a pregar-lhe um sermão sobre a dignidade da vida. E quem era ele afinal para o fazer? Acaso tinha o direito de se julgar melhor do que ela? Calou-se a tempo. Um carro parou em frente dos dois, a mulher correu para a janela do veículo e conseguiu o que esperava. Partiu. Antes, porém, olhou-o e acenou-lhe sorrindo. Não era um sorriso feio! Era um sorriso-sorriso feito de simpatia e de cumplicidade. Ele guardou-o como guardava sempre os olhares, as palavras e os gestos que passavam na sua vida.
O corpo começou a sentir a fadiga do dia, e arrastou-o mais uma vez na procura de um abrigo. Encontrou-se num beco escuro e húmido cheirando a restos de comida e a urina de gato. Ajeitou-se o melhor que pode num portal de uma casa em ruínas. O frio voltava a atormentá-lo, não tinha sequer uma manta ou uma caixa de cartão que o agasalhasse. Mas o sono veio, fechou os olhos e adormeceu.
Despertou com dores horríveis provocados pelos pontapés e empurrões de um homem de frágil estatura mas grande ódio. Aquele era o território dele e não estava disposto a cedê-lo a ninguém. Atarantado, desalojou-se do seu coito e arrastou-se para o outro lado com o sangue escorrendo da boca. À socapa mirava o outro que também o vigiava sorrateiramente. A lei do mais forte impunha-se, ele era apenas um recém chegado às ruas, o que sabia ele? Ficou ali encolhido à espera que o rei adormecesse. Um rato passou a chiar e o gato que o perseguia. Nunca mais conseguiu que o sono viesse, para agravar todo o seu corpo lhe doía e a fome desassossegava-o.
Quando a luz da manhã voltou ergueu-se com dificuldade e procurou uma fonte que vira na véspera. Mergulhou a cabeça nela na esperança de aliviar a dores. Depois, já sem relutância, resolveu mendigar o pão daquele dia. Porém as pessoas passavam apressadas e desviavam-se de si. Observou então outros que também por ali vagueavam e reparou como se desenvencilhavam. Estava perto do mercado, por isso não era difícil subtrair com relativa destreza uma peças de fruta para o pequeno-almoço. Comeu algumas avidamente, sem culpas, sem medos.
A meio da manhã começou a sentir a garganta seca e um calor intenso. Depois vieram as tonturas e a fraqueza nas pernas. Sentava-se de vez em quando para respirar, todavia o seu estado agravou-se e a dada altura caiu. Teve consciência de que passavam junto de si, de ouvir comentários maldosos e de desprezo. Quis falar, dizer que não era nada daquilo que estavam a pensar, mas as palavras não saíam do seu cérebro e cada vez mais se perdiam no labirinto do seu pensamento.
Não soube como nem quando o levaram para o hospital mas teve a nítida consciência que estava num. Sentiu o cheiro peculiar desse espaço, as vozes e os gemidos, a corrente de ar, a agulha espetada no seu braço. A imobilidade.
Por instinto levou a mão ao peito. Lá estava o livro, não lho tinham tirado!
- Vamos levá-lo para o serviço – ouviu a voz masculina.
- As camas estão todas ocupadas, doutor – respondeu a voz feminina.
- O tipo não pode ficar aqui. Dá mau aspecto. Levem-no para cima, lavem-no e mantenham-no sob vigilância. Se for preciso dêem-lhe um tranquilizante.
- A febre já baixou. É provável que deixe de ter convulsões. Vou ver o que se pode fazer.
Sentiu-se empurrado por corredores até ao elevador. Não conseguia abrir os olhos, ver quem o transportava daquela forma tão impessoal. Mas afinal o que é que isso importava?
Aos solavancos lá se encontrou um lugar para a maca estacionar. Ficou no corredor da enfermaria dos homens entre a casa de banho e o gabinete dos enfermeiros.
Distinguia o tilintar metálico dos instrumentos, a água correndo de um autoclismo avariado, queixumes de alguém que devia estar no fundo. O que o mais o irritava era não conseguir abrir os olhos! Parecia que as pálpebras estavam coladas, pesadas.
Chegou-lhe ao nariz o aroma de sopa de legumes. Só isso já o repugnava.
- Quer uma sopinha? – disse uma mulher próxima de si.
Abanou a cabeça, negando.
- Vá, tem que comer qualquer coisa, está muito fraco!
Voltou a dizer que não com a cabeça. Os lábios e a língua estavam secos demais para falar.
Sentiu de repente uma toalha húmida esfregar-lhe o rosto. Abriu os olhos. Viu a auxiliar que carinhosamente o tratava. Fez um esforço, entreabriu os lábios sorrindo à laia de agradecimento.
- Daqui a pouco já o levo para o quarto. Agora tem que ficar limpinho e bonito. Vou também barbeá-lo. Vai ver que as mulheres até farão bicha para o ver!
- Obrigado – Conseguiu então dizer.
Por um lado era incómodo sentir alguém estranho lavar-lhe o corpo. Tocar-lhe. Por outro, as mãos hábeis que o viravam com cautela , firmeza e ainda, as palavras amáveis, comoviam-no.
Ela vestiu-lhe um pijama lavado de flanela grossa que talvez fosse azul, talvez fosse cinzento. Penteou-lhe os cabelos gentilmente porque alem de estar muito comprido, estava também terrivelmente embaraçado. Fez-lhe a barba com sabão, o que lhe deixou um certo ardor no rosto, ali não havia luxos! Enquanto executava estas tarefas ia também falando com os colegas de trabalho. A dada altura deixou de a escutar, estava tonto de tantas voltas... quase desmaiou. Quando um maqueiro o veio buscar para o levar ao quarto.
Deitaram-no numa cama acabada de fazer, entalaram-lhe a roupa e ajeitaram-lhe a almofada.
- Agora vai descansar, vou trazer-lhe um pão com manteiga e um copo de café com leite. Amanhã os doutores vêm vê-lo.
- Está – murmurou obediente como um menino. Depois sobressaltou-se e perguntou aflito:
- O meu livro? Viu o meu livro?
- Está aqui, não se preocupe, pegue-o. – disse a mulher retirando-o do bolso da bata. – quer que o ponha aqui em cima da mesa?
- Não, não. Dê-mo por favor!
Assim que ela saiu os doentes da esquerda e da direita ergueram quase em simultâneo as cabeças e observaram-no.
Começaram a tecer comentários. Pareciam entendidos no assunto. Não falavam directamente com ele mas, como se ele ali não estivesse, por isso não foi capaz de esclarecê-los.
O tranquilizante proporcionou-lhe um sono profundo e vazio de sonhos, como já não tinha há muito. Acordou de madrugada. Tudo era silêncio. Uma luz ténue de presença indicava a porta do quarto. O corredor mantinha uma luminosidade fraca. O doente da esquerda ressonava, o da direita proferia palavras indistintas. Tinha vontade de urinar, não sabia que fazer, tinha medo de acordar os outros... ainda tentou erguer a cabeça, mas uma vertigem obrigou-o a recostar-se de novo.
Apertou as pernas. Uma dorzita acentuou-se na zona da bexiga e depois nos rins. Precisava de alguém que o ajudasse! Nunca estivera tão dependente!
Lembrou-se de que havia de existir uma forma qualquer de chamar a enfermeira. Levantou o braço e tacteou atrás de si. Encontrou uma campainha, premiu o botão uma, duas vezes. A espera pareceu-lhe imensa!
A enfermeira afinal veio rapidamente e, quase em segredo, ele disse-lhe o que precisava. Ela pegou num urinol guardado na mesa e destramente abriu-lhe as calças e colocou o seu pénis no recipiente. Ficou envergonhado, não disse nada, mas demorou muito tempo até conseguir descontrair-se e a expulsar a urina. Pensou que a quantidade seria superior à capacidade do urinol e que transbordaria, mas a enfermeira adivinhando o seu medo sossegou-o. Aos poucos foi ficando mais aliviado e a dor desapareceu. Assim que acabou, a enfermeira retirou-se e ele suspirou.
Assistiu ao amanhecer no hospital, ao seu crescendo de movimento e barulhos, enfermeiros, auxiliares andavam numa roda viva para pôr tudo em ordem para a visita médica. Os doentes que se podiam levantar, arrastavam-se de toalha ao ombro, sabonete numa mão e copo de dentes na outra, o pente ia enfiado no bolso do casaco ou do roupão. Passavam por ele sem o olhar. Regressavam e enfiavam-se na cama já feita de lavado.
A seguir veio uma rapariga com um aspirador para limpar o chão. Alguns doentes meteram-se com ela que se ria e respondia às provocações com um ar ligeiramente brejeiro. Parecia que toda a gente fazia o possível para tornar mais leve o ambiente.
Só depois de tomar o pequeno-almoço é que vieram os médicos. Vinham a rir, a falar alto, de vez em quando paravam mais demoradamente junto das camas e reliam os processos, observavam os doentes, faziam-lhes perguntas, sentenciavam:
- Mais dois dias e depois pode ir embora.
- Alta? Homessa você não sabe o que está a pedir!
- Sim senhor. Você pode ir hoje mas, cuidado! Não o quero ver aqui nestes tempos mais próximos! Trate de fazer tudo direitinho...
- Então amigo? É desta vez que vai fazer a desintoxicação? A sua família já não aguenta!
- Quem é este?
- Foi o que chegou ontem.
- Hum! Pneumonia. As análises... não estão mal! Como se chama?
Ele respondeu timidamente.
- Você não trazia identificação nenhuma?
- Perdi a mochila com os meus documentos.
- A polícia disse-nos que andava a vadiar no mercado. O que é que você faz?
- Sou... jornalista.
Vários pares de olhos se fixaram nele com a surpresa. Um jornalista vadio? Sem dinheiro e sem documentos? Fizeram-lhe um inquérito cerrado sobre as razões que o haviam levado ao hospital.
Ele respondeu cautelosamente. Contou uma história simples. Andava a fazer uma reportagem original e acabara por se perder e perder as suas coisas. O médico mais velho ia anotando tudo. Mais tarde confirmaria. Aconselhou-o a descansar e a cumprir as prescrições. Garantiu-lhe que numa semana estaria apto a voltar para a rua.
Ele pediu para telefonar à família. Precisava de roupa, dinheiro e sobretudo de confirmar os dados de identificação que havia dado. Tudo lhe foi concedido com amabilidade. Afinal era um senhor jornalista!
A mãe apareceu no dia seguinte extremamente preocupada, trazia-lhe tudo quanto ele pedira menos os documentos. Fora ao pai que coubera essa tarefa.
Apesar do seu sorriso havia uma censura no seu olhar. Aquele filho nunca lhe dera cuidados na infância nem na adolescência e agora, que era um homem, dava em meter-se à estrada sozinho e sem explicações!
Só ao fim de oito dias é que teve alta. Os pais vieram-no buscar e tratavam-no como um menino, ele sentiu-se realmente constrangido!
A viagem foi toda feita em silêncio e, quando chegou a casa deitou-se na cama e adormeceu.
A mãe entrou pouco depois para lhe ajeitar os cobertores e beijou-lhe os cabelos.
O livro estava escondido debaixo da almofada.