sábado, 5 de junho de 2010

O nascimento de uma flor


Depois veio o vento. Zumbia com violência fazendo-me vergar, vinha carregado com o peso das viagens, e poderoso na sua força.
Em regra, o vento não pára para olhar pormenores, passa, cheio de si, varre tudo e, foge depressa para outros lugares. Mas, naquele dia, quando me viu, serenou arfando e perguntou:
- Pequena haste de planta, admiro-te! Como consegues manter-te presa quando ainda há pouco derrubei ramos e caules mais fortes do que tu?
- Porque sou muito pequena e frágil – respondi eu com sinceridade.
O vento amansou mais e murmurou mais para ele do que para mim:
-Como podem as coisas pequenas ter tanta força como eu? – e soprou num assobio que curvou o ar.
-Que importa a dimensão dos seres, oh vento! Tu viajas por eles e não os conheces! Vês tudo de forma igual nessa correria, vais tão cheio de ti que nem mesmo sabes porque avanças nesse delírio interminável! Sabes porque vens e porque vais? Nem mesmo te deténs para observar a tua obra!
- A minha obra?
-Sim, muito do que existe a ti se deve! A rocha ficaria eternamente informe, não se esculpiria de graça, as plantas não se reproduziriam, os pássaros não voariam… tudo se infectaria de podridão. Não percebes quanto és importante na tua passagem? Como podes mudar a vida?
O vento enrolou-se num redemoinho de embaraço e ronronou como qualquer brisa infantil.
- Sim, torna-te brisa e… afaga-me… preciso desse carinho no meu corpo jovem. De que tens medo? Essa é uma forma de cativar, não precisas de dominar!
Desajeitado, o vento, soprou devagarinho sobre mim e fez-me dançar. Logo as nossas emoções nos uniam numa coreografia de sons e gestos. Ele aprendia a alegrar-se e descobria o seu lado terno da existência.
Já quase no final da tarde despediu-se, ia ameno, completo. A sua paixão tornara-se algo mais perene, firmava-se agora na certeza da sua utilidade.
Fiquei contente. A partir desse dia, todas as plantas conheceriam a meiguice do vento em suas folhas!



O Evangelho de Íris


Planície


A planície é o lugar onde o espaço se dilui com a consciência dos homens.






A muitas horas de distância da última fonte, sob o sol ardente do meio da tarde, pela planície queimada, vão arrastando-se, sedentas, suadas e entorpecidas as companheiras de Íris.
O mundo que já percorreram vem-lhes à memória, sobretudo os momentos amargos que lhes deixaram o travo nas línguas doridas.
Qualquer direcção dos pontos cardeais leva-as ao infinito. Só se vêem searas queimadas e aqui e além uma gota de sangue no corpo das papoilas, um grito aflito em raros sobreiros.
A planura torna mais pequenos os homens, fá-los reconhecer a sua pequenez. A aridez torna mais frágeis os homens, fá-los reconhecer a sua dependência. O calor intenso esgota-lhes as forças e cala-os, levando-os a falar com o seu interior e a perder-se em meandros labirínticos de confusão.
As serpentes e os escorpiões escondem-se na palha, prontos a morder os pés incautos.
A dimensão da planície não se mede, o horizonte longínquo é enganador. Somente o carreiro de terra vermelha bordado de tojos, indica um rumo.
Agora que falta tão pouco para acabar este ciclo, Íris sente na alma o tormento da dúvida e, pressente já a borrasca que tentará romper a teia urdida por si. Já vê nos rostos das outras o medo, o desalento e a revolta.
Vai ouvi-las...

Vera já dominou o que tinha a domar, quase rebenta de fúria, por isso pára e grita. Grita tão alto que algumas das suas palavras se arrastam e espalham na planície!
- Parem! Parem! Ouvi o que tenho a dizer. Estamos perdidas num círculo. Um círculo que nos veda os avanços. Aonde nos levas Íris? Para que nos levas?! Acreditámos em ti, conhecemos de cor as tuas palavras, mas é uma loucura! Estamos vencidas, somos filhas de homens e de mulheres, o nosso espírito não voa como o teu, já não conseguimos ajudar ninguém! Quem quis mudar mudou, que mais poderemos fazer pelos outros? Hoje és já uma mulher, tens poder e força para prosseguir. Deixa-nos regressar à nossa origem. As caminhadas são demasiado longas, tornam-se inúteis. Acabou Íris, acabou!
- Cambada de cobardes!- vocifera indignada Andreia- Onde está a vossa convicção? Alguma de vós foi obrigada a segui-la? Porque não ficastes nas vossas vidinhas cheias de coisas pequeninas? Vejam, ela não mostra, mas doem-lhe as vossas palavras, os vossos pensamentos. Há mais tempo do que nós, ela caminha. Já percorremos tanto! O que custa terminar? Todas sabemos que não é fácil, que é tortuosa esta via, mas viemos. Porque querem agora desistir? Vamos! Ânimo! Depois da planície virá a lagoa onde repousaremos e lavaremos as nossas feridas. Temos fome, sede, estamos cansadas. Mas quantas vezes isso aconteceu? Também sabemos que logo seremos generosamente recompensadas! Vá, dêem as mãos, soltem uma bela e sonora gargalhada, lancem no ar um canto de alegria, é só mais um passo! Estamos a chegar.
Íris escuta-as atentamente, depois de forma enérgica pergunta:
- Quem me quer seguir?
Leonor, Andreia, Constância, Ema e Lectícia colocam-se a seu lado. Vera e Ofélia afastam-se um pouco.
- E tu não dizes nada?- Pergunta a Paula que se não movera.
- A minha casa fica por de trás da colina, só agora aqui cheguei. Não tive tempo ainda de aprender. Nada me pediste, nem eu a ti, segui-te porque vi em ti a luz. Ainda vejo...
É a vez de Sofia, que conhece tão bem como Íris a Palavra. a sua voz é suave mas pincelada de desafio.
- Íris, minha irmã será realmente este o caminho?
- É, tu sabes que sim. Pode ser o mais longo, o mais árduo, mas é o mais seguro para atingir a glória.
- Eu prefiro atingi-la de outra forma...
- Eu sei. Por isso a divindade maior me enviou a mim. És tu que me segues e não eu a ti. - Responde com uma autoridade desabitual, Íris.- Dispam as vossas roupas, montem uma tenda aproveitando o que puderdes. Esperem-me aqui até que regresse. A sombra que conseguirdes aliviará um pouco do vosso calor. A brisa do entardecer refrescar-vos-á. Sofia, Paula, acompanhai-me. Vera, Ofélia, apelo agora à vossa obediência.
O silêncio voltou ao grupo.
As ordens foram cumpridas.
Íris acompanhada pelas escolhidas avança pelo carreiro.

No final do carreiro há dois desvios: um dirige-se para a lagoa, outro vai até uma anta milenária. É este o que Íris escolhe.
Antes de entrar no velho monumento indica a Sofia e a Paula onde devem aguardar.
A noite já caiu. Hoje não há lua e as nuvens que ameaçam trovejar escondem as estrelas.
Aplanando um pouco o chão, limpando-o à entrada da anta, Íris senta-se. Está tranquila apesar de tudo. Ordena então ao seu coração que pare por momentos e, fica queda, esperando o milagre.
Sofia e Paula não adormecem, estão inquietas e olham para a frágil figura com uma interrogação. De repente, da abóbada escurecida, três astros luminosos descem sobre Íris. O espírito desta também se eleva e juntos iniciam um bailado de luz. As voltas, os ziguezagues que fazem entontecem Paula e estremecem Sofia. Não sabem quanto tempo dura a coreografia porque o tempo pára nesse momento.
Depois, quase madrugada, os astros recolhem-se e o espírito volta ao corpo de Íris. Estremunhadas, gatinham até ela e Paula pergunta:
- És tu a própria divindade?
- Todos o seremos um dia- responde Íris- esta é uma das suas manifestações da qual faço parte. Por ora não digais a ninguém o que vistes. Podereis falar depois, depois de tudo terminado. Regressemos irmãs. Regressemos porque nos esperam.

O Caminheiro


O tesouro




Alugara uma carrinha daquelas que têm três lugares à frente e atrás um amplo espaço para levar toda a tralha que julgamos necessária. Ainda pensara comprar uma caravana, mas não se tornava tão cómoda!
O veículo estava em bom estado, mas como era natural, custou-lhe a adaptar-se à sua condução. Rolava por isso com alguma lentidão.
Levava o que considerava imprescindível; fogão de campismo, cobertores, caixa de primeiros socorros, etc. Tudo poderia vir a revelar-se útil.
A estrada do litoral por onde seguia era recortada por falésias e praias, alternando com espaços agrícolas. As povoações conciliavam as casas brancas e pequenas com prédios de apartamentos para turistas.
Nessa noite talvez fosse dormir a ...., uma pequena cidade que já fora outrora rica e próspera. O nome dessa cidade sempre despoletara nele um interesse estranho; um misto de saudade e sofrimento e no entanto era a primeira vez que resolvia visitá-la.
Durante a caminhada da sua juventude nunca se afastara muito do centro do país mas agora que possuía um transporte aventurava-se a ir mais longe.
Com o entardecer a temperatura baixou e por isso fechou a janela. A carrinha não estava equipada com rádio nem leitor de cassetes portanto, a única coisa que podia fazer, era cantarolar umas velhas canções.
A sua voz não era das melhores, felizmente ninguém estava ali para o ouvir! Desconhecia metade das letras e desafinava na outra metade. Com uns lá-lá-lás à mistura com hun-hun-huns, acabava por ser divertido! Quando esgotou o stok musical virou-se para as últimas piadas que ouvira. Eram francamente estúpidas, mas tudo isto tinha o condão de o pôr a rir de si próprio. Foi com agrado que ouviu as suas gargalhadas soarem alto naquela solidão!
Mais cedo do que pensara foi surpreendido pela noite e com a falta de iluminação deixou-se de brincadeiras e levou muito a sério o resto do percurso.
Quando entrou na pensão já não serviam refeições, porém, solícito, o dono preparou-lhe umas sandes e uma cerveja. Logo que acabou de comer foi para o quarto. Enfiou-se na cama. Então, o cansaço do dia fez-se sentir, os músculos das costas e das pernas começaram a doer-lhe horrivelmente. Levantou-se e tomou um duche de água quente para os relaxar. Voltou para a cama, mas apesar de ajeitar vezes sem conta a almofada, de afastar a coberta, e de mudar de posição, ao ponto de se ter virado para os pés da cama, não conseguia dormir. Ficou tremendamente irritado. Afinal no outro dia estava decidido a levantar-se cedo para retomar a viagem, desta forma não iria conseguir com certeza!
O vento começou a soprar de madrugada, primeiro, brandamente, depois sacudindo com força os ramos das árvores e assobiando por entre as gretas da janela. Enrodilhou-se ainda mais nos lençois já soltos, como se se protegesse. Até que uma espécie de sonho o veio embalar.
Viu-se a observar cenas de uma batalha medieval. Ouviu: o entrechocar de espadas e lanças, o relinchar dos cavalos, o som dos seus cascos raspando a terra, e os gritos dos homens excitados e doridos. Viu: as expressões de raiva e de medo, o relampejar das armaduras em movimento, as lágrimas sujas escorrendo pelas barbas emaranhadas. Cheirou: o suor e o sangue dos homens, a poeira e a urina, e ao mesmo tempo o doce aroma dos pinheiros que emolduravam o cenário.
E ele ali estava!
Entre os outros, montado num cavalo malhado e forte, pouco elegante, mas ágil e resistente. Um cavalo de batalha! O peso da sua espada deslocava-se para a direita e para esquerda num contínuo espadanar. A certa altura passou por si um vulto, e simultaneamente, uma dor intensa perfurou-lhe o abdómen. Tão intensa! Tão viva! Que ele deixou de ver tudo o que se passava para se centrar apenas nela. Tudo o que existira até ao momento foi-se diluindo, e lentamente, foi entrando na escuridão do próprio som.
Sentiu-se flutuar desamparadamente num vácuo sombrio. Não conseguia reagir. Era incómoda aquela sensação de dormência! Angustiante! Eterna!

Acordou encharcado em suor e custou-lhe a levantar-se. A luz do sol já inundava o quarto. Pôs os pés nus no chão de madeira arrastou-se até à janela. Abriu-a. estava linda a manhã! O cheiro dos campos entrara de golfada no seu peito, lavando-lhe as angústias da noite. Que sonho!

Voltou à estrada para procurar um lugar que nunca tinha visto. Esta ramificava-se em caminhos estreitos e mal tratados. Entrou instintivamente por um à sua direita e foi ter a uma pequena aldeia sentada no sopé de uma velha montanha que há muito havia perdido a vegetação. Parou a carrinha no largo, tirou a mochila, e resolveu subir por entre pedras e espinhos. Trepou com um impulso irracional a encosta bravia até chegar ao seu cume. O sol do meio-dia reflectia-se nas rochas esbranquiçadas duplicando o calor. Resolveu tirar a camisa e atá-la na cabeça para se proteger e verificou estupidamente que se havia esquecido de trazer água, ainda por cima não vislumbrava um pequeno fio que fosse. Mais teimoso que a própria sede, não desistiu. Ao chegar ao cimo do monte compreendeu que se tratava de um planalto ligeiramente inclinado para o interior, aumentando assim a dimensão aferida antes. Não havia um único arbusto por perto. Passou a língua pelos lábios e sentiu-os gretados. Acalmou a respiração e voltou a olhar em redor. Um enorme penedo chamou a sua atenção. Ficava quase no declive oposto e tinha uma forma invulgar.
Aproximou-se. A rocha parecia ter sido escavada no seu interior por mãos humanas. Ao tocá-la foi como se uma descarga eléctrica o atingisse. Talvez fosse a emoção! Só não compreendia porque a sentia! Havia nela qualquer coisa de chamativo. De um salto alcançou a borda e sem pensar internou-se nela. Arrastando-se num túnel diagonal avançou na sua exploração. Tornava-se obsessivo! Deparou-se então num espaço circular. Apontou o foco da sua lanterna lançou um grito de surpresa.
As pernas fraquejaram, o suor escorreu desenfreadamente pelo seu corpo e, um enorme arrepiu desceu da sua nuca até à cintura. Era como se reconhecesse aquele lugar!
Nunca estudara arqueologia mas tinha a certeza que se encontrava dentro de uma capela cuja construção se situaria algures no século XII ou XIII. As paredes conservavam ainda o colorido dos frescos que em narração pictórica contavam a vida de um dos muitos santos da época. O chão, lajeado tinha inscritos nomes e datas assinalando que aí repousavam resto mortais de homens contemporâneos. Recuado e tombado, um altar de pedra rosada. Simples, sereno, digno.
O tempo havia submergido a capela e o destino tinha-o chamado para a reencontrar. Com que finalidade? Elevou os olhos para a cúpula branca e resvalou pelas paredes os dedos trémulos. Sentiu o calor das imagens, as arestas, as fissuras, e nada mais. Baixou então o corpo acocorando-se, e procurou decifrar as palavras inscritas nas lajes, foi atraído para uma da qual só conseguiu ler: JOANNES V ALVARES, MONGE-CAVALEIRO, M—XXXIV. Não conseguiu perceber se se tratava de um C ou de dois CC, só sabia que ali havia um espaço em branco demasiado largo par conter uma letra e demasiado estreito para conter duas, entretanto a luz da lanterna começou a esmorecer e ele resolveu sair e regressar no dia seguinte, desta vez com as ferramentas necessárias. Foi difícil escalar porque tinha muito pouco a que se agarrar, teve que fazer um movimento de lagarta o que, para quem não está habituado, se torna extremamente cansativo e doloroso. Ao chegar à superfície ficou encadeado com o sol da tarde. Desceu até ao vale bastante entontecido mas com a firme decisão de voltar a pesquisar melhor aquela capela.
Na aldeia não existia qualquer lugar onde pudesse pernoitar, nem nenhum armazém onde pudesse comprar o que necessitava, portanto resolveu voltar à cidade. Antes disso, assinalou bem o lugar num bloco de notas, o percurso, e fez uma pequena lista de compras.
Apesar das emoções e da rudeza do dia, quando chegou à cama, a mesma da noite anterior, caiu num sono profundo.

Logo de manhã, assim que se despachou, rumou de novo de encontro ao seu achado. Desta vez proveu-se de tudo e encheu a mochila com mantimentos. Ah! A água não foi esquecida! Falou com um homem da aldeia e disse-lhe que era professor de História e que andava a estudar o local, pediu-lhe que guardasse a carrinha de forma segura. Por incrível que pareça, o homem não se mostrou admirado e referiu-se até que ele era já o terceiro doutor a aparecer no espaço de meio ano. Interessado, ele perguntou se por acaso tinham falado nalgum achado. Se sim, nunca o tinham revelado, um deles parecia ter feito qualquer descoberta pois, quando regressara, vinha com um ar estranho, quase mágico. O outro, tanto quanto sabia, desaparecera sem deixar rasto. Só se tinha saído de noite e ninguém o tivesse visto! Intrigado, mas não desiludido, ele iniciou a subida. Quem seriam os outros dois? O que fora que os levara ali, um de cada vez, sem que nenhum soubesse da existência dos outros? Não se apercebera que alguém tivesse entrado dentro da capela antes dele! E a população também parecia não saber de nada!
Agora parecia-lhe menos penosa a subida, reconhecia até certos pormenores, e quando chegou à entrada suspirou de alívio. Mas mesmo assim relanceou o olhar por cima dos ombros como se sentisse observado. Ao mergulhar, arrastava a mochila, a pá, o cantil e isso dificultava-lhe bastante os movimentos. Tivera ainda o cuidado de atar a ponta de uma corda ao exterior para que o regresso fosse mais fácil que na véspera.
A sensação de espanto que tivera pela primeira vez foi substituída pela sensação de regresso ao lar. Antes de iniciar a abertura da sepultura, pensou se não seria mais natural verificar as outras. Quem sabe se algum dos nomes lhe soasse conhecido? Limpou cuidadosamente uma a uma das inscrições, quase todas pareciam referir-se a monges e clérigos da região. A única que mencionava a qualidade de cavaleiro era a tal de Joannes.
Esteve muito tempo acariciando a laje, passando nela, os dedos com ternura. Depois, com uma espátula foi raspando cuidadosamente o seu perímetro tentando encontrar uma abertura. Logo que conseguiu encaixar o pé-de-cabra, mais em jeito do em força, levantou a tampa. Demorou horas nesse trabalho, a terra soldara com firmeza as brechas! Mas à medida que a ia destapando, aumentava o seu nervosismo. Por fim conseguiu erguê-la. Pesava muito mais do que imaginara pois tinha quase vinte centímetros de espessura! Quando viu o buraco aberto sentiu temor.
Iluminar a profundidade de uma tumba era afinal algo que o incomodava ainda! Esperava encontrar ossadas, restos de tecido, enfim qualquer vestígio da humana presença! Nada. Absolutamente nada! A sepultura parecia nunca ter servido a alguém. À parte alguns insectos e outros bichos rastejantes que se sentiram atarantados pela invasão dos seus domínios, nada existia. Sentou-se desanimado no chão. Quase que sentia raiva por ter feito todo aquele esforço inglório, era como se tivesse sido enganado!
Passados os momentos de frustração, lembrou-se do seu guia, o velho livro deveria dizer alguma coisa sobre o assunto. E leu:

“O óbvio não existe quando há procura
É o mistério que impulsiona o saber
Aquele que pensa que a vida é segura
Jamais virá um dia a poder entender.
No entanto a resposta pode estar perto
Naquilo que negligentemente desprezaste
E encontrá-la é o caminho mais certo
Será que para isso te esforçaste?”

Tinha que estar ali. A resposta para a pergunta que ele ainda não formulara. Voltou a olhar atentamente em redor. Centímetro a centímetro, e a luz já enfraquecida varrendo o friso do rodapé! Quando estava para desistir, reparou então numa espécie de alavanca que se disfarçava debaixo do altar. Premiu-a com firmeza e um ruído áspero e seco fez-se ouvir. O altar apesar de derrubado, foi-se deslocando e mostrando uma nova entrada subterrânea. Excitado nem hesitou, pegou em tudo o que lhe pertencia e desceu. Os degraus eram sólidos, pisou-os um por um na certeza do caminho.
Encontrou-se então numa sala rectangular onde se mantinham três mesas de madeira e bancos compridos de cada um dos lados. Sobre uma delas, estava um livro aberto, intacto, grande e pesado. Sentou-se, e com todo o cuidado, foi passando as páginas que ameaçavam desfazer-se. Tratava-se de um livro de crónicas, vidas de santos e de heróis. De repente lá estava, Joannes V Alvares. Quase saltou de alegria! E com sofreguidão, leu tudo a seu respeito.

Joannnes V Alvares, havia sido um jovem nobre mui parco de haveres, por isso partira como tantos outros, à procura da glória e da fortuna. Fizera-se cavaleiro de uma ordem monástica e durante cerca de dez anos nada fizera que merecesse relevância até que, não se sabe bem por que razões, fora enviado para a Palestina.
Segundo constava, a viagem fora dura e tormentosa, e como era natural fora difícil adaptar-se ao clima e à nova sociedade. Nessa altura o mais importante era manter os domínios da Ordem em solo estrangeiro e inimigo, o que levava a que os cavaleiros estivessem constantemente em rixas quer com os infiéis, quer com as outras ordens ali fixadas.
Pela descrição, Joannes teria sido um homem intempestivo e pouco prudente, daqueles que por isso mesmo se tornam mitos. Numa dessas lutas foi capturado e vendido como escravo. A seguir o livro narrava todos os tormentos e sacrifícios que ele passara com cada um dos donos que o compraram. Um dia porém conseguira iludir a vigilância e fugira para casa de um velho que tinha fama de santo e sábio. A partir dessa altura tudo mudou para ele. Aprendeu com o velho todo um pensamento diferente daquele em que fora educado. O livro referia-se a esta personagem como um mago mas o mais provável é que se tratasse de um alquimista árabe. Respeitosamente tratado, Joannes interessou-se pelo conhecimento do seu protector e, a pouco e pouco, foi modificando o seu temperamento, alterando as suas atitudes, tornando-se ele próprio num estudioso. O livro não esclarecia quanto tempo ele vivera foras do país, mas fazia referência que à sua chegada andava pelos cinquenta anos e, o mais importante, que trouxera com ele um tesouro.
Talvez pensasse vir gozar com tranquilidade os seus últimos dias, mas uma guerra interna apanhou-o e, como era seu dever, teve que entrar nela e lutar ardentemente até ser atingido por uma lança que lhe pusera fim à vida. A curiosidade natural dos que lhe eram próximos, levou a que lhe revistassem os aposentos embora nem ouro, nem prata, nem relíquias de santo, encontrassem.
Apenas um livro. Um pequeno livro que tinha o condão, quando aberto, indicar à pessoa que o possuía, o caminho a seguir. Aterrorizados, os homens que o acompanharam nos últimos tempos de vida, foram entregar ao abade o livro que desde logo o considerou perigoso e o fechou em lugar seguro.
A história do monge-cavaleiro terminava dizendo que o corpo dele desaparecera enigmaticamente antes do funeral. Em breve nasceu uma lenda em redor do monge-cavaleiro Joannes V Alvares, lenda essa que com o passar dos anos, foi esquecida.

Sem saber bem porquê, as lágrimas correram-lhe pela cara abaixo, voltou a subir os degraus e com reverência sincera colocou o livro no túmulo aberto e fechou-o em seguida. Voltou à superfície com a sensação de ter feito uma viagem no tempo e de ter cumprido um destino.

Ainda não era noite, mas as nuvens cinzentas obrigaram-no a conduzir com os máximos acesos. Desta vez não fazia ideia nenhuma para onde ir.