domingo, 20 de dezembro de 2009

Misterioso




Para além dos mistérios e dos universos
Ondula esquivo o teu olhar de navegante
Em intensa, fantástica procura, constante
Vagueando no mundo das palavras em meus versos.

Cerrado no culto, qual solene oficiante
De ritos que esconjuram presságios adversos
Dominas meridianos e seus inversos
E fazes-te ao mar, como mareante.

Transportas, ainda mesmo que o não saibas dizer,
Arrastada, a indomável e estranha fera
Que se manifesta, tocando e me faz doer.

Enquanto que eu queda no porto da tua espera
Abrigo no colo aberto para te receber
A encarnação felina da enorme quimera.

O Evangelho de Iris


Leonor
Ainda que não se veja, a compaixão adormece as dores e suaviza os sofrimentos.




Leonor tem nos olhos o espelho do mar. É sua filha porque nasceu no barco que a viu crescer e que continua a ser o seu lar.
Dizem os homens da vila que Leonor tem pacto com a Lua, que aprendeu com ela o seu sorriso suave e que a luz do seu olhar aquece as almas tiritantes, que alumia a escuridão dos medos e domina as marés da revolta.
É mansa Leonor ! Tão mansa que o mar se encanta com ela !
Íris e Ofélia caminharam para a vila que se planta junto do mar. Recebem o seu cheiro como uma nova experiência, apetece-lhes mergulhar naquela imensidão bordada de ondas constantes. Têm os pés feridos da caminhada. Leonor vem até elas, chama-as para a beira-mar e lava-lhes as feridas com água salgada e beija-lhes os pés com meiguice.
Íris pergunta-lhe então:
- Queres tu espalhar a compaixão nos caminhos que percorrem o mundo e seguir-me para além de todos os carreiros?
- Quero. - Responde Leonor - Quero que o luar que habita em mim se espalhe na negrura dos caminhos.
- Queres tu com a tua compaixão ouvir todos aqueles que carregam fardos maiores do que eles ?
- Quero. Quero que o sal que se desprende de mim sare as feridas abertas dos que se queixam.
- Queres tu, juntamente connosco, levar a esperança e a caridade a quem desespera e sofre ?
- Quero. Quero que a liquidez do mar que me constitui envolva também os outros e que lhes naufrague o medo.
Então Íris junta nas suas as mãos de Leonor e Ofélia, pedem silêncio ao mar que é espelho do céu, as palavras. Fica parada no tempo da emoção e por fim murmura:
- Que a ajuda seja feita de compaixão e que a compaixão seja sempre de ajuda que ambas me sigam até à cidade onde a loucura dos tempos incendeia os vícios. Tu, Ofélia, sê a mão caridosa que segura e tu, Leonor, sê o sorriso que sustém o olhar de quem se sente perdido. Tornai-vos hoje filhas da divindade que nos indicará a jornada.
Ambas as discípulas se sentam agora no areal esperando com Íris, a Palavra.
Íris eleva a voz para as ondas e pede:
- Mar. Tu que és feito das águas do mundo; das fontes que correm para os ribeiros, dos ribeiros que enchem os rios, e que Te alimentam. Mar. Tu que és feito das lágrimas e do suor daqueles que se alimentam de Ti, diz-me o que tens a dizer !
Um búzio rola nas ondas e vem até junto delas, Leonor apanha-o e entrega-o a Íris que o coloca no ouvido e repete o seu recado, frase a frase com o vagar de quem medita:

- Felizes os que acreditam que um grão de areia os pode suster.
Eles sentir-se-ão seguros no seu caminhar.
- Felizes os que aceitam as tormentas sem revolta.
Eles também saberão sorrir à bonança.
- Felizes os que forem capazes de mergulhar na escuridão à procura de luz.
Eles encontrá-la-ão e serão por ela alumiados.
- Felizes os que sabem calar os seus segredos na caverna dos seus peitos.
Eles passarão a receber nessa caverna a voz do oceano que os tranquilizará.
- Felizes os que comparam o azul do céu ao azul do mar.
Eles estão no caminho certo.
- Felizes os que sabem que uma maré se segue a outra assim, sucessivamente, até ao fim dos tempos.
Eles serão eternos.
- Alegrai-vos pois porque vos escolhi como mensageiras da Palavra, do Socorro e da Compaixão.
Vós fareis parte de mim em pouco tempo.

As raparigas levantam-se e seguem pela marginal em silêncio. Ali os homens não tiveram medo. Ali a divindade não se vestiu de cor mas falou na língua do mar.
A cidade espera-as..

O caminheiro


Estranho contacto




A noite apanhou-o ainda no percurso.
A neblina envolveu-o criando um cenário de feitiço.
Não sabia onde estava, caminhava apenas tendo como orientação a cúpula de uma igreja longínqua levemente iluminada.
Daí a algum tempo os seus pés pisaram uma estrada. Era de terra batida, estreita e esburacada, mas tornava-se uma esperança de vida.
Uma casita aqui, outra além, e na escuridão acabou por encontrar uma pequena vila adormecida. Àquela hora não era provável que lhe dessem abrigo.
Por instinto encontrou a igreja que fora seu farol, recolheu-se num canto abrigado e adormeceu.
Sentiu que o abanavam com firmeza mas o seu corpo não respondia, estava entorpecido tanto pelo o sono como pelo esforço da véspera. Os olhos resistiam, cerrando-se ainda mais.
- Ó homem, homem! O que faz aqui a esta hora? Levante-se que ainda fica doente. Vá venha comigo, dentro da minha casa há um bom fogo onde se pode aquecer e um caldo acabado de fazer. Está a ouvir?
O calor prometido começou a despertá-lo, aos poucos foi reagindo, abriu as pernas e os braços, tornou a fechá-los e enfrentou o homem de idade avançada e magro que tinha na sua frente. A luz apesar de fraca deu para o observar. Tinha um rosto estranho, quase mítico, dele sobressaíam-lhe uns olhos escuros, muito vivos, um nariz e um queixo salientes e uma boca que se divertia discretamente.
- Então homem? O que faz por aqui? É forasteiro?
- Atravessei ontem toda a serra a pé e quando cheguei já não havia ninguém a quem pedir abrigo...
- Venha comigo, esta neblina dá cabo dos ossos de qualquer um. Eu moro já ali.
Ele levantou-se, as pernas doíam-lhe, tinha uma pressão incómoda na cervical. A posição em que adormecera fora castigadora. Atrás das passadas rápidas do homem, caminhou trôpego.
A casa ficava no outro lado do largo. Era relativamente pequena, na fachada havia apenas uma porta e um postigo. Quando entrou viu-se numa espécie de átrio empedrado e abobadado. O corredor em frente estendia-se até à cozinha. Pareceu-lhe ter entrado de repente num laboratório alquímico da Idade Média. A mesa comprida de madeira e mármore ocupava quase todo o compartimento, em cima dela estavam bicos de bisel, retortas, tubos de ensaio, toda a panóplia utilizada para experiências do género! Numa parede do fundo havia um forno encastrado, ao lado uma chaminé e uma lareira onde uma trempe suportava um caldeiro de ferro.
- Garanto-lhe que é caldo de hortaliça! Hoje não há sapos... ( riu o velho ao ver a sua cara de espanto)
- Parece que entrei noutro tempo!
- Sente-se, sente-se aí nesse canto.
- Se... se não se importasse gostava de lavar as mãos e... a cara.
- Além, olhe está a ver? Há ali uma pia, um jarro com água e sabão. Não tenho casa de banho. Para urinar saia essa porta que dá para o quintal. É o que lhe posso oferecer...
- Agradeço muito.
Saiu até ao quintal, para seu espanto viu um vasto espaço primorosamente cultivado. Havia desde árvores de fruto a ervas medicinais, passando é claro, pela horta. O sol começava a dar sinais de vida e todas as plantas estavam cobertas de orvalho.
- Que rico quintal o senhor tem aqui!
- Sou eu que trato dele. A sopa que vai comer é feita com legumes e hortaliças dele. Vai ver como lhe vai saber!
Lavou-se rapidamente e sentou-se à mesa. Um cheiro delicioso lembrou-lhe que já não comia há muitas horas.
O velho acompanhou-o, repetindo várias vezes e insistindo que ele ficasse à vontade.
Estava cansado, transpirava imenso, recostou-se na cadeira com a sensação de que ia desmaiar.
- Isso já passa, é da fraqueza. Deixe-se estar tranquilo.
O velho pegou nas tigelas e lavou-as. Veio sentar-se junto dele com as pernas esticadas para o lume. Acendeu o cachimbo e ofereceu-lhe. Ele recusou educadamente.
- Então já se sente melhor?
- Já sim, muito obrigado.
- Disse que tinha atravessado ontem a serra...
- Sim, precisava de fazer esse caminho!
- Os caminhos são para se cumprirem, e neles há paragens obrigatórias...
- O senhor é sempre assim tão hospitaleiro?
O outro riu. Uma gargalhada rouca de completa surpresa.
- Nunca me deram esse nome! A maior parte das vezes chama-me bruxo. É o preço de quem não se obriga a ser como os outros....
- É alquimista?
- Não, ainda não... vou dominando e transformando a matéria, mas dificilmente serei um dia alquimista!
- Vive sozinho?
- Que remédio! Enviuvei há quatro anos e não há por estas redondezas mulher que me ature!
- Afastou-se do mundo com o desgosto da perda?
- Não. Longe disso! Sabe, há muito tempo que não falo com ninguém. Pelo menos com alguém que valha a pena! Hoje estou bem disposto e penso que a minha história o ajudará.
- Porque diz isso? Não me conhece...
- Posso vê-lo como realmente é. A minha casa é uma paragem obrigatória no seu caminho.
- Talvez! Não tenho nada a perder!
O velho retirou do lume o caldeiro e pôs-se a fazer o café, com gestos regulares foi colocando as canecas e o açucareiro em cima da mesa.
Despejou o resto da sopa numa malga velha e assobiou. Três enormes gatos malhados apareceram de algures e atiraram-se à comida. O dono fez um afago a cada um deles.
O cheiro do café invadiu a cozinha e ambos se prepararam para o beber.
Depois de um demorado olhar, o velho começou:

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Quero-te livre


Chagal
Com as asas abertas no limite do infinito
Querera eu ver-te planando sobre o destino.
No cimo de escarpas ao vento libertador
Querera eu ver-te dançando em seu redor.

Ver-te livre, livre, como águia ou falcão
Longe da rotina árdua da tua função.
Ou ainda, como onda em mar revolto,
Salpico de suspiro, salgado e solto.

Querera eu ver teu verde olhar desperto,
Teu sorriso endiabrado um pouco mais perto.
E sentir que os teus braços abraçavam viris
O universo inteiro, deixando-o feliz.

O Evangelho de íris


Ofélia

Há sempre um momento em que mesmo os mais fortes precisam de socorro e da ajuda do próximo.



Ofélia não tem sonhos. Mesmo que os tenha estão guardados no fundo do coração. Ofélia já não anda na escola, não conseguiu aprender mas dá em cada dia de vida uma lição de ajuda a quem a procura.
O corpo de Íris foi encontrado à porta da aldeia.
Trouxeram-na ao anoitecer ardendo de febre. Ofélia passa a noite a velar, refrescando-a, falando-lhe, tocando-a com o seu amor de menina.
Íris ouve-a, sente-se grata mas a voz parece ter-se perdido algures e não a encontra. Deixa que uma lágrima se solte e escorra na palidez do seu rosto. Com um dedo só Ofélia limpa a lágrima e limpa o medo.
A puberdade chega para Íris e estranha o seu corpo assim como estranha também aquele tagarelar à sua volta. O silêncio de Ofélia é agora cúmplice e doce. Não lhe faz perguntas somente deixa que as mãos lhe manifestem o carinho.
Aos poucos Íris começa a acreditar que a procuram. Dói-lhe, mas as palavras saem da boca sem pensar. Ofélia não entende as palavras mas compreende que a divindade de Íris não se reverencia, apenas se ama como se ama cada ser que existe.
O medo supersticioso dos aldeões começa a invadi-los.
Íris reconhece esse medo nos seus olhos, sabe que também terá de fugir daquele lugar.
Só tem em Ofélia a ajuda. Sabe que ela não a abandonará.
Procura ao amanhecer do Sol e ele no distante horizonte não lhe diz nada.
Procura no ribeiro as gargalhadas das fontes, mas só observa a água correndo apressada no seu destino.
Procura nas flores o seu perfume mas este mistura-se no ar com os outros cheiros e confunde-a.
Procura nos animais a sua alegria mas, eles enterraram-na nas luras mais profundas.
E as rochas estão sólidas, sem sorrisos, no mesmo lugar. Imutáveis. Só o medo dos homens é igual ao medo dos homens de Geração.
O espírito verde surge-lhe naquela manhã. Indica-lhe o caminho da estrada que a levará à vila. A estrada é mais larga que o carreiro mas não deixa de ser um caminho. Íris pede a Ofélia que a acompanhe, que deixe a aldeia para trás porque ali o medo torna os homens pequenos. Ofélia dá-lhe a mão, não se despede de ninguém porque os leva consigo na alma. Juntas iniciam a jornada. Em todas as estradas há um fim que se abre para uma nova aldeia. Em cada aldeia há homens que procurarão a palavra de Íris, a ajuda de Ofélia.

O caminheiro


Era manhã


Era manhã.
Nem ele nem ela dormiram a noite.
Fizeram amor sabendo que era a última vez.
Ela levantou-se e desculpou-se que tinha que ir à cidade.
Ele ainda perguntou se queria que a acompanhasse, mas ela calou-o com um beijo.
- Vai. Vai porque ficas. - Murmurou ela ao ouvido. - Para que a árvore possa dar bons frutos é necessário podá-la.
E saiu!
Saiu, deixando-o naquele quarto quente que o acolhera durante o Inverno.
Enrolou a esteira e a manta, meteu a roupa na mochila e desceu.
Fez alguns telefonemas e meteu o pouco dinheiro que trazia no bolso dentro da lata dos trocos.
Abriu a porta sem olhar para trás.
Em vez de tomar a estrada que o levaria até à cidade, preferiu seguir pelo carreiro que o levava à serra. O nevoeiro estava bastante cerrado, a humidade em breve trespassou-lhe a roupa e penetrou-lhe na pele. Era como se quisesse fazer parte dele mesmo! Escolheu as veredas traçadas pelos pés dos pastores da região. Elas o levariam a algum lugar. Já não fazia caminhadas há muito tempo e as folhas e os fetos molhados faziam-no escorregar com frequência. Agarrava-se aos ramos e arbustos naquela subida cada vez mais íngreme da montanha. A lama pesava-lhe nas botas, pegajosa... embora não conseguisse entrever animais, ele pressentia-os nas suas tocas, nos seus ninhos, nos seus charcos, e agradecia-lhes mentalmente a companhia.
Aos poucos a vegetação foi rareando dando lugar a grandes blocos de rocha desfeita, agrestes e traiçoeiros. Uma espécie de embriaguez tomou-o, ia marcando metas e investia todo o seu esforço em as alcançar. Quando o conseguia, parava, respirava profundamente e lançava o olhar para o pretérito despedindo-se dele com um grito selvagem.
O Sol acabou por vencer a resistência das nuvens, perfurou-as e surgiu amarelo e morno.
O vento no seu reino, fazia-se ouvir e sentir empurrando-o para o apressar.
Ele caminhava, sem sede, sem fome, sem cansaço...
Por volta do meio-dia atingiu o cume da primeira montanha. Então, olhando em redor, deu conta que dera o seu primeiro passo.
Ali estava ele no alto da serra, entre o céu que quase o tocava e o abismo que deixara. Entre a imobilidade do absoluto e a agitação de um vento teimoso e dançarino.
Ele estava ali. Ele!
O mundo revelava-se-lhe. Um mundo maternal, fecundantemente generoso! E chamava-se Terra!
Um repuxo? Não. Uma onda de sentimentos soltou-se do seu coração inundando-o, multiplicando-se em outras ondas que o tomavam por inteiro.
E ele... Ele fez a sua primeira oração:

Abençoada. Abençoada sejas tu, Terra Mãe
Porque te estendes assim em caridade,
Tudo de ti, por um imenso amor, vem.
Abençoada sejas por toda a eternidade!

Abençoado. Abençoado sejas tu, ó Sol
Porque aqueces a minha longa jornada,
Porque estendes sobre mim, o lençol
Que envolve, a minha alma cansada.

O dia ainda não tinha acabado. A sua visão estendeu-se para lá da imensidão dos montes e vales, de planícies... não havia caminhos traçados, seria ele a desbravá-los com a mesma força e tenacidade que o levara até ali. O seu passado ficava para Leste. Mesmo que a Norte uma cidade rica e poderosa o chamasse. Mesmo que a Sul uma praia dourada o convidasse. O seu caminho era em frente porque as montanhas ocultavam o fim.
Depois de alimentar o corpo e a alma, descansou, embalado pelo segredar dos ventos que o acarinhavam.
A tarde veio rápida e desceu sobre ele sem sombras.
Estava na hora de descer.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Lago

Chagal

Arpoo o teu corpo em assalto comedido
Quando te dispões assim estendido.
Navego nele como em lago misterioso
Sempre à espera de algo mais alteroso.

Não. Não é o mar que me ofereces,
É um lago parado onde me aqueces,
Onde as águas cinzentas de neblina estranha
Bordam as margens de terra castanha.

Ai como eu queria mergulhar mais fundo,
Penetrar até aos confins desse teu mundo,
Engolir contigo o sal que se mistura
Com o doce sabor de uma fonte pura!

Ai como eu queria ficar molhada de ti!
Aprender gestos e expressões que nunca vi.
Emerge depressa desse líquido protector
E vem mostrar-me o teu escondido calor!

O Evangelho de Íris


O CARREIRO

Por muito estreito que seja um carreiro é sempre um caminho.



Corre e tropeça e cai e sangra e chora.
Pelo caminho acaba Íris os seus dias de Geração.
Não sabe para onde vai, o que vai fazer. Só sabe que foi banida do lugar onde nasceu. Do lugar onde as perguntas não têm respostas, do lugar em que a serra e o mar entalam os espíritos dos homens.
O carreiro é longo mas pode ser o princípio ou o fim de uma nova vida. Íris na sua inocência sabe disso e sabe que não tem outra alternativa. Sente já saudades do seu monte, da sua figueira, do Sol que saúda todos os dias e das fontes que lhe não negam as respostas. Mas sabe que não pode ficar agarrada ao seu passado.
Haviam-lhe dito que o carreiro era do tamanho de uma manhã. Mas a manhã das suas pernas é mais comprida...
Os pés ferem-se nos tojos e pedras do caminho. Já os tem em sangue mas isso não é nada comparado com as dores horríveis que sente na barriga das pernas. Senta-se um pouco na berma junto das giestas amarelas e roxas. Uma sonolência invade-a deixa vir a si o som das palavras tentadoras.
"Íris em Geração chamam-te as flores. Elas perguntam por ti ao Sol e as flores temem de novo que o sofrimento lhes toque, perdem o perfume a cada momento e choram as pétalas ao entardecer. Volta para trás Íris, volta para trás. Terás quem te sare as feridas se obedeceres à Avó Grande, se souberes calar o teu pensamento. As mães que te criaram recolher-te-ão no seu seio. As tuas companheiras acompanhar-te-ão, se souberes calar o teu pensamento.
- "Não! - grita Íris - Não. O meu pensamento tem a voz da divindade. Mesmo que morram as flores de Geração há outras flores no fim do carreiro. O lugar de onde vim não precisa dos aromas nem das cores, basta-lhe o silêncio. Eu vim dar voz, eu vim dar voz...
Íris volta a andar revigorada pela revolta. A fome enfraquece-a mas não a derruba. Mais além há uma figueira brava, os espinhos que protegem os frutos gritam-lhe:
- "Vem Íris, fere as tuas mãos, vale a pena o sofrimento delas para o alimento do teu corpo. Em Geração as figueiras são mansas e doces os seus frutos, se levares de mim as sementes e as plantares no monte do Sol, também eu me transformarei e me tornarei na árvore dos frutos de mel. Tu podes. Tu és a divindade feita voz que fala por todos os seres. Volta a Geração. A tua voz falará pelo silêncio dos homens."
- Não - grita Íris - Não. As tuas sementes bravias jamais se tornarão doces. A minha voz fica calada na solidão das palavras dos outros. Eu não pertenço a um lugar. Pertenço a todos os carreiros do mundo. Por isso vim trazer a palavra...Vim trazer a Palavra...
Agora que a divindade susteve o cansaço e a fome, Íris sofre horrivelmente a sede. Gretam-se-lhe os lábios e a língua parece ter dobrado o seu tamanho. O carreiro parece mais longo e curvo. O seu corpo cai desamparado junto da lama quase seca de um buraco do chão. Íris saboreia o pedaço de lama tentando reter dele o resto de humidade. As pedras e areias comentam:
-" É esta a forma material do espírito da Palavra. A divindade é sua aliada. Se ela quiser pode transformar Geração, basta-lhe que volte para trás e diga bem alto o que o seu pensamento lhe fala. Vê como sofre a sede e lá, há fontes amigas que a confortam com alegria."
- Não!-Grita Íris - Não. Não voltarei atrás porque o meu destino é percorrer os carreiros do mundo. Não voltarei atrás porque nem os homens, nem os animais, nem as plantas, nem as rochas me merecem. A divindade que trago em mim é universal e fala em todos os recantos da existência. E vós, vós todos não me tenteis porque eu faço o que me é ordenado. Eu só obedeço Àquele que tem vida e não tem nome.
O grito de Íris morre-lhe nos lábios e o seu corpo caído perde o resto das forças.
Os espíritos das sete cores acorrem, alimentam-na, saram-na, e dão-lhe de beber o orvalho mais puro. Ressuscitada, Íris vê o Sol desaparecer lá no fundo e a Lua a sorrir-lhe junto dela.
Perto ouve-se o ladrar de um cão, o balido de ovelhas e a flauta de um pastor.
Chegou ao fim do carreiro.
Chegou ao princípio da aldeia.

O Caminheiro


Era Dezembro


Era Dezembro.
O frio da neve derretida penetrava os ossos e os músculos endurecidos e magoavam-no..
A viagem ficara adiada. Agora dormia todas as noites com a mesma mulher. Aprendera a reconhecer cada sinal do seu corpo, o seu cheiro, a sua voz, o seu olhar...
Para se manter, voltara à sua actividade profissional, o jornalismo. Para isso bastava-lhe o uso dos correios, o telefone e jornais locais. Engordara um pouco e voltara a usar os óculos de aros escuros. Também colaborava na contabilidade da pensão, desse modo ela ficava mais disponível para si. O movimento sem ser intenso era no entanto regular, todos os dias havia clientes de passagem, na maioria camionistas e comerciantes que almoçavam ou jantavam. Alguns, raros, dormiam uma noite. Depois esses homens anónimos partiam pela estrada comprida que não deixava adivinhar o princípio e o fim.
Naquele dia tudo podia ser igual aos anteriores, mas à hora do almoço chegou com grande aparato um camião de longo curso. Um homem alto e forte, de pele avermelhada e quase careca, desceu da cabina e dirigiu-se à sala com passadas largas. A sua voz cantante e bem disposta perguntou:
- Boa tarde! Vocemecês que é que têm para um homem esfomeado como eu?
A mulher, serena como sempre, respondeu-lhe que havia o prato do dia, um prato de “sustância”!
Ele deu uma gargalhada, esfregou as mãos e sentou-se disposto a começar. Enquanto esperava mirou com ar aprovador a modéstia quase familiar daquele espaço. Percebeu de imediato que ele pertencia ao lugar e sem cerimónia sentenciou:
- Sim senhor, vomecês têm aqui uma bela casa! Limpinha e sossegada! Faz lembrar uma casa de família! É a primeira vez que cá entro e estou a gostar!
O homem sentiu-se na obrigação de agradecer o elogio, dobrou o jornal, tirou os óculos e sorriu.
A mulher apareceu entretanto com a travessa do cozido e o jarro de vinho tinto, perguntou se estava tudo a seu gosto. O camionista provou e acenou diversas vezes com a cabeça garantindo a sua aprovação. Ela voltou à cozinha deixando a responsabilidade de acompanhar o hóspede ao homem da casa.
Era um prazer observar a disposição para comer daquele homenzarrão! Passados alguns minutos o camionista voltou a falar:
- Vomecês não são daqui pois não? Pelo menos o ano passado não reparei nisto! Olhe que deve ser um bom negócio, por aqui passa muita gente...
Ele ia confirmando e esclarecendo o outro apenas com monossílabos, não era pessoa de grandes conversas mas ao mesmo tempo sentia curiosidade por aquele tipo.
Contra o seu costume dirigiu-se à mesa.
- Posso?
- Ó homem a casa é sua!
- O senhor parece ser muito bem disposto. – Disse enquanto se sentava.
- Graças a Deus, senhor, graças a Deus! Mas também não tenho do que me queixar!
- No entanto... o seu trabalho deve ser duro e solitário, não combina consigo...
- Estou habituado! Há mais de quinze anos que ando nesta vida! É verdade que é duro, mas há outros trabalhos que são duros e a gente quando faz uma coisa que gosta nem dá por isso! Eu sou forte, aguento bem! E depois, não é tão solitário como isso, há sempre estradas novas, gente diferente que se conhece todos os dias. O que custa mais é a saudade da família, mas compensa-se quando chego. Enchem-me de mimos!
- Tem uma família grande?
- Não. É pequena mas boa. Mulher e três filhos.
- E eles não se aborrecem com a sua ausência?
- Eles sabem que os tenho sempre no meu pensamento e no meu coração. Ah! A minha mulher é uma mulher e pêras! Já fizemos vinte e um anos de casados e nunca brigámos a sério.
O que um diz o outro acata, tanto faz que seja ela ou seja eu!
- E os filhos? Como se sentem?
- Bem. Olhe, não é para me gabar, mas são uns miúdos formidáveis. O mais velho é muito esperto, está na universidade. A do meio também está a estudar e é tal e qual a mãe! A mais novinha, veja vocemecê, tem só três anos! Veio sem a gente contar... mas graças a Deus que veio! É a nossa alegria! Quando chego a casa, corre logo para o meu colo e abraça-me de tal maneira que, oh homem! Não sou de ferro! As lágrimas chegam-me a assomar aos olhos!
- Pode-se então dizer que é um homem feliz!
- Claro! Diga lá se tenho alguma coisa porque reclamar?
Ali estava alguém que conseguia percorrer um caminho sem percalços! - Pensou ele. - É verdade que não procurava nada de transcendente...
Toda a sua felicidade residia nas pequenas e boas coisas da vida!
O camionista acabou a refeição, puxou a cadeira para trás, alargou um furo no cinto, estendeu as pernas e suspirou.
- Vomecê não é feliz?
Fora apanhado de surpresa. Não sabia como responder. Tinha receio de dizer que se acomodara, que não sabia exactamente se queria a felicidade. Mas o problema maior era explicar isso aquele homem. Ele não iria entender que ele também fora um dia um caminheiro. Mas um caminheiro diferente, um caminheiro que percorrera espaços que não vinham no mapa das estradas!
Salvou-o da complicada resposta a entrada de um outro cliente.
Era um homem velho e magro vestido de negro. O seu colarinho branco identificava-o bem.
Quando cumprimentou, o camionista levantou-se de um salto e deu-lhe um forte abraço.
- Veja vocemecê como as coisas são! Este aqui é o senhor padre Galvão, foi ele que me baptizou e casou! É da minha freguesia!
- Coincidências... – Disse timidamente o padre.
- Muito prazer. – Respondeu ele educadamente apertando-lhe a mão. Enquanto o velho padre se sentava na mesa do camionista. – Aceitou o seu pedido: apenas sopa e pão. Como convinha a um homem de espírito! Foi à cozinha dar o recado e hesitou em voltar a sentar-se no mesmo lugar. Mas a sincera insistência do camionista forçaram-no.
- Sente-se homem e responda lá a pergunta que lhe fiz há pouco.
- Vim interromper a conversa? – Perguntou o padre.
- Não é nada de especial senhor padre! É que aqui o nosso amigo fez-me uma daquelas perguntas simples cuja resposta é mais complicada.
- E que pergunta lhe fez este maganão?
- Se eu era feliz?
- E então? - Insistiu o padre já interessado.
- Então ... então não sei, sinceramente, não sei e, nem sequer sei se procuro a felicidade!
- É a primeira obrigação do Homem. Cada um deve procurar a felicidade! Já há coisas bastante tristes que acontecem no nosso caminho para que nós ainda compliquemos mais... - Disse o padre.
- Pois é, acho que sou um homem complicado... Não tenho a pureza e simplicidade aqui do nosso amigo. Toda a minha vida andei à procura de encontrar algo que respondesse às minhas dúvidas, numa espécie de jogo das escondidas. Agora acho que me acomodei a este lugar e gozo de uma paz tranquila... mas dormente...
- Dúvidas. Todos nós temos dúvidas! São elas que nos fazem caminhar! Que tipo de dúvidas tem? Se é que posso perguntar...
- As dúvidas que muitos têm, penso eu. Quem sou? Que faço aqui? Para onde irei? Sabe, e perdoe-me a franqueza, as respostas que as igrejas dão não me parecem satisfatórias. Recuso-me a acreditar que sou apenas um objecto de entretém nas mãos de um deus que um dia se lembrou de nos fabricar...
O padre acenou com a cabeça. Parecia ter entendido o que ele estava a querer dizer. O camionista sacudia os ombros e bocejava, não era conversa que lhe interessasse.
Após breve pausa, o padre continuou:
- Essas respostas que o senhor pretende encontrar só o tempo lhas trará. Quando tiver mais experiência. O senhor ainda é jovem, tem muito tempo para descobrir. Mas desde já lhe digo que não as vai encontrar nos livros nem nos lugares de culto. Há um sítio mágico que as revela: O centro da nossa alma!
Ouvir um padre falar daquela maneira surpreendeu-o. Depois, como um menino perante o mestre, murmurou:
- Ás vezes... ás vezes gostava de ser mais simples, de ver as coisas como este amigo que encontrou a felicidade na família e no trabalho...
- Cada um alimenta-se de forma diferente. Porque cada um é diferente. É essa a grandeza da Obra Divina. A individualidade. Veja bem, os animais reflectem comportamentos idênticos dentro de um mesmo grupo. Reagem segundo padrões pré estabelecidos. À medida que o animal sobe a escala da evolução nota-se uma certa individualidade. No Homem então, essa característica é acentuadíssima. Não concorda?
- Sim, concordo. Mas senhor padre Galvão porque não estamos todos ao mesmo nível? Porquê que alguns se satisfazem com as necessidades mais básicas e outros ficam insatisfeitos a vida inteira?
- Porque escolheram meios diferentes de caminhar. Olhe, eu viajo
naquela velha “carripana” e aqui este amigo no camião.
Mesmo percorrendo a mesma estrada temos uma visão diferente dela. Para além disso ele tem uma família e a sua lembrança acompanha-o, eu não tenho família, mas tenho uma comunidade que me faz pensar nela. As nossas disposições e motivações são diversas, logo não podemos de modo nenhum ter as mesmas dúvidas e as mesmas certezas.
O camionista estava impaciente. Queria concluir a estrada que o levava a casa.
- Vocemecês não me levem a mal mas tenho que voltar ao camião. Senhor padre Galvão não se esqueça de aparecer, eu e a minha senhora temos muito gosto em o receber.
- Vai lá rapaz, vai com Deus. Dá cumprimentos lá em casa. Qualquer dia apareço. Prometo.
- Serão entregues senhor padre. E vocemecê amigo mais uma vez parabéns pelo negócio. Quando cá voltar hei-de parar, nem que seja para o cumprimentar.
- Muito obrigado, apareça sempre. Tenho muito prazer em recebê-lo aqui de novo.
Depois desta interrupção, o camionista partiu.
Ele e o padre puderam então conversar mais um bocado.
- Está a ver senhor padre, há poucos assim tão puros como ele!
- É verdade, mas ele estacionou no seu percurso e ainda não deu por isso. Não tem dúvidas nem ambições. Fechou-se no seu espaço e não procura. Deste modo pouco mais pode crescer. É que crescer magoa....
- Se magoa! - Pensou ele – Cada vez que avanço parece maior o meu sofrimento.
- E... resolveu parar?
- Só para respirar fundo. Recuperar energias...
- Cuidado homem, não deixe o seu espírito adormecer...
- É disso que tenho medo...
- Nesse caso porque não corta as amarras e se não faz ao caminho?
A mulher chegou perto deles para levantar a mesa, traíram-se nos seus olhares, o padre compreendeu. Quando ela se afastou de novo perguntou:
- É por ela?
- Talvez. Nela encontrei muitas respostas e o colo macio aonde me encosto!
- ... Mas não é a companheira da mesma jornada!
- Não. Apenas a fonte que me matou a sede, o pão que me alimentou. A sombra que me cobriu ao entardecer!
- Foi bom então?
- Sim, mas não é tudo!
- O tudo não existe! Só tem que optar.
- É na escolha que rasgo a alma!
- Deixe sangrar... em breve cicatrizará. Se o não fizer terá sempre uma ferida aberta que corre o risco de infectar e alastrar, tornando-se perpétua.
- Ele concordou.
O padre apertou-lhe a mão para sair. Ao chegar à porta voltou-se para trás, hesitou ainda um bocado mas acabou por dizer:
- Ao contrário do nosso amigo, espero não o encontrar da próxima vez que aqui passar.
Ele sorriu e acenou levemente com a mão.