sexta-feira, 22 de maio de 2009

Folhas soltas



O meu sono


Nos bocejos do meu tédio caem gotas de saliva salgadas
Tão salgadas como as lágrimas que guardei
Como as palavras que não gritei e os beijos, os beijos que ficaram revoltos no ar…
Os pêlos eriçados do meu corpo branco e vermelho
Escondem medos e perguntas que ainda não formulei,
Reclamam-se eléctricos, na superfície da minha pele…

Já deixei de sonhar com Quixote, Rocinante e Pança.
O Santo Graal deve estar neste momento a ser vendido a preço de saldo,
Julieta, encontrou conforto nos braços de Midas,
Talvez, Francisco, ainda clame sob a bandeira de um grupo de ecologistas!
Os meus heróis de infância perderam-se no caminho!

Che, é hoje um produto de marting,
Gandi, provavelmente adormeceu com um charro na mão,
Lutter King, agita pateticamente a bandeira dos States.
E os meus heróis da adolescência perderam-se no caminho!

Foi tão breve o meu sono!

O despertador acaba de tocar o irritante pipipi.
Encaminho-me para a casa de banho onde despejo toda a raiva que acumulei,
Tomo um duche que me suja de cobardia,
Saio para a luz crua da manhã que me torna igual,
… feita à medida dos outros.

Executo todas as tarefas que me pedem,
Mesmo aquelas que não conheço a utilidade,
Sou produtiva.
Sou cordial,
Sou solícita,
Sou obediente,
Sou, sou, sou,
E não vivo o que sou
Porque me deixo cansar
e voltar a adormecer
Num sono sem sonhos.
Pesado
Calado
Apagado!

O caminheiro




A aldeia





Pára à entrada da aldeia.
Ela é toda branca por fora mas a penumbra convive com os homens que ali vivem.
Eles olham desconfiados o forasteiro solitário e põem-se em guarda.
O homem encolhe os ombros. Está habituado ao medo da diferença.
Junto de um velho poço de manivela retira da bolsa um bocado de pão endurecido e rói-o distraídamente.
Uma bola atrevida toca-lhe os pés. O rapazito que a jogou mantém-se à distância.
Olha para ele com o desejo de ir e de ficar.
O homem não se mexe. Que a venha buscar! Um passo, dois, uma pequena corrida e já está!
A bola regressou às mãos do seu Senhor.
Do bolso dos calções tira uma laranja, olha para ela. Olha para o homem. Estica o braço.
- Queres?
- Muito obrigado - diz o homem sorrindo por dentro.
A porta do conhecimento abriu-se.
- Eu gosto de laranjas. - Afirma o rapaz.
- Eu gosto do mundo. - Replica o homem.
Riem-se os dois. Não se sabe muito bem porquê. Mas os risos juntos têm outro som!
- Para onde vais? - Pergunta o garoto entre um sorriso maroto.
- Não sei. - Responde o homem com sinceridade.
- Estás perdido? - Volta a sorrir!
- Não. Estou a ver se encontro. - Esclarece.
- O quê?
- Não sei.
- Assim não podes achar o que queres!
- Pois não. Também não sei se quero encontrar o que desconheço...
- É maluco! - Pensa o rapazinho.
Acena-lhe com a mão e parte saltitante.
O homem reabastece o cantil e parte agora. Agora que a poeira tem consigo um riso infantil!

Telmo, o marujo

Uma cidade quase desconhecida


Quando o navio atracou era quase manhã. Uma neblina violeta banhava-nos, fazendo-nos estremecer. Jerónimo e eu descemos a rampa e pisámos o cais.
A primeira reacção que tive foi uma espécie de vótimo devido ao cheiro forte e desagradável que recebi. Depois, como por instinto dirigi-me a casa de meus pais.
Lá estava ela, degradada, suja e meio abandonada. O toldo vermelho tinha agora uma cor indefinida, a loja estava entaipada, olhei o meu amigo e ele parecia indiferente às minhas emoções.
- Jerónimo, o meu corpo gela e a minha alma treme…
- O teu corpo é forte e, a tua alma, está preparada para o que tens a fazer. Usa a tua luz interior para te acalmar e agir.
- Como é que me irão receber? Provavelmente pensarão que sou um fantasma! Além disso a minha roupa não se parece nada com que esta gente usa!
Jerónimo ergueu os braços e, ao baixá-los, envolveu-me numa nuvem de poeira esbranquiçada. Instantaneamente vi-me vestido com fato de fazenda escura e de pouca qualidade. Surpreendido, percebi que só eu me transformara. Jerónimo continuava igual. Ele sorriu e disse-me:
- Não te admires, poucos perceberão a minha presença. Aliás tens que ter cuidado porque se começares a falar comigo ao pé dos outros pensarão que estás louco!
Respirei fundo, tinha que provar que a minha estada no Arquipélago do Ocaso não havia sido em vão. Bati duas vezes na madeira corroída da porta.
Algum tempo depois ouvi de dentro uns passos arrastados e o tossicar de uma mulher.
Quando abriu a porta olhou para mim como um estranho. Estava tão velha que me impressionou. Com a garganta apertada, murmurei:
- Aceite, minha mãe, o regresso de seu filho que tanto tempo esteve afastado.
A minha mãe recuou uns passos e empalideceu.
- Como pode ser? O meu único filho que desapareceu aí pelo mundo foi Telmo. E, esse morreu num naufrágio há mais de quinze anos!
- Salvei-me, minha mãe, salvei-me! Olhe bem para mim… claro que me tornei um homem… mas algum sinal deve haver em mim que confirme a minha identidade!
Ela observou-me com mais atenção, sobretudo o rosto, os olhos…e foi aí que deu grito:
- Os teus olhos… os teus olhos são iguais! Entra e vem ver a miséria em que me encontro!


domingo, 17 de maio de 2009

Simão César Dórdio Gomes
















Histórias de mim para ti ou Histórias mágicas de reais acontecimentos




O menino zangado



- Não quero!
- Deixem-me, não me apetece falar!
- Quero lá saber!
Que pena! Aquele menino tão bonito, de olhos castanhos tão grandes, falava sempre assim! Zangado com tudo e com todos, gritava constantemente, nada lhe agradava, nunca se lhe ouvia uma palavra simpática!
Os pais, coitados, que tanto o amavam, ficavam envergonhados e desconsolados com aquele feitio e já não sabiam o que fazer para o tornar mais agradável.
Na escola sentava-se sozinho no fundo da sala com ar amuado. Nunca emprestava nada, nunca brincava com os outros, nunca dizia uma palavra gentil a quem quer que fosse. A professora também não sabia o que mais fazer e resolveu chamar os pais para ver se em conjunto com eles descobria a razão daquela zanga, até pôs a possibilidade de o levarem a um psicólogo ou a um médico especialista pois, quem sabe? O menino sofresse de alguma doença do corpo ou da alma e não soubesse como explicar! Além disso ele também estava a ter dificuldades em aprender!
Cabisbaixos, os pais do menino, prometeram fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para solucionar o problema.
No dia seguinte, apareceu na escola uma nova aluna que vinha de outra cidade. Por coincidência, foi parar à turma do menino. A professora recebeu-a com alegria e pediu-lhe que escolhesse o lugar para se sentar, ela como não sabia de nada, e bem-educada, pediu licença e com um grande sorriso, sentou-se mesmo ao lado do menino. Claro que ele nem sequer olhou para ela mas a menina não se deu por achada e ficou na mesma naquele lugar. Até parecia que o sol se sentara à beira de uma nuvem cinzenta!
Passado um bocado, a menina disse baixinho para o menino:
- Olá, eu sou a Rita. E tu, como te chamas?
Ele encarou-a com um ar carrancudo e não respondeu.
Rita admirou-se mas não disse mais nada. Tirou da mochila um passarinho feito de papel branco e colocou-o em cima da mesa.
- É um amigo meu. – Justificou.
Ele encolheu os ombros e franziu as sobrancelhas, a Rita, não voltou a falar com ele nesse dia mas não desistiu. Durante o resto da semana, continuou a pôr o passarinho entre ela e o companheiro.
A curiosidade acabou por vencer a zanga do menino e, uma manhã, não aguentando mais, ele perguntou:
- Porque trazes sempre o passarinho para a escola?
- Ah, ainda não te tinha dito! É um passarinho mágico. É ele que me ajuda em tudo, até nos deveres de casa!
- Estás a gozar! Isso é só um pedaço de papel dobrado!
- não estou, não. Experimenta tocar-lhe. Se quiseres até to empresto hoje. Vais ver como o teu dia te corre bem!
Apesar de desconfiado, ele lá estendeu a mão e tocou no passarinho, e…coisa estranha! Sentiu um calorzinho nos dedos, uma espécie de formigueiro que lhe fez cócegas e, riu. Como era engraçado o seu riso!
Claro que a professora deu logo por isso mas nem se importou, quem sabia se a Rita não estava fazendo um milagre…
Com o tempo a passar, a Rita e o menino tornaram-se amigos. Ele melhorou a olhos vistos, começou a ouvir com atenção tudo o que ela dizia, e ficou muito mais simpático e amável com toda a gente.
Quase no final do ano lectivo, na hora do recreio, a auxiliar veio chamá-los para irem à sala.
Lá entraram eles, de mãos dadas, cansados e suados da brincadeira, na sal estava a professora e os pais do menino que vinham de propósito para agradecer à Rita o que ela fizera pelo filho.
A menina, muito vermelha, respondeu timidamente que não fizera nada de especial, que fora tudo obra do passarinho mágico!
Tanto os pais como a professora não perceberam nada até que viram um pedaço de papel saltar da carteira deles e sobrevoar as suas cabeças, voltando depois a poisar na carteira.
Rita e o menino, olharam-se de forma cúmplice e desataram a rir às gargalhadas. Os seus risos contagiaram logo os adultos e, naquele momento, as preocupações deles desapareceram para sempre.

Folhas Soltas



Em fúria


Nua de raivas,
Galgando rochedos verdes
Como o vómito dos deuses de aquém-mar.
Eu me solto
Me solto
Sem choros
Em voos planados de poentes a nascentes
Tanto faz
Tanto faz
Porque deixarei de ser limite de mim própria
Ad eterno…

Tenho vontade de me rasgar
Em pedaços incontáveis
Para que a tentação de me reunir seja absurda.

Não quero morrer em pé
Na fila de espera
No balcão da morte asséptica
Quero desfazer-me
E cheirar tão mal que nada possa nascer de mim.

A morte não é um ponto final.
É um bem único,
Um ângulo
Na linha recta
Correcta
Ascética.
É mais, muito mais,
Uma linha que se quebra
Nos escolhos
Do mar perpétuo.

O caminheiro


Não há estradas



Algures, os padrões de cor vão tornando as imagens visíveis. Primeiro são apenas poliedros translúcidos, depois arredondam-se desequilibrando as simetrias e, eis que chega o momento do Ser.
O cenário é agora um mar de areia e pedra. Não há colinas, apenas alguns picos aguçados que ferem o cobalto do céu. É difícil olhar directamente para ele, a luz solar é intensíssima e fere. Os únicos sons que se ouvem são; o estalido dos ossos que se esticam e o bocejo prolongado do homem que acorda.
É de manhã.
Chegou a hora de recomeçar.
O homem não tem idade, o corpo diz que é jovem mas a expressão serena desmente-o.
Com as mãos seguras pega no cantil e bebe a água. Por ora é o único alimento a que se permite. Enrola a esteira juntamente com a manta de lã, ata o rolo com uma corda fina rematando com duas laçadas sobrepostas.
Coloca o rolo nas costas, enfia a tiracolo o cantil e prende a pequena bolsa no cinto. Na cabeça, põe um lenço puído com nós nas pontas. Os pés estão calçados com uns ténis esfarrapados e tem na mão uma vara para ser um homem livre!
Dirige-se para Oeste. O sol já queima as suas costas. É um fardo mais... Da garganta, sai-lhe um rouquejar lânguido como um cântico de louvor. É a sua forma de saudar o dia.
As etapas do caminho são definidas pela resistência do corpo. Hoje a solidão vai ser sua companheira até ao lugar do repouso.
Não há estradas.
Apenas o traço imaginário do futuro.

Telmo, o marujo

A despedida

Antes de regressarmos de novo à Ilha dos Seguidores, Estela ofereceu-me um anel de ouro com um pequeno círculo de minúsculos diamantes brancos rodeando uma pedra negra. Explicou-me ela que o anel significava o círculo do Conhecimento, os diamantes os actos de Serviço e a pedra negra, a Fé no Infinito. Agradeci comovido. Nunca havia gostado de jóias mas aquele anel era acima de tudo um símbolo, um prémio e uma prova da minha estada no Arquipélago do Ocaso.
Depois de passarmos as Portas Sagradas esperavam-nos todos os Seguidores. Eu, não sabia… mas pressentia que todo eu resplandecia. Parecia que uma luz maior me tingira a alma e transbordava para fora do meu corpo. O meu rosto trazia uma expressão grave e plena de maturidade. Eu tornara-me num Homem!
Um a um, abraçaram-me felizes desejando-me sucesso na minha futura etapa de vida. Jerónimo foi o último e, em vez de se despedir, confidenciou-me que iria comigo para me acompanhar, proteger e guiar na nova aventura. Fiquei admirado porque este era o Seguidor com quem tinha tido menos contacto.
Era uma personagem um tanto estranha, muitíssimo alto e magro, parecia um junco balançando ao vento, do seu rosto também afilado sobressaía um nariz em forma de bico de águia, as sobrancelhas espessas juntavam-se em ásperos pêlos de cor branca acinzentada. A barba e o cabelo desciam até meio do peito e eram quase resplandecentes na sua alvura. Vestia uma túnica cor de noite que contrastava cor a claridade da sua figura.
Fiquei contente com a segurança oferecida por Jerónimo e, saí da Casa confiante.
Descemos a rampa que nos encaminhou ao cais, entramos num bote que nos levou a um navio maior. Quando me debrucei na amurada deixei que as imagens daquela que fora também a minha pátria se desfizessem na neblina rosada e, em breve, entrei num mundo de céu azul, águas ruidosas. Voltava a sentir o ciclo do dia e da noite.
Contei cinco até perceber o horizonte negro e verde que me esperava no entanto, estremeci com os gritos das gaivotas!










domingo, 10 de maio de 2009

Boticelli

























































































































Folhas soltas


Ad-Amin-Saul


I
É noite.
A cor da lua desnuda os corpos.
O silêncio corrompe os rostos.
Enquanto a brisa refresca.
O grupo evidencia a individualidade.

É noite.
Os homens não estão sós e não se confundem.
O grande espírito do deserto repousa sobre as rochas quartzianas.
Das túnicas agora secas desprende-se o odor do dia, do cansaço e da sede.
As mãos agora livres, esquecem-se no colo, aturdidas.
Já não há fome. Já não doem as pernas nem as costas no encosto do esquecimento da jornada.

É noite e vou ali!
II

Ad-Amin-Saul, poeta e contador das histórias dos seus avós, veste o branco sujo da poeira e calça nos pés as sandálias do caminheiro.
As barbas cinzento amareladas descem-lhe ao peito confundindo-se com os cabelos por onde passeiam gerações de piolhos.
Ad- Amin-Saul, já não tem idade.
Deixou passar o tempo...
Ali, iluminado pela lua, é mais um.
Perto de si dorme um dos seus filhos. É já avô. Depois os netos e os bisnetos.
Já não tem mulheres, enfastiou-se delas, e vestiu a pele da moralidade.
Ele é a voz da caravana, a voz do deserto ondulando.

Ad-Amin-Saul!

III

Vestem de lã e cobre. As mulheres
Remendam os trapos, cochilam, amamentam os filhos, catam os netos e falam suavemente num contínuo sussurro.

As mulheres.
Que o vento insulta e embravece são a continuidade.
Não têm honras, valem pouco mais que as cabras dos seus rebanhos.
Esperam o desejo dos homens. As mulheres.

Vestem-se da cor da noite.
Adornam-se de luar.
Enfeitam-se...
E enfeitiçam as areias que os pés dos homens pisam.
As mulheres!


IV

É cor-de rosa a manhã recém-vinda.
As dunas doiradas iluminam-se.

Ouve-se tosse, gritos, mescla de brados e risos, que o canto matinal acordou.
Enrolam-se os tapetes. Desmontam-se as tendas, desprendem-se os animais.
Voam abutres em redor dos restos.
Espojam-se os camelos.
Aliviam-se os úberes caprinos.

Alá seja louvado!

Canta Ad-Amin-Saul na direcção do berço solar.
Curvam-se os homens na oração.
De novo o dia.
De novo o deserto.

Marcha lesta a caravana!

V

Ad- Amin-Saul põe a mão direita sobre o ombro do primogénito.

Chegou a hora.
Não há tempo agora.

“ Segura tu meu filho a honra dos teus avós e deixa-me procurar o meu refúgio.
Alá prometeu-me a vida no oásis sagrado, onde as fontes brotam cristalinas e os frutos de doce sabor acalmam a vida de secura e fome.
Não há medo porque cumpri.
Orei e pratiquei o bem tal como o seu profeta, o Santo Maomé, nos ensinou.
Pega nos nossos rebanhos, nas nossas mulheres e nos filhos delas e, continua o teu caminho.
Já caminhei o necessário.
Agora és tu que segura o bordão.
Eu fico aqui.
O vento caridoso se encarregará de tapar o meu corpo com a areia que me empapou ao nascer.
O meu espírito não te seguirá pois encontrou já o seu repouso.
Vai!
Aí pela noite e pela manhã!
Aí pela tua pátria feita de panos!”

A caravana partiu.
O vento soprou.
O bando de abutres soube esperar.
A areia cumpriu o seu destino.

Alá seja louvado!

Histórias de mim para ti ou Histórias mágicas de reais acontecimentos


Estrela da Luz


Como hei-de começar a minha história sem dizer “Era uma vez…”, “há muito, muito tempo”… Ou ainda, “No tempo em que os animais falavam…”? Na verdade quero-vos falar de uma menina. Uma menina dos tempos de hoje que existe mesmo, que anda na escola, que brinca, chora e respira tal e qual como tu. Melhor, é do seu nome que quero falar, da forma como ele lhe foi dado e das consequências dele na sua vida e na dos outros.
Estrela da Luz tem um apelido da mãe e um apelido do pai como a maioria das pessoas, mas só quando vai à consulta é que a médica o diz completo, Estrela da Luz Ferreira Dias. De resto ninguém a chama assim, uns como a professora, dizem: Estrela, e acabou aí. Outros, como os avós e os tios, dizem: Estrelita. Só a mãe e o pai a chamam por Estrela da Luz. Seja como for, quem ouve o nome da menina pela primeira vez não pode deixar de estranhar, ainda mais porque ela tem um enorme sorriso luminoso a condizer. – Se calhar é filha de algum artista, ou poeta! - Dirão vocês - nada disso, a mãe trabalha num escritório de advogados e o pai numa sapataria. – Então, como é que eles se lembraram de lhe pôr esse nome? - Perguntarão com toda a razão. - Esperem lá um bocadinho que conto-vos já.
Uma noite, estava a mãe da menina a dormir e, como é natural, começou a sonhar. Sonhou com uma linda estrela cheia de luz que rodopiava sobre um berço quase igual ao que estava a ser preparado para receber o bebé, tão bonito foi o sonho que a mãe acordou, pegou na mão do pai, pousou-a sobre a sua grande barriga e acordou o marido: -“ Apresento-te a menina Estrela da Luz.” – O pai muito ensonado resmungou e disse:
- Como é que sabes que vai ser uma menina?
- Sei. – Respondeu a mãe com os olhos a brilhar e o bebé aos pulos dentro de si.
E pronto, quando a bebé nasceu, o pai não teve outro remédio senão pôr o nome escolhido pela mulher. E vendo bem, que outro nome lhe poderia ficar melhor? Ela era um sol nas suas vidas. A menina mais bonita que eles tinham visto na sua vida!
Estrela da Luz era como todos os bebés, fazia birras de sono, fazia cocó, fazia xixi, vomitava o leite, chorava de noite, depois começou a rir e a fazer. Bábábá, como todos! Mas para os pais ela era a mais limpinha, a mais sossegadinha, a mais esperta e, claro a mais bonita e simpática do mundo. Tal e qual como os vossos pais pensam de vós, não é?
Estrela da Luz crescia como todas as crianças mas numa coisa era realmente diferente. Sabia sonhar. – Grande coisa! Todos sabemos sonhar! – Responderão vocês. É verdade, mas sonhar como Estrela da Luz sonha, aposto que poucos saberão. Digo-vos isto porque sei. Porque tenho conhecido muitos meninos e meninas e porque também entendo um pouco de sonhos. Podem acreditar que ainda não vi ninguém sonhar como Estrela da Luz! Ela sonha quando quer, nem precisa de fechar os olhos, basta-lhe desejar… e são tão belos os seus sonhos!
Qual é a diferença dos sonhos de Estrela da Luz e os nossos? Bem… e se eu vos disser que quando ela sonha tudo se modifica para melhor, na realidade?
Dei por isso quando um dia fui jantar a sua casa convidada pelos seus pais, de quem sou amiga. A televisão estava ligada, a dada altura, no telejornal, falaram de uma família que vivia numa casa toda em ruínas, cheia de bichos, húmida e feia. Os meninos que lá viviam estavam sempre doentes, dois deles até se encontravam internados no hospital, os pais desempregados, não sabiam o que fazer e pediam ajuda.
Estrela da Luz, pediu licença aos pais para se levantar da mesa e foi sentar-se no sofá declarando que ia sonhar. E sonhou!
Nesse sonho, viu que um grupo bondoso de pessoas ouvira o pedido de ajuda e decidira limpar, consertar e pintar a casa. Que o dono de uma fábrica ali perto, oferecera um emprego aos pais e que estes, apesar de terem um ordenado baixo, podiam pelo menos fazer face às despesas do dia-a-dia. Também sonhou que os meninos melhoravam e haviam recebido roupa, livros e brinquedos novos.
Eu sei, eu sei que qualquer um de nós podia sonhar uma coisa parecida! Mas o que aconteceu é que ao fim de alguns dias, no telejornal, vieram dizer que a família agradecia a todos que haviam ajudado, e tudo se passara tal e qual como Estrela da Luz havia sonhado. Connosco isso não acontece, pois não? Pois com ela é sempre assim, quando sonha ajudar uma menina doente a curar-se, um velhinho solitário a receber a visita de um filho que vive longe, ou uma mãe a ter a casa limpa e arrumada quando chega cansada do trabalho, tudo se realiza.
É, Estrela da Luz só costuma sonhar para o bem-estar dos outros, para ela, só tem um sonho, adivinham qual é? É de um dia deixar de sonhar. Porquê? Por que isso significaria que toda a gente seria feliz!







As dores


Isto de estar meio imobilizada é tremendo! Eu que gosto tanto de andar de um lado para o outro, de dançar com o meu neto ao colo, de brincar com ele no chão, sinto-me completamente frustrada.
Da maneira que eu tenho estado nem sequer posso estar sentada a fazer os meus trabalhos de malha. Na rua, os meus passos são curtos e hesitantes, no computador só posso estar alguns minutos de cada vez.
Só damos valor às nossas capacidades quando as perdemos, mesmo que seja por alguns dias. Falo por mim e falo por todos. O nosso tempo fica recheado de suspiros e pena de nós mesmos e, quando isso acontece, perdemos o contacto com o mundo exterior. Passamos o tempo a olhar para nós, egoisticamente, vitiminizando-nos.
Ninguém gosta de estar doente, pois claro! Mas o que dizer daqueles que vivem sempre doentes? Daqueles que nascem já com limitações e convivem toda a sua vida com dores atrozes? Nem nos passa ela cabeça o seu sofrimento! A dor é mais dor quando está mais perto, principalmente quando é nossa!
Quero reagir, sacudir de mim a pena, quero voltar a cirandar sem medo que a dor me faça parar. Tenho que pôr a minha mente a funcionar, a escolher o melhor que a vida me dá. Até lá recuso-me a lamuriar!

Telmo, o marujo

Estela, a Esposa Sagrada


Ao fundo da alameda orlada de carvalhos divisava-se uma luz cintilante. Ainda não era noite, já não era dia.
Hélio, mostrava-se tão agitado quanto eu. Estela era a sua esposa, uma das damas que dirigia o Reino da Felicidade Suprema. Pelo que percebi era sempre um momento de grande emoção quando os dois esposos se encontravam. Até ali nunca tinha percebido que os Seguidores se casassem, senti curiosidade sobre o modo como o faziam e como viviam essas uniões.
- O casamento é um compromisso livre e espontâneo entre dois seres que se amam e se fundem no mesmo ideal. Estela e eu, num tempo remotíssimo, encontrámo-nos e percebemos que fazíamos parte da mesma unidade espiritual, que comungávamos dos mesmos objectivos e que fazíamos parte do mesmo traço de evolução. Comprometemo-nos então e tornámo-nos um ser uno e pleno que se manifesta em pólos complementares, o feminino e o masculino. Ambos seguimos o Caminho da Fé, um tem à sua responsabilidade as Portas Sagradas, o outro abre o Reino da Felicidade Suprema.
Sorri enternecido. O meu velho amigo parecia um adolescente apaixonado pela maneira como falava do seu amor privado.
Quando chegámos à clareira, ali estava ela! A mulher mais perfeita que vira até ao momento! Tinha contornos suavemente e femininamente arredondados. Estendeu os braços para Hélio e ambos se abraçaram num comovente enlaço. Desprendia-se de ambos uma espécie de raios de luz coloridos e sobre as suas cabeças, uma espécie de nuvem de um branco puríssimo, rebrilhava. As vozes confundiram-se numa só.
-Telmo, vês como é possível o verdadeiro amor e a felicidade? Tu que cresceste com os Seguidores do Serviço e do Conhecimento, atingiste a altura de conheceres a Fé e mergulhares no Mundo Pleno!
- O meu coração rejubila, o meu corpo impacienta-se, a minha alma está preparada, querida estela! – Respondi eu tão naturalmente como se estivesse avisado para o que me estava destinado!
- Meu jovem (a sua voz soou como gorjeio de pássaro) - Em breve voltarás à tua cidade. Não será fácil pois as provações serão constantes, mas temos a certeza que te sairás bem de todas elas. Usa como armas a prudência e a coragem. A Fé será a tua maior força, a tua ferramenta para cumprires o teu Serviço e completares a tua obra.
Não hesitei mas estremeci. Hélio e Estela confiavam em mim e eu desejava do fundo de mim mesmo jamais os desiludir.