sábado, 5 de junho de 2010

O Evangelho de Íris


Planície


A planície é o lugar onde o espaço se dilui com a consciência dos homens.






A muitas horas de distância da última fonte, sob o sol ardente do meio da tarde, pela planície queimada, vão arrastando-se, sedentas, suadas e entorpecidas as companheiras de Íris.
O mundo que já percorreram vem-lhes à memória, sobretudo os momentos amargos que lhes deixaram o travo nas línguas doridas.
Qualquer direcção dos pontos cardeais leva-as ao infinito. Só se vêem searas queimadas e aqui e além uma gota de sangue no corpo das papoilas, um grito aflito em raros sobreiros.
A planura torna mais pequenos os homens, fá-los reconhecer a sua pequenez. A aridez torna mais frágeis os homens, fá-los reconhecer a sua dependência. O calor intenso esgota-lhes as forças e cala-os, levando-os a falar com o seu interior e a perder-se em meandros labirínticos de confusão.
As serpentes e os escorpiões escondem-se na palha, prontos a morder os pés incautos.
A dimensão da planície não se mede, o horizonte longínquo é enganador. Somente o carreiro de terra vermelha bordado de tojos, indica um rumo.
Agora que falta tão pouco para acabar este ciclo, Íris sente na alma o tormento da dúvida e, pressente já a borrasca que tentará romper a teia urdida por si. Já vê nos rostos das outras o medo, o desalento e a revolta.
Vai ouvi-las...

Vera já dominou o que tinha a domar, quase rebenta de fúria, por isso pára e grita. Grita tão alto que algumas das suas palavras se arrastam e espalham na planície!
- Parem! Parem! Ouvi o que tenho a dizer. Estamos perdidas num círculo. Um círculo que nos veda os avanços. Aonde nos levas Íris? Para que nos levas?! Acreditámos em ti, conhecemos de cor as tuas palavras, mas é uma loucura! Estamos vencidas, somos filhas de homens e de mulheres, o nosso espírito não voa como o teu, já não conseguimos ajudar ninguém! Quem quis mudar mudou, que mais poderemos fazer pelos outros? Hoje és já uma mulher, tens poder e força para prosseguir. Deixa-nos regressar à nossa origem. As caminhadas são demasiado longas, tornam-se inúteis. Acabou Íris, acabou!
- Cambada de cobardes!- vocifera indignada Andreia- Onde está a vossa convicção? Alguma de vós foi obrigada a segui-la? Porque não ficastes nas vossas vidinhas cheias de coisas pequeninas? Vejam, ela não mostra, mas doem-lhe as vossas palavras, os vossos pensamentos. Há mais tempo do que nós, ela caminha. Já percorremos tanto! O que custa terminar? Todas sabemos que não é fácil, que é tortuosa esta via, mas viemos. Porque querem agora desistir? Vamos! Ânimo! Depois da planície virá a lagoa onde repousaremos e lavaremos as nossas feridas. Temos fome, sede, estamos cansadas. Mas quantas vezes isso aconteceu? Também sabemos que logo seremos generosamente recompensadas! Vá, dêem as mãos, soltem uma bela e sonora gargalhada, lancem no ar um canto de alegria, é só mais um passo! Estamos a chegar.
Íris escuta-as atentamente, depois de forma enérgica pergunta:
- Quem me quer seguir?
Leonor, Andreia, Constância, Ema e Lectícia colocam-se a seu lado. Vera e Ofélia afastam-se um pouco.
- E tu não dizes nada?- Pergunta a Paula que se não movera.
- A minha casa fica por de trás da colina, só agora aqui cheguei. Não tive tempo ainda de aprender. Nada me pediste, nem eu a ti, segui-te porque vi em ti a luz. Ainda vejo...
É a vez de Sofia, que conhece tão bem como Íris a Palavra. a sua voz é suave mas pincelada de desafio.
- Íris, minha irmã será realmente este o caminho?
- É, tu sabes que sim. Pode ser o mais longo, o mais árduo, mas é o mais seguro para atingir a glória.
- Eu prefiro atingi-la de outra forma...
- Eu sei. Por isso a divindade maior me enviou a mim. És tu que me segues e não eu a ti. - Responde com uma autoridade desabitual, Íris.- Dispam as vossas roupas, montem uma tenda aproveitando o que puderdes. Esperem-me aqui até que regresse. A sombra que conseguirdes aliviará um pouco do vosso calor. A brisa do entardecer refrescar-vos-á. Sofia, Paula, acompanhai-me. Vera, Ofélia, apelo agora à vossa obediência.
O silêncio voltou ao grupo.
As ordens foram cumpridas.
Íris acompanhada pelas escolhidas avança pelo carreiro.

No final do carreiro há dois desvios: um dirige-se para a lagoa, outro vai até uma anta milenária. É este o que Íris escolhe.
Antes de entrar no velho monumento indica a Sofia e a Paula onde devem aguardar.
A noite já caiu. Hoje não há lua e as nuvens que ameaçam trovejar escondem as estrelas.
Aplanando um pouco o chão, limpando-o à entrada da anta, Íris senta-se. Está tranquila apesar de tudo. Ordena então ao seu coração que pare por momentos e, fica queda, esperando o milagre.
Sofia e Paula não adormecem, estão inquietas e olham para a frágil figura com uma interrogação. De repente, da abóbada escurecida, três astros luminosos descem sobre Íris. O espírito desta também se eleva e juntos iniciam um bailado de luz. As voltas, os ziguezagues que fazem entontecem Paula e estremecem Sofia. Não sabem quanto tempo dura a coreografia porque o tempo pára nesse momento.
Depois, quase madrugada, os astros recolhem-se e o espírito volta ao corpo de Íris. Estremunhadas, gatinham até ela e Paula pergunta:
- És tu a própria divindade?
- Todos o seremos um dia- responde Íris- esta é uma das suas manifestações da qual faço parte. Por ora não digais a ninguém o que vistes. Podereis falar depois, depois de tudo terminado. Regressemos irmãs. Regressemos porque nos esperam.

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