sábado, 5 de junho de 2010

O Caminheiro


O tesouro




Alugara uma carrinha daquelas que têm três lugares à frente e atrás um amplo espaço para levar toda a tralha que julgamos necessária. Ainda pensara comprar uma caravana, mas não se tornava tão cómoda!
O veículo estava em bom estado, mas como era natural, custou-lhe a adaptar-se à sua condução. Rolava por isso com alguma lentidão.
Levava o que considerava imprescindível; fogão de campismo, cobertores, caixa de primeiros socorros, etc. Tudo poderia vir a revelar-se útil.
A estrada do litoral por onde seguia era recortada por falésias e praias, alternando com espaços agrícolas. As povoações conciliavam as casas brancas e pequenas com prédios de apartamentos para turistas.
Nessa noite talvez fosse dormir a ...., uma pequena cidade que já fora outrora rica e próspera. O nome dessa cidade sempre despoletara nele um interesse estranho; um misto de saudade e sofrimento e no entanto era a primeira vez que resolvia visitá-la.
Durante a caminhada da sua juventude nunca se afastara muito do centro do país mas agora que possuía um transporte aventurava-se a ir mais longe.
Com o entardecer a temperatura baixou e por isso fechou a janela. A carrinha não estava equipada com rádio nem leitor de cassetes portanto, a única coisa que podia fazer, era cantarolar umas velhas canções.
A sua voz não era das melhores, felizmente ninguém estava ali para o ouvir! Desconhecia metade das letras e desafinava na outra metade. Com uns lá-lá-lás à mistura com hun-hun-huns, acabava por ser divertido! Quando esgotou o stok musical virou-se para as últimas piadas que ouvira. Eram francamente estúpidas, mas tudo isto tinha o condão de o pôr a rir de si próprio. Foi com agrado que ouviu as suas gargalhadas soarem alto naquela solidão!
Mais cedo do que pensara foi surpreendido pela noite e com a falta de iluminação deixou-se de brincadeiras e levou muito a sério o resto do percurso.
Quando entrou na pensão já não serviam refeições, porém, solícito, o dono preparou-lhe umas sandes e uma cerveja. Logo que acabou de comer foi para o quarto. Enfiou-se na cama. Então, o cansaço do dia fez-se sentir, os músculos das costas e das pernas começaram a doer-lhe horrivelmente. Levantou-se e tomou um duche de água quente para os relaxar. Voltou para a cama, mas apesar de ajeitar vezes sem conta a almofada, de afastar a coberta, e de mudar de posição, ao ponto de se ter virado para os pés da cama, não conseguia dormir. Ficou tremendamente irritado. Afinal no outro dia estava decidido a levantar-se cedo para retomar a viagem, desta forma não iria conseguir com certeza!
O vento começou a soprar de madrugada, primeiro, brandamente, depois sacudindo com força os ramos das árvores e assobiando por entre as gretas da janela. Enrodilhou-se ainda mais nos lençois já soltos, como se se protegesse. Até que uma espécie de sonho o veio embalar.
Viu-se a observar cenas de uma batalha medieval. Ouviu: o entrechocar de espadas e lanças, o relinchar dos cavalos, o som dos seus cascos raspando a terra, e os gritos dos homens excitados e doridos. Viu: as expressões de raiva e de medo, o relampejar das armaduras em movimento, as lágrimas sujas escorrendo pelas barbas emaranhadas. Cheirou: o suor e o sangue dos homens, a poeira e a urina, e ao mesmo tempo o doce aroma dos pinheiros que emolduravam o cenário.
E ele ali estava!
Entre os outros, montado num cavalo malhado e forte, pouco elegante, mas ágil e resistente. Um cavalo de batalha! O peso da sua espada deslocava-se para a direita e para esquerda num contínuo espadanar. A certa altura passou por si um vulto, e simultaneamente, uma dor intensa perfurou-lhe o abdómen. Tão intensa! Tão viva! Que ele deixou de ver tudo o que se passava para se centrar apenas nela. Tudo o que existira até ao momento foi-se diluindo, e lentamente, foi entrando na escuridão do próprio som.
Sentiu-se flutuar desamparadamente num vácuo sombrio. Não conseguia reagir. Era incómoda aquela sensação de dormência! Angustiante! Eterna!

Acordou encharcado em suor e custou-lhe a levantar-se. A luz do sol já inundava o quarto. Pôs os pés nus no chão de madeira arrastou-se até à janela. Abriu-a. estava linda a manhã! O cheiro dos campos entrara de golfada no seu peito, lavando-lhe as angústias da noite. Que sonho!

Voltou à estrada para procurar um lugar que nunca tinha visto. Esta ramificava-se em caminhos estreitos e mal tratados. Entrou instintivamente por um à sua direita e foi ter a uma pequena aldeia sentada no sopé de uma velha montanha que há muito havia perdido a vegetação. Parou a carrinha no largo, tirou a mochila, e resolveu subir por entre pedras e espinhos. Trepou com um impulso irracional a encosta bravia até chegar ao seu cume. O sol do meio-dia reflectia-se nas rochas esbranquiçadas duplicando o calor. Resolveu tirar a camisa e atá-la na cabeça para se proteger e verificou estupidamente que se havia esquecido de trazer água, ainda por cima não vislumbrava um pequeno fio que fosse. Mais teimoso que a própria sede, não desistiu. Ao chegar ao cimo do monte compreendeu que se tratava de um planalto ligeiramente inclinado para o interior, aumentando assim a dimensão aferida antes. Não havia um único arbusto por perto. Passou a língua pelos lábios e sentiu-os gretados. Acalmou a respiração e voltou a olhar em redor. Um enorme penedo chamou a sua atenção. Ficava quase no declive oposto e tinha uma forma invulgar.
Aproximou-se. A rocha parecia ter sido escavada no seu interior por mãos humanas. Ao tocá-la foi como se uma descarga eléctrica o atingisse. Talvez fosse a emoção! Só não compreendia porque a sentia! Havia nela qualquer coisa de chamativo. De um salto alcançou a borda e sem pensar internou-se nela. Arrastando-se num túnel diagonal avançou na sua exploração. Tornava-se obsessivo! Deparou-se então num espaço circular. Apontou o foco da sua lanterna lançou um grito de surpresa.
As pernas fraquejaram, o suor escorreu desenfreadamente pelo seu corpo e, um enorme arrepiu desceu da sua nuca até à cintura. Era como se reconhecesse aquele lugar!
Nunca estudara arqueologia mas tinha a certeza que se encontrava dentro de uma capela cuja construção se situaria algures no século XII ou XIII. As paredes conservavam ainda o colorido dos frescos que em narração pictórica contavam a vida de um dos muitos santos da época. O chão, lajeado tinha inscritos nomes e datas assinalando que aí repousavam resto mortais de homens contemporâneos. Recuado e tombado, um altar de pedra rosada. Simples, sereno, digno.
O tempo havia submergido a capela e o destino tinha-o chamado para a reencontrar. Com que finalidade? Elevou os olhos para a cúpula branca e resvalou pelas paredes os dedos trémulos. Sentiu o calor das imagens, as arestas, as fissuras, e nada mais. Baixou então o corpo acocorando-se, e procurou decifrar as palavras inscritas nas lajes, foi atraído para uma da qual só conseguiu ler: JOANNES V ALVARES, MONGE-CAVALEIRO, M—XXXIV. Não conseguiu perceber se se tratava de um C ou de dois CC, só sabia que ali havia um espaço em branco demasiado largo par conter uma letra e demasiado estreito para conter duas, entretanto a luz da lanterna começou a esmorecer e ele resolveu sair e regressar no dia seguinte, desta vez com as ferramentas necessárias. Foi difícil escalar porque tinha muito pouco a que se agarrar, teve que fazer um movimento de lagarta o que, para quem não está habituado, se torna extremamente cansativo e doloroso. Ao chegar à superfície ficou encadeado com o sol da tarde. Desceu até ao vale bastante entontecido mas com a firme decisão de voltar a pesquisar melhor aquela capela.
Na aldeia não existia qualquer lugar onde pudesse pernoitar, nem nenhum armazém onde pudesse comprar o que necessitava, portanto resolveu voltar à cidade. Antes disso, assinalou bem o lugar num bloco de notas, o percurso, e fez uma pequena lista de compras.
Apesar das emoções e da rudeza do dia, quando chegou à cama, a mesma da noite anterior, caiu num sono profundo.

Logo de manhã, assim que se despachou, rumou de novo de encontro ao seu achado. Desta vez proveu-se de tudo e encheu a mochila com mantimentos. Ah! A água não foi esquecida! Falou com um homem da aldeia e disse-lhe que era professor de História e que andava a estudar o local, pediu-lhe que guardasse a carrinha de forma segura. Por incrível que pareça, o homem não se mostrou admirado e referiu-se até que ele era já o terceiro doutor a aparecer no espaço de meio ano. Interessado, ele perguntou se por acaso tinham falado nalgum achado. Se sim, nunca o tinham revelado, um deles parecia ter feito qualquer descoberta pois, quando regressara, vinha com um ar estranho, quase mágico. O outro, tanto quanto sabia, desaparecera sem deixar rasto. Só se tinha saído de noite e ninguém o tivesse visto! Intrigado, mas não desiludido, ele iniciou a subida. Quem seriam os outros dois? O que fora que os levara ali, um de cada vez, sem que nenhum soubesse da existência dos outros? Não se apercebera que alguém tivesse entrado dentro da capela antes dele! E a população também parecia não saber de nada!
Agora parecia-lhe menos penosa a subida, reconhecia até certos pormenores, e quando chegou à entrada suspirou de alívio. Mas mesmo assim relanceou o olhar por cima dos ombros como se sentisse observado. Ao mergulhar, arrastava a mochila, a pá, o cantil e isso dificultava-lhe bastante os movimentos. Tivera ainda o cuidado de atar a ponta de uma corda ao exterior para que o regresso fosse mais fácil que na véspera.
A sensação de espanto que tivera pela primeira vez foi substituída pela sensação de regresso ao lar. Antes de iniciar a abertura da sepultura, pensou se não seria mais natural verificar as outras. Quem sabe se algum dos nomes lhe soasse conhecido? Limpou cuidadosamente uma a uma das inscrições, quase todas pareciam referir-se a monges e clérigos da região. A única que mencionava a qualidade de cavaleiro era a tal de Joannes.
Esteve muito tempo acariciando a laje, passando nela, os dedos com ternura. Depois, com uma espátula foi raspando cuidadosamente o seu perímetro tentando encontrar uma abertura. Logo que conseguiu encaixar o pé-de-cabra, mais em jeito do em força, levantou a tampa. Demorou horas nesse trabalho, a terra soldara com firmeza as brechas! Mas à medida que a ia destapando, aumentava o seu nervosismo. Por fim conseguiu erguê-la. Pesava muito mais do que imaginara pois tinha quase vinte centímetros de espessura! Quando viu o buraco aberto sentiu temor.
Iluminar a profundidade de uma tumba era afinal algo que o incomodava ainda! Esperava encontrar ossadas, restos de tecido, enfim qualquer vestígio da humana presença! Nada. Absolutamente nada! A sepultura parecia nunca ter servido a alguém. À parte alguns insectos e outros bichos rastejantes que se sentiram atarantados pela invasão dos seus domínios, nada existia. Sentou-se desanimado no chão. Quase que sentia raiva por ter feito todo aquele esforço inglório, era como se tivesse sido enganado!
Passados os momentos de frustração, lembrou-se do seu guia, o velho livro deveria dizer alguma coisa sobre o assunto. E leu:

“O óbvio não existe quando há procura
É o mistério que impulsiona o saber
Aquele que pensa que a vida é segura
Jamais virá um dia a poder entender.
No entanto a resposta pode estar perto
Naquilo que negligentemente desprezaste
E encontrá-la é o caminho mais certo
Será que para isso te esforçaste?”

Tinha que estar ali. A resposta para a pergunta que ele ainda não formulara. Voltou a olhar atentamente em redor. Centímetro a centímetro, e a luz já enfraquecida varrendo o friso do rodapé! Quando estava para desistir, reparou então numa espécie de alavanca que se disfarçava debaixo do altar. Premiu-a com firmeza e um ruído áspero e seco fez-se ouvir. O altar apesar de derrubado, foi-se deslocando e mostrando uma nova entrada subterrânea. Excitado nem hesitou, pegou em tudo o que lhe pertencia e desceu. Os degraus eram sólidos, pisou-os um por um na certeza do caminho.
Encontrou-se então numa sala rectangular onde se mantinham três mesas de madeira e bancos compridos de cada um dos lados. Sobre uma delas, estava um livro aberto, intacto, grande e pesado. Sentou-se, e com todo o cuidado, foi passando as páginas que ameaçavam desfazer-se. Tratava-se de um livro de crónicas, vidas de santos e de heróis. De repente lá estava, Joannes V Alvares. Quase saltou de alegria! E com sofreguidão, leu tudo a seu respeito.

Joannnes V Alvares, havia sido um jovem nobre mui parco de haveres, por isso partira como tantos outros, à procura da glória e da fortuna. Fizera-se cavaleiro de uma ordem monástica e durante cerca de dez anos nada fizera que merecesse relevância até que, não se sabe bem por que razões, fora enviado para a Palestina.
Segundo constava, a viagem fora dura e tormentosa, e como era natural fora difícil adaptar-se ao clima e à nova sociedade. Nessa altura o mais importante era manter os domínios da Ordem em solo estrangeiro e inimigo, o que levava a que os cavaleiros estivessem constantemente em rixas quer com os infiéis, quer com as outras ordens ali fixadas.
Pela descrição, Joannes teria sido um homem intempestivo e pouco prudente, daqueles que por isso mesmo se tornam mitos. Numa dessas lutas foi capturado e vendido como escravo. A seguir o livro narrava todos os tormentos e sacrifícios que ele passara com cada um dos donos que o compraram. Um dia porém conseguira iludir a vigilância e fugira para casa de um velho que tinha fama de santo e sábio. A partir dessa altura tudo mudou para ele. Aprendeu com o velho todo um pensamento diferente daquele em que fora educado. O livro referia-se a esta personagem como um mago mas o mais provável é que se tratasse de um alquimista árabe. Respeitosamente tratado, Joannes interessou-se pelo conhecimento do seu protector e, a pouco e pouco, foi modificando o seu temperamento, alterando as suas atitudes, tornando-se ele próprio num estudioso. O livro não esclarecia quanto tempo ele vivera foras do país, mas fazia referência que à sua chegada andava pelos cinquenta anos e, o mais importante, que trouxera com ele um tesouro.
Talvez pensasse vir gozar com tranquilidade os seus últimos dias, mas uma guerra interna apanhou-o e, como era seu dever, teve que entrar nela e lutar ardentemente até ser atingido por uma lança que lhe pusera fim à vida. A curiosidade natural dos que lhe eram próximos, levou a que lhe revistassem os aposentos embora nem ouro, nem prata, nem relíquias de santo, encontrassem.
Apenas um livro. Um pequeno livro que tinha o condão, quando aberto, indicar à pessoa que o possuía, o caminho a seguir. Aterrorizados, os homens que o acompanharam nos últimos tempos de vida, foram entregar ao abade o livro que desde logo o considerou perigoso e o fechou em lugar seguro.
A história do monge-cavaleiro terminava dizendo que o corpo dele desaparecera enigmaticamente antes do funeral. Em breve nasceu uma lenda em redor do monge-cavaleiro Joannes V Alvares, lenda essa que com o passar dos anos, foi esquecida.

Sem saber bem porquê, as lágrimas correram-lhe pela cara abaixo, voltou a subir os degraus e com reverência sincera colocou o livro no túmulo aberto e fechou-o em seguida. Voltou à superfície com a sensação de ter feito uma viagem no tempo e de ter cumprido um destino.

Ainda não era noite, mas as nuvens cinzentas obrigaram-no a conduzir com os máximos acesos. Desta vez não fazia ideia nenhuma para onde ir.




Sem comentários: