domingo, 5 de julho de 2009

O caminheiro


O medo



O grito foi tão próximo que o gesto instintivo foi o de se baixar e tapar ambos os ouvidos.
Mais do que agudo o grito veio de asas abertas perfurar a intimidade.
Veio vestido de negro. Repetidas vezes. Sacudindo uns restos de raiva que se encontravam no fundo.
Veio dilacerante remexendo na ferida que a alma encrostara.
O coração batia agora num ritmo maior e os passos arrastavam-se vacilantes.
Tivera medo. Um medo gelado que o prendera ao solo.
Depois, quando o grito alcançou o outro lado da lonjura, respirou fundo e reviu mentalmente as qualidades predadoras de todas as aves que conhecia e identificou a espécie e a rota.
Era absolutamente normal que num descampado houvesse aves daquele tipo. Fora apanhado desprevenido, fora o que fora!
Calcou o susto... não o expulsou...
Recordou as histórias terríveis que ouvira em criança em que pássaros gigantescos arrancavam viajantes para os levar a palácios encantados habitados por monstros.
Recordou que era assim que se iniciava mais uma noite de terror que, invariavelmente, terminava em lençóis molhados e o chamamento aflito pela mãe.
Os fantasmas da infância teimavam em aparecer mesmo agora que o seu corpo adulto já se controlava e que o seu raciocínio lógico se explicava.
Lá estava o medo vencendo-o! O medo que o fez aprender a construir muros de defesa, a tornar-se senhor do universo!
Ah não! O caminho seria longo e para isso tinha que se purificar e olhar de frente o inesperado. Como queria ele transpor a linha do infinito se se acobardava ao primeiro grito da primeira ave negra que encontrava?
Ali estava longe das montanhas onde as aves nidificavam, era preciso procurá-las e enfrentá-las, sem isso, continuaria a agachar-se sempre que um par de asas negras se aproximasse.
Procurou uma sombra. Podia ser aquela, encostada às ruínas da ermida sem idade. Tocou-lhe como se lhe pedisse permissão. Estendeu a esteira no chão, bebeu um gole de água, despiu-se da cintura para cima e descalçou-se.

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