quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O Evangelho de Íris


Andreia


A coragem não se lança do alto até ao abismo, antes, é a voz do abismo que chega ao alto.





À porta da cidade está um circo. Um circo pobre de lonas remendadas e cores desbotadas de onde transpira uma música roufenha de altifalantes cansados.
O circo é o lugar privilegiado da Palavra. A Palavra que torna todas as cores e todas as formas em estrelas que encantam e seduzem na sua simplicidade. É também onde a coragem transforma em alegria o dia a dia cinzento de cada um. O circo é o lugar de Andreia.
Andreia como todos os outros da grande família, veste e despe os personagens numa corrida. É necessário parecer mais do que são. Camuflar a carência com a exuberância e lutar contra a monotonia que os invade tantas vezes.

O burro que Andreia monta, ungulado, torna-se um puro sangue. Ama-o apaixonadamente, deixa escorrer lágrimas emotivas sobre o focinho penugento, só não fala porque a natureza lhe não deu órgãos de fonação. O olhar compensa-o.
O burro de Andreia troteia ao som da música. Balança as crinas prateadas no bailado de homens. Deixa que Andreia o monte e o comande com uma ternura quase paternal.
Andreia serve esse amor com a mesma força. Os muitos irmãos e os muitos primos não lhe deixam espaço. Só o burro cinzento e amigo lhe reserva um lugar no seu carinho. O burro é toda a sua família, todos os seus bens. É o veículo da sua afectividade e impõe-se para além de toda a comunidade.
O burro de Andreia é a sua força materializada.

Andreia trapezista amarra o medo nas cordas no trapézio, sorri como fada e lança-se no vazio das suas emoções esquecendo as asas... Naquele desafio diário, Andreia disciplina a coragem. O balanço das cordas não permite hesitações. O espaço que as suas mãos agarram é o espaço que determina a vida.
O medo de Andreia nas suas pernas trepadoras, fica colado às cordas do alto. É preciso saltar, saltar, saltar e voar dando a ilusão que é possível tornar o sonho material.
O trapézio de Andreia fica no alto e a fantasia e a emoção dos outros fica em baixo, na arena da realidade...
Andreia palhaço limpa as rugas dos rostos contraídos. Limpa não, substitui-as por duas imensas pregas que dão forma às gargalhadas.
Andreia palhaço ri dos outros e de si própria e guarda no seu bolso mais fundo do casaco quadriculado, os sofrimentos e a fome.
Andreia palhaço faz nascer rosas nos lenços de várias cores e oferece-as a todos os presentes.
Andreia no rosto de palhaço tem as cores da vida, os traços da ilusão e o amargo da sua língua na garganta encolarinhada.
O palhaço é um anjo. Um anjo semi-deus que faz a ligação entre os homens e o Gerador.
A divindade fala pelo palhaço de Andreia.

Íris e as suas companheiras que entram pela fenda lateral e compreendem a sua linguagem, sorriem de felicidade e dizem:
- Como pode o circo alegrar-nos assim ? Como pode ele trazer esta vontade de ser feliz ?
Andreia que veio cumprimentá-las responde-lhes:
- Porque o circo é a voz que sai do abismo das nossas almas e nos faz ouvir a sua linguagem !
Íris, então, pousando a sua mão no ombro de Andreia, com suavidade convida-a:
- Vem Andreia, traz o circo que tens dentro de ti ao nosso grupo de párias. A Palavra só tem sentido se for gritada além de nós mesmas. És tu que tens o som dela no teu peito.
Andreia que tem preso pela arreata o seu burro, pergunta:
- Posso eu levar aquele que me dá força para gritar ?
Íris olha a abóbada de cores e durante alguns momentos espera a resposta. Por fim exclama:
- Será justo tirar a alma ao corpo quando este se confunde com ela ? Vem, traz o teu burro que faz parte de ti. A cidade está perto e a jornada está por acabar.
Fora da tenda que se desmorona, as cinco deixam-se rodear pelo espírito do conforto e entram na cidade...

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