sábado, 27 de fevereiro de 2010

O Evangelho de Íris


A cidade


A cidade é um mundo próprio onde se misturam aqueles que procuram o seu clã.




A cidade está em festa. A festa durará a semana toda e receberá visitantes de todos os lados. Será uma semana que ficará guardada junto das outras semanas da sua recordação. Os anos contam-se através delas...
As ruas enfeitam-se de cores que iluminadas durante a noite se transformam num universo fantástico. Aspergida, a música envolve-se com os risos e enche os ouvidos de todos em qualquer lugar. Os cheiros das guloseimas e petiscos misturam-se ao suor e aos perfumes entontecendo quem o respira.
Nesta confusa alegria fabricada os homens despem o seu ar quotidiano e vestem-se de domingueiros fatos encontrados no baú das suas almas. Ébrios de gozo reinventam sortilégios e exorcizam os fantasmas dos outros dias. Juntam-se em pequenos magotes que sobem e descem as artérias, parando aqui e ali, dispersando-se ou aglutinando-se em outros grupos. Empurram-se, pisam-se, magoam-se, mas sempre com risos de cumplicidade.
O ano tem cinquenta e uma semanas cinzentas e aborrecidas, porque não uma vez por ano, haver uma que seja diferente para a festa?!

Este é o primeiro dia da primeira semana. É da tradição coroar o milésimo visitante e pô-lo a reinar durante sete dias. O povo excita-se com o acontecimento, vai esperá-lo à porta da cidade formando duas alas enormes adornadas de flores. A ansiedade aumenta enquanto os responsáveis gritam os números:
Novecentos e noventa e sete...
Os pescoços erguem-se, os olhos amiúdam-se no esforço de focar.
Novecentos e noventa e oito...
O silêncio parece imperar para que os ouvidos possam detectar.
Novecentos e noventa e nove...
Nas gargantas formam-se nós e a saliva enche as bochechas de excitação.
- Vem aí! Vem aí!
O foco principal ilumina o caminho de cinco personagens.
- É uma rainha!
- É uma rainha!
Montada num burrinho, Íris é ovacionada, colocam-lhe sobre a cabeça uma coroa de flores. O percurso até ao palanque do trono é atapetado por colchas de mil cores.
Aplausos. Gritos. Assobios. Aplausos.
- É a rainha!

Íris senta-se no trono macio colocado no cimo do palanque. Reinará durante sete dias. A sua Palavra será ouvida por toda a cidade. Durante sete dias aquele será o seu povo, como manso rebanho a seus pés, escutará a flauta da pastora.
A Sétima de Tamara da longínqua Geração, tornou-se hoje na milésima, a rainha da cidade.
O carreiro espinhoso revela-se agora num tapete colorido que a conduz ao trono.
E o silêncio de outrora, opressivo, é neste momento um silêncio reverente e terno.
Íris traz a Palavra. A Palavra daquele que gerou a vida.
A Palavra formada por todos os sons da música universal.
Quem a quiser ouvir, cale a sua própria voz e oiça.
Íris traz a emoção. A emoção feita de todos os sentimentos que vivem na alma de todos os seres.
Quem quiser sentir, aquiete o seu coração e, sinta.
O coro de apoiantes brame de inquietação e deixa que o ar estremeça de euforia, um coro que vibra da Terra ao Céu e do Céu à Terra.

Íris volta-se para as suas companheiras e diz-lhes baixinho:
- É só uma semana. Depois os ouvidos, os olhos e os corações tornarão a ser como eram, tal como o azeite voltará à superfície a sua mesquinhez e, ela manifestar-se-á nos homens com crueldade.
- É só uma semana!

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