quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O Caminheiro


Recordações


Depois de um primeiro sono profundo e sossegado, o homem entrou num outro sono, pesado, preenchido de sonhos.
Viu-se multiplicado como numa sala de espelhos. Cada expressão, cada gesto era copiado simetricamente por todos os outros.
O espaço onde se encontrava era indefinido, vago! Envolvia-o uma bruma angustiante que o impedia de reconhecer os limites. Aqui e além vislumbrava silhuetas de árvores nuas e rostos muito brancos que o mimavam. Quando pronunciava um som, uma palavra, via apenas reflectido o movimento dos lábios, já que a ausência de ruído era absoluta.
Em jeito de desafio, avançou para o que estava mais próximo. Estendeu os braços para o tocar, tocou-o, mas não sentiu nada... as mãos interpenetravam-se, fundindo-se. Recuou. Onde estava?
Já não tinha medo, mas a curiosidade levou-o a desejar outro lugar.
Uma a uma, as cópias tomaram as formas do seu passado! Ali, um menino de escola brincando com o seu avião simulando voos acrobáticos. Mais à frente, um rapazinho debruçado num muro imaginário e estendendo o olhar sobre o abismo. Um pouco mais distante, um jovem nadando furiosamente num mar vigoroso que vinha morrer na praia dourada. Depois, um homem rodeado de gente, erguendo no punho um diploma enrolado.
Reconheceu-se.
Reconheceu os momentos de herói provisório que havia vivido.
Estava orgulhoso de si mesmo!
Ele era o guerreiro feito à medida da sua luta.
Esticando-se, o corpo cresceu-lhe e rodeou como uma circunferência o mundo inteiro, de uma forma maternal com o peito e o ventre colados a ele numa atitude interna de posse.
Essa imagem pairou durante largo tempo no universo escuro que a continha e só a sua florescência impedia de se tornar real. Ele sentiu-se nessa hora, o Senhor!
Acordou com o vento a bater nos vidros da janela, o céu estava nublado e prenunciava um dia desagradável. Há tanto tempo que não sentia a macieza de uma cama! Merecia-o. Deixou-se ficar nessa modorra vendo a manhã passar. Relembrou as imagens do seu sonho mas não se deu ao trabalho de as analisar. Fora só um sonho!
Involuntariamente, fechou de novo os olhos...
A mulher bateu à porta.
Sobressaltado, levantou-se e pigarreou uma desculpa. Vestiu-se à pressa e desceu. Passava do meio-dia.
A mulher serviu-lhe o almoço. Ele olhou-a com olhos de homem. Ela deixou-se olhar. Sem saber porquê decidiu ficar mais um dia. Propôs isso à mulher e ela, naturalmente, aceitou.
Enquanto ela lidava, o homem observava-a. Ás vezes levantava-se nervoso e ia até à porta, sacudia as pernas como para as sentir presas ao corpo. Depois voltava a sentar-se na sala só para a ver.
A mulher não possuía nenhum atributo demasiado relevante, mas tinha nela algo que o segurava. A dada altura ela passou junto a si, ele tocou-a, e ela enfrentou-o. Ficaram parados, inquirindo-se. Não havia nada para dizer com palavras porque o calor da proximidade dos corpos falava em todo o seu tremor. Um desejo imenso tomou conta de ambos...
Durante toda a tarde se roçaram e amaram em pensamento, fantasiando antecipadamente todos os gestos.
Ao anoitecer, em cumplicidade, subiram ambos para o quarto e permitiram que a torrente estrangulada do dia brotasse e queimasse os seus corpos.
No final da madrugada e pela primeira vez, a mulher fez uma pergunta:
- Porquê?
Ele ficou acordado e numa voz surpreendentemente clara, respondeu:
- Eu olhava e não te olhava. Dirigia o meu olhar para ti. Mas era de ti que vinha o meu olhar!
Ela sorriu e aconchegou-se na concha do homem. Ele sorriu e sentiu-se de novo a circunferência do mundo!

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