quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O Evangelho de Íris


ÍRIS


Mensageira dos deuses Hera e Zeus. Metamorfoseada por Juno em arco-íris.




A gente de Geração anda preocupada. Íris, a Sétima filha que Tamara deixou, é estranha. Muito estranha mesmo. Passa a vida a perguntar coisas. Nunca pára ao pé de casa. Está sempre longe. Até já a apanharam uma vez a caminhar pelo carreiro que leva à aldeia.
Mas, o mais grave é que fala com as coisas, com os animais, as plantas, as fontes. sabe-se lá com quê mais.
Íris quase não dorme. Acorda ainda de noite. Vai até ao cabeço dos montes e espera que o Sol regresse ao dia. Gosta de ficar ali sentada em silêncio. Quando os primeiros raios furam o anilado do céu, levanta-se e dá-lhes os bons-dias - É Sol que me dizes hoje?- grita na sua vozita infantil. Ao entardecer faz o mesmo com a Lua e as estrelas. No outro dia, as estrelas desceram tanto que puseram as pontas na Terra e dançaram com ela. Íris não ri com medo de as assustar, só sorri e dança, dança! Apesar de gostar da Lua e das estrelas, prefere conversar com o Sol. Ele aquece-lhe o sangue e não se importa com as suas gargalhadas. Quando está com os astros, Íris toma todas as suas cores. Fica brilhante! A menina não compreende porquê que os outros não entendem as suas conversas e, quando fala nisso às suas companheiras, elas ficam amedrontadas e fogem dela.
Íris fala com as fontes. Elas são muito alegres. Passam muitas tardes juntas, principalmente no Verão. Elas explicam-lhe pacientemente como é o interior da terra, como é o rio onde vão desaguar, o mar, as nuvens, enfim, todo o mundo líquido de que fazem parte.
Íris viaja com elas em pensamento, mergulha nas suas águas e deixa-se levar até à foz do rio azul. Prova o sal do mar e extasia-se com todas as algas, todos os peixes que nele vivem.
Ás vezes Íris conta essas histórias às mães e elas ficam caladas, sussurram para o lado, coram ou empalidecem. Até o seu pai que parece um homem inteligente, meneia a cabeça e diz: - tch...tch... Que imaginação esta menina tem! Íris não sabe bem o que é imaginação, mas não fica muito contente com isso. Dá-lhe a impressão que não acreditam nela.
Por isso aprende a calar. Por isso se separa cada vez mais dos outros e se torna mais estranha aos seus olhos.
Uma manhã, depois da conversa com o Sol, Íris resolve ir até ao campo das flores situado no vale de Este. Elas chamam-na baixinho, estão muito magoadas. Na véspera um bando de crianças espezinhara-as, arrancara-as e, muitas delas sucumbiram.
Íris afaga-as devagarinho, canta-lhes uma cantiga sem palavras. Das mãos deixa que um clarão verde as ilumine. E elas sossegam. Íris promete falar com as crianças e explica-lhes que na Primavera seguinte as suas sementes brotarão multiplicadas tornando mais colorido o tapete onde crescem. A voz das flores é feita de perfumes, por isso o ar toma um intenso odor que chega ao terreiro. As pessoas, ao sentirem o cheiro, saem das suas casas, das suas oficinas, dos seus campos e olham para o local onde Íris está, toda rodeada de verde luminoso, dançando por entre as flores agradecidas, que se agitam também.
Mãe Vanda chama-a. Mãe Marta chama-a. O pai chama-a. Mas... o perfume solto pelo ar embarga-lhes as vozes e Íris não os ouve.
Quando regressa, Íris vê o medo espalhado nos seus rostos. Um medo que se transforma em cólera. Embora fique chocada não tenta justificar-se. Eles nunca perceberão o que se passa com ela.
Íris aprende a calar. Por isso se separa cada vez mais dos outros e se torna mais estranha aos seus olhos.
No cabeço de um dos montes está uma rocha desgostosa. Está farta de ter há tanto tempo a mesma forma, de estar sempre no mesmo lugar.
Atenta, Íris ouve-a. Depois diz-lhe que ela lhe poderá dar outra forma. Se ela quiser, embora isso possa magoá-la.
A esperança dá um sorriso à rocha. O sorriso da rocha é deixar escorregar devagarinho os seus grãos de areia. Mas, mesmo assim pede que Íris lhe dê outra forma. Mesmo doendo. Não há maior dor que ficar a vida inteira igual. Íris que traz consigo um pequeno fuso, passa a desbastá-la. Enquanto o faz, a rocha sorri e deixa cair uma gargalhada um pouco maior.
A rocha torna-se a pouco e pouco num enorme pássaro de asas abertas. Íris conclui que está pronto o seu trabalho e inocentemente arrasta-a para o terreiro. Está tão bonita!
Apavoradas as crianças vão chamar as mães, vão chamar os pais. Quando estes chegam ficam todos muito calados com os olhos muito abertos. Depois, num murmúrio que se torna brado, empurram uma escultura até uma ravina e despenham-na no vazio.
Íris acompanha escandalizada toda a acção. Quer reclamar mas não consegue. As lágrimas correm pelo seu rosto amargas, grossas. Quando todos se afastam, olha lá para baixo e grita à rocha.
- Perdoa-lhes rocha, que eles não sabem o que fazem!
A rocha que não pára de se rir, responde:
- Não faz mal, Íris. Eu mudei, eu mudei!
Íris aprende a calar. Por isso se separa cada vez mais dos outros e se torna mais estranha aos seus olhos.
A Avó Grande chama Íris. Ela só costuma falar com os pais e as mães e, mesmo assim, só quando é necessário. Íris está intrigada. Não sente medo mas também não se sente muito à vontade.
A Avó Grande é pequena, tem o cabelo e os olhos quase brancos. Está sentada num banco de pedra à porta da sua casa Como é que alguém tão pequeno pode dominar tantos? A voz sai-lhe lenta esganiçada e começa por perguntar:
- És tu Íris. A Sétima de Tamara?
- Sim, sou eu. E tu? Tu és a Avó Grande que comanda o destino do nosso clã e mantém o seu silêncio?
A velha franze o nariz, não está habituada a que a interpelem. Principalmente por uma garotinha que ainda nem chegou à puberdade. Por isso quando fala novamente é como se um vento gelado soprasse.
- Uma criança não faz perguntas. Limita-se a obedecer e a ouvir o que os mais velhos lhe dizem. Sabes porque te chamei?
- Não...quer dizer, talvez porque mudei a rocha num pássaro... Mas o pássaro não voava!
- Um pássaro de pedra ! Um ídolo! Uma blasfémia menina!- grita agastada a Avó Grande- E há mais, fazes as flores perfumarem o ar como se enlouquecessem, dizem até, que falas com as fontes e os astros. É verdade, Íris?
- É...é verdade! Não vejo que mal tenha isso. A divindade que habita em mim, é a mesma que habita todos os seres. É natural que me entenda com eles.
- Blasfémia, blasfémia menina!
É segunda vez que a Avó Grande usa aquela palavra! Não a conhece bem. Não é o mesmo que verdade nem o mesmo que mentira. É uma palavra que fere e não sabe porquê.
- Avó Grande o que é blasfémia?
- Blasfémia é o pecado maior. A divindade que habita os seres é silenciosa e tu pões nela a palavra.
- Mas...Avó Grande, as palavras não são minhas, são palavras de troca que o pensamento transporta.
- Cala-te. Cala-te. Serás votada ao silêncio. Ao silêncio absoluto. Durante sete luas ninguém te dirigirá palavra e tu não te dirigirás a ninguém. É o castigo.
- Mas...
- Vai-te! -Que eu não te torne a ouvir nem a ouvir o teu nome nesse espaço de tempo. De contrário serás banida.
Íris regressa com o silêncio. Tem vontade de chamar hipócritas a todos aqueles que falam com o pensamento mas não têm a coragem de o fazer de viva voz. A tortura dos homens é grande. Só lhe resta a fuga para os recantos mais escondidos e falar, falar com os animais, as plantas, a terra e as águas que não sabem o que é blasfémia e lhe respondem.
Íris já sabe calar. Mas continua separada dos outros porque é estranha aos seus olhos.


A tortura do silêncio mantém-se. Íris passa ainda mais tempo nos montes junto da natureza. Ninguém se importa com ela. Os estranhos não são bem aceites. Íris é uma estranha.
Ouve-se um grito lá em baixo. Íris acorre preocupada. Junto dos tanques de tingimento das lãs estão três mulheres petrificadas de medo. Um lobo enorme e preto, de baba escorrendo pelas queixadas e olhos vermelhos ameaça atacar.
Quando Íris chega o lobo sobressalta-se. Ela baixa-se até ele. Afaga o seu lombo, a sua cabeça, levanta-lhe uma das orelhas e segreda-lhe qualquer coisa. O lobo parece compreender. Lambe-lhe as mãos e parte.
O espanto das mulheres é tão grande que uma delas desmaia. As outras tremem. Íris afasta-se também e vai para debaixo da sua árvore preferida. Uma figueira mansa. Sente uma dor enorme no seu peito. Uma dor que se mistura com a náusea e a faz fechar os olhos e deitar-se no chão.
De repente sente-se levada, olha para baixo mas o seu corpo continua estendido de bruços no chão. À sua frente um vulto luminoso e amarelo dá-lhe a mão e leva-a a planar sobre toda a área do clã. entra nas casas e ninguém a vê. Leva-a até ao carreiro, pede-lhe que o siga. Íris pela primeira vez na sua vida sente medo e regressa ao seu corpo debaixo da figueira. É quase manhã e nesse dia ela não cumprimentou o Sol.
A população do clã vem em grupo até ela. Ouve gritar:
- Banida! Banida! Vai-te embora. Vai-te embora!
O corpo de Íris treme. Faltam-lhe as forças. Mas o medo é maior e empurra-a para o carreiro que vai dar à aldeia.

Sem comentários: