terça-feira, 3 de novembro de 2009

O Evangelho de Iris


I

GERAÇÃO



Entre o oceano bravio e a serra áspera já calva de erosão, à distância de uma manhã da aldeia mais próxima, fica Geração. Um lugar em que as casas de barro e areia dão guarida a uma família, a um clã, que não tem para comunicação mais que um carreiro torto e pedregoso, e que devido ao seu isolamento, vinca as suas particularidades. Não chegam as trezentas almas incluindo crianças, não têm lugar de culto, escola ou órgão representativo de poder que lhes lembre que fazem parte deste planeta. Todo o seu património é colectivo e todos os seus bens são retirados da terra. Os pouquíssimos objectos que não podem ser produzidos por si, trazem-nos de longe em longe, e porque que necessidade a isso obriga, por um voluntário que se dirige à aldeia vizinha. Como não comercializam, não têm moeda de pagamento, recorrem à troca directa onde a boa vontade dos aldeões acaba por aceitar, mais como por superstição do que por solidariedade. Geralmente trocam cabras, ovelhas ou animais de pêlo, apanhados em armadilhas, por lâminas, pregos ou outros utensílios.
A comunidade vive sob a autoridade do mais velho elemento. Tradicionalmente é uma mulher, uma avó, por quem nutrem imenso respeito e reverência. Ela, pela sua experiência lega aos outros a sabedoria e a justiça. Também é ela que decide quando devem ser feitas as sementeiras ou as colheitas, ou ainda, quando é necessário que um emissário enfrente o mundo exterior e vá até à aldeia.
O casamento, digo antes, o acasalamento, não é monogâmico, nem esse conceito é perceptível por eles. Apesar de tudo evitam as ligações entre pais e filhos e entre irmãos, quase como por instinto, em defesa do seu património genético. A mãe é quem fica encarregue da educação e da subsistência dos filhos. Os homens respeitam as crianças mas não nutrem por elas nenhum sentimento paternal. Defendem-nas, vigiam-nas mas separam-se totalmente dos aspectos afectivos. A partir da puberdade os rapazes desligam-se das mães e passam a acompanhar os homens adultos, enquanto as raparigas começam também a assumir as suas funções femininas. Não há rivalidade entre os dois sexos, mas sim uma espécie de cumplicidade.
A moral existente é um conjunto de regras aceites comummente. Fechados em si próprios, receiam o que vem do exterior e hostilizam os forasteiros que por qualquer razão atravessam os seus domínios. Embora não utilizem armas nem se possam considerar guerreiros, mantêm para com os outros uma total frieza que desmotiva qualquer um. Não dão, nem recebem com facilidade, como se esse facto implicasse o abaixamento das suas defesas.
Vivem um presente contínuo.
Fisicamente são todos parecidos. Nem de outra maneira poderia ser; não muito altos, secos e rijos. A pele é muito branca, quase leitosa, enquanto os olhos e os cabelos variam de azul a cinzento, de vermelho a castanho. Proporcionalmente têm os membros muito compridos em relação ao tronco curto e estreito. São ágeis, resistentes, quase incansáveis.
Apesar do grupo ser muito silencioso, têm um vocabulário extenso e o seu pensamento não é linear. Chegam a ter um gosto pelo poético das palavras e pela sua musicalidade. Mas, como em tudo o que fazem, a sua arte é íntima e só se manifesta em ocasiões muito especiais. Nas longas noites de invernia ou nas tardes ardentes de verão, quando o trabalho físico é quase impossível de realizar, juntam-se numa espécie de assembleia e dão largas aos seus dotes numa disputa saudável de reconto de poemas e histórias.
Professam uma ideia de sobrenatural. Consideram as forças da natureza ou os próprios elementos portadores da divindade única existente. Essa divindade não tem nome, é simplesmente divindade. Respeitam os ciclos naturais e agradecem à divindade única que se manifesta na terra, na chuva, no vento, todas as suas benesses e sobretudo, têm de si mesmo a ideia de que fazem parte desse corpo divino. Para eles qualquer que seja o ser, animal, planta ou rocha é composto de duas partes; a eterna, que transmigra de forma em forma e vive para todo o sempre e, a outra, que só é utilizada em cada vivência e que alimenta com os seus despojos a primeira. Assim o nascimento e a morte têm uma importância relativa. Pois que cada morte dá vida e cada vida tem morte. Sem religião instituída não têm festividades exaltadas. Para eles o nascimento e morte de um ser humano é tão importante como o despontar de uma seara ou a queda de um rochedo.
As suas vidas são círculos concêntricos.
Não parecem aspirar à evolução. Não utilizam a escrita e tudo o que sabem é transmitido oralmente e guardado na memória ao longo das suas existências.
Não se esforçam por mudar. Aliás, a mudança de hábitos é para eles uma violação, tão grande que quase não sobrevivem.
No entanto, apenas à distância de uma manhã, o mundo «civilizado» evolui.
Geração é um hiato da História da Humanidade e não se sabe até quando conseguirá essa (in)diferença...

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