sábado, 27 de fevereiro de 2010

Profundo



Profundo
Tão fundo!
No submundo
Deste mundo...

És, no meu lodo semente
E deixas que ela dormente
Germine alegremente.

Alimento-a de mim em tuas águas
E faço com que as raízes me rasguem as mágoas.

Um dia, quando de mim restar o nada,
Ficará uma história
Que esvoaçará pelo vento, espalhada,
Ou se diluirá na chuva, ou na enxurrada.

Tu continuarás a viver contente
E eu virei ver-te, suavemente.

O Evangelho de Íris


A cidade


A cidade é um mundo próprio onde se misturam aqueles que procuram o seu clã.




A cidade está em festa. A festa durará a semana toda e receberá visitantes de todos os lados. Será uma semana que ficará guardada junto das outras semanas da sua recordação. Os anos contam-se através delas...
As ruas enfeitam-se de cores que iluminadas durante a noite se transformam num universo fantástico. Aspergida, a música envolve-se com os risos e enche os ouvidos de todos em qualquer lugar. Os cheiros das guloseimas e petiscos misturam-se ao suor e aos perfumes entontecendo quem o respira.
Nesta confusa alegria fabricada os homens despem o seu ar quotidiano e vestem-se de domingueiros fatos encontrados no baú das suas almas. Ébrios de gozo reinventam sortilégios e exorcizam os fantasmas dos outros dias. Juntam-se em pequenos magotes que sobem e descem as artérias, parando aqui e ali, dispersando-se ou aglutinando-se em outros grupos. Empurram-se, pisam-se, magoam-se, mas sempre com risos de cumplicidade.
O ano tem cinquenta e uma semanas cinzentas e aborrecidas, porque não uma vez por ano, haver uma que seja diferente para a festa?!

Este é o primeiro dia da primeira semana. É da tradição coroar o milésimo visitante e pô-lo a reinar durante sete dias. O povo excita-se com o acontecimento, vai esperá-lo à porta da cidade formando duas alas enormes adornadas de flores. A ansiedade aumenta enquanto os responsáveis gritam os números:
Novecentos e noventa e sete...
Os pescoços erguem-se, os olhos amiúdam-se no esforço de focar.
Novecentos e noventa e oito...
O silêncio parece imperar para que os ouvidos possam detectar.
Novecentos e noventa e nove...
Nas gargantas formam-se nós e a saliva enche as bochechas de excitação.
- Vem aí! Vem aí!
O foco principal ilumina o caminho de cinco personagens.
- É uma rainha!
- É uma rainha!
Montada num burrinho, Íris é ovacionada, colocam-lhe sobre a cabeça uma coroa de flores. O percurso até ao palanque do trono é atapetado por colchas de mil cores.
Aplausos. Gritos. Assobios. Aplausos.
- É a rainha!

Íris senta-se no trono macio colocado no cimo do palanque. Reinará durante sete dias. A sua Palavra será ouvida por toda a cidade. Durante sete dias aquele será o seu povo, como manso rebanho a seus pés, escutará a flauta da pastora.
A Sétima de Tamara da longínqua Geração, tornou-se hoje na milésima, a rainha da cidade.
O carreiro espinhoso revela-se agora num tapete colorido que a conduz ao trono.
E o silêncio de outrora, opressivo, é neste momento um silêncio reverente e terno.
Íris traz a Palavra. A Palavra daquele que gerou a vida.
A Palavra formada por todos os sons da música universal.
Quem a quiser ouvir, cale a sua própria voz e oiça.
Íris traz a emoção. A emoção feita de todos os sentimentos que vivem na alma de todos os seres.
Quem quiser sentir, aquiete o seu coração e, sinta.
O coro de apoiantes brame de inquietação e deixa que o ar estremeça de euforia, um coro que vibra da Terra ao Céu e do Céu à Terra.

Íris volta-se para as suas companheiras e diz-lhes baixinho:
- É só uma semana. Depois os ouvidos, os olhos e os corações tornarão a ser como eram, tal como o azeite voltará à superfície a sua mesquinhez e, ela manifestar-se-á nos homens com crueldade.
- É só uma semana!

O Caminheiro


A irreflexão




Toda a manhã arrastou os passos pelo terreno cada vez mais arenoso do lugar, ás vezes era interrompido por zonas de rochas e aproximava-se perigosamente do mar bravio que rugia lá em baixo, outras sentia a áspera dureza de um solo estéril que se recusava a dar mais do que espinhos e cactos.
O dia prolongou-se naquele desânimo e à noite dormiu ao relento aninhado num buraco de rochedo. Só no final do dia seguinte encontrou um casal composto de meia dúzia de casas que mais pareciam cabanas, pois estavam construídas de adobe e cobertas de folhas de palma amarelecidas. Entrou no terreiro e gritou um “faz favor” esperando que alguém o atendesse.
Uma mulher de meia idade saiu de uma das casa e pôs a mão em pala sobre os olhos por causa do sol baixo que incidia nela.
Educadamente, ele pediu para mudar a água do cantil e descansar ali naquela noite.
A mulher mostrou-lhe o poço que ficava nas traseiras e avisou-o de que a água não era grande coisa, mas que se servisse à vontade! Depois explicou que os familiares andavam nas rochas a apanhar lapas e que só viriam mais tarde. O único espaço disponível era uma espécie de barracão feito de lata onde estavam guardados alguns apetrechos de pesca e por ironia umas alfaias agrícolas que nunca deveriam ter sido usadas. Disse-lhe ainda que se servisse sem acanhamento das cebolas pois não tinha pão, mas com sorte talvez os seus irmãos e filhos trouxessem alguns peixes.
Ele agradeceu a boa vontade da mulher. Entrou no barracão e pousou o saco e a manta sobre uma trave baixa. O cheiro violento da maresia e mofo misturado com o das cebolas quase o sufocou. Lá estavam elas penduradas em réstias douradas! Era aquela a fortuna daquela gente!
Saiu o mais depressa que pode e respirou fundo, em seguida bebeu um gole de água. Era amarga!
A mulher já devia estar ocupada, o silêncio abafava tudo. Sentou-se no chão com as pernas estendidas e, fechou os olhos. Não pensava em
nada, não sentia sono, mas o cansaço dos últimos tempos provocava-lhe um certo torpor.
Algum tempo depois, cinco homens, três mulheres e seis crianças faziam a sua aparição. Vinham carregados de latas. A mulher saiu-lhes ao encontro e esteve a falar um pouco com eles apontando furtivamente para o lugar onde ele se encontrava. Podia perceber o abanar de cabeça de um dos homens em gesto de assentimento.
Depois as mulheres e as crianças entraram dentro das respectivas casas e os homens espalharam sobre uma espécie de peneira o marisco apanhado. Aquele com quem a mulher tinha falado veio até ele vagarosamente.
Ao vê-lo levantou-se e encarou-o, era difícil determinar-lhe uma idade. As rugas profundas partilhavam o rosto com um olhar negro, brilhante e jovem. Cumprimentaram-se formalmente, o chefe de família reiterou a oferta da irmã e convidou-o a colaborar na preparação do marisco. Ele aceitou, e depois de algumas explicações úteis desempenhou a tarefa com desembaraço. As mulheres acenderam o fogo cá fora e trataram do resto .
Comeram em silêncio, naturalmente, todos pareciam poupar as palavras, até as crianças se mantinham numa gravidade pouco usual.
A seguir os homens entraram no barracão e começaram a organizar as coisas para o dia seguinte. Com algumas redes acamadas fizeram-lhe a cama e despediram-se dele com simpatia.
Ao contrário do que havia pensado, adormeceu quase instantaneamente e acordou no dia seguinte com o ranger da areia debaixo dos botins dos homens. Levantou-se rapidamente, colocou as redes sobre as traves como as vira penduradas na véspera e saiu para o terreiro.
Pediu aos outros que lhe indicassem o caminho do mar. Eles acederam convidando-o a acompanhá-los até lá. Despediu-se das mulheres que nesse dia ficaram em casa e juntou-se ao grupo masculino. Os passos firmes e regulares levaram-no então aos primeiros rochedos. Foi ali que se separaram. Cada um dos homens procurou o seu lugar habitual, ele seguiu em direcção ao poente.
Era difícil a caminhada, tinha que escalar com frequência algumas rochas e em equilíbrio precário deixar-se escorregar por outras para atingir plataformas deslizantes. As mãos já lhe sangravam e os pés cortados por conchas e arestas ardiam com o sal. Tinha tirado as botas para melhor sentir o terreno, mas não estava certo se tinha feito a melhor opção! A meio da manhã encontrou uma gruta suficientemente espaçosa para descansar. Estaria ele no caminho certo?
Tirou então o livro que o alquimista lhe havia dado e abriu-o ao acaso:

“ Depois das montanhas ao Reino chegarás.
As fontes se tornarão em profundos lagos
E neles, debruçado e atento, encontrarás
As imagens sábias dos Grandes Magos.
Elas te indicarão o rumo a seguir.
Mas deves reconhecer também os enganos!
Pois os Magos gostam por vezes de se rir
Daqueles que por vaidade se tornam ufanos.”

Sorriu. À primeira vista pareceu-lhe uma charada. Uma espécie de jogo de crianças. No entanto soube que estava cedendo ao orgulho e retrocedeu na sua avaliação.
Ele tinha já atravessado as montanhas mas, o reino que encontrara não tinha fontes nem lagos! Teve dúvidas. Seria por ali a sua caminhada? E se fosse um engano? Talvez algum dos Magos se estivesse agora a sorrir...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Longa



Longa é a noite no meu sono inquieto
De fantasmas ruidosos perpassando
De palavras soltas, livres, penetrando
Na vigília do desassossego secreto.

Longa é a noite no meu sono cansado
Feito de mil voltas em busca de nada.

O Evangelho de Íris


Andreia


A coragem não se lança do alto até ao abismo, antes, é a voz do abismo que chega ao alto.





À porta da cidade está um circo. Um circo pobre de lonas remendadas e cores desbotadas de onde transpira uma música roufenha de altifalantes cansados.
O circo é o lugar privilegiado da Palavra. A Palavra que torna todas as cores e todas as formas em estrelas que encantam e seduzem na sua simplicidade. É também onde a coragem transforma em alegria o dia a dia cinzento de cada um. O circo é o lugar de Andreia.
Andreia como todos os outros da grande família, veste e despe os personagens numa corrida. É necessário parecer mais do que são. Camuflar a carência com a exuberância e lutar contra a monotonia que os invade tantas vezes.

O burro que Andreia monta, ungulado, torna-se um puro sangue. Ama-o apaixonadamente, deixa escorrer lágrimas emotivas sobre o focinho penugento, só não fala porque a natureza lhe não deu órgãos de fonação. O olhar compensa-o.
O burro de Andreia troteia ao som da música. Balança as crinas prateadas no bailado de homens. Deixa que Andreia o monte e o comande com uma ternura quase paternal.
Andreia serve esse amor com a mesma força. Os muitos irmãos e os muitos primos não lhe deixam espaço. Só o burro cinzento e amigo lhe reserva um lugar no seu carinho. O burro é toda a sua família, todos os seus bens. É o veículo da sua afectividade e impõe-se para além de toda a comunidade.
O burro de Andreia é a sua força materializada.

Andreia trapezista amarra o medo nas cordas no trapézio, sorri como fada e lança-se no vazio das suas emoções esquecendo as asas... Naquele desafio diário, Andreia disciplina a coragem. O balanço das cordas não permite hesitações. O espaço que as suas mãos agarram é o espaço que determina a vida.
O medo de Andreia nas suas pernas trepadoras, fica colado às cordas do alto. É preciso saltar, saltar, saltar e voar dando a ilusão que é possível tornar o sonho material.
O trapézio de Andreia fica no alto e a fantasia e a emoção dos outros fica em baixo, na arena da realidade...
Andreia palhaço limpa as rugas dos rostos contraídos. Limpa não, substitui-as por duas imensas pregas que dão forma às gargalhadas.
Andreia palhaço ri dos outros e de si própria e guarda no seu bolso mais fundo do casaco quadriculado, os sofrimentos e a fome.
Andreia palhaço faz nascer rosas nos lenços de várias cores e oferece-as a todos os presentes.
Andreia no rosto de palhaço tem as cores da vida, os traços da ilusão e o amargo da sua língua na garganta encolarinhada.
O palhaço é um anjo. Um anjo semi-deus que faz a ligação entre os homens e o Gerador.
A divindade fala pelo palhaço de Andreia.

Íris e as suas companheiras que entram pela fenda lateral e compreendem a sua linguagem, sorriem de felicidade e dizem:
- Como pode o circo alegrar-nos assim ? Como pode ele trazer esta vontade de ser feliz ?
Andreia que veio cumprimentá-las responde-lhes:
- Porque o circo é a voz que sai do abismo das nossas almas e nos faz ouvir a sua linguagem !
Íris, então, pousando a sua mão no ombro de Andreia, com suavidade convida-a:
- Vem Andreia, traz o circo que tens dentro de ti ao nosso grupo de párias. A Palavra só tem sentido se for gritada além de nós mesmas. És tu que tens o som dela no teu peito.
Andreia que tem preso pela arreata o seu burro, pergunta:
- Posso eu levar aquele que me dá força para gritar ?
Íris olha a abóbada de cores e durante alguns momentos espera a resposta. Por fim exclama:
- Será justo tirar a alma ao corpo quando este se confunde com ela ? Vem, traz o teu burro que faz parte de ti. A cidade está perto e a jornada está por acabar.
Fora da tenda que se desmorona, as cinco deixam-se rodear pelo espírito do conforto e entram na cidade...

O Caminheiro


O segredo


Um segredo é sempre algo que nos agita.
Ele não era diferente dos outros, depois de se emocionar com a história do velho e de se surpreender com a sua certeza em se encontrar consigo, pensou se seria digno de receber a sua mensagem. Por isso ficou calado!
O alquimista levantou-se e remexeu numa velha arca tirando dela várias lembranças até que chegou finalmente ao objectivo. Um pequeno e antiquíssimo livro. Cabia na palma da mão, tinha uma capa de pele endurecida e mosqueada, as folhas de pergaminho autênticas pareciam asas de borboletas sempre em perigo de se rasgarem!
O seu dono pegou-lhe com imenso carinho e, numa voz baixa e misteriosa, explicou:
- Este livro descreve em palavras o mundo que irá percorrer. Não é para o ler como se lê outros livros, deve apenas abri-lo ao acaso e ele aconselhá-lo-á. Mas...cuidado! A palavra tem sempre duas lâminas como numa espada, deverá sabê-la usar sem se ferir. Cada palavra tem um som. Um som que deve ser pronunciado correctamente, com ritmo, com harmonia, enfim com musicalidade! Se não o fizer a palavra deixa de ser a Palavra e pode enganá-lo. A palavra tem também um desenho próprio formado pelo grafismo das suas letras. Se se alongar ou encurtar demasiado os seus traços, o caminho passará a ser outro.
Pegue. Pegue nele e guarde-o consigo perto do coração. Leia bem sempre que precisar cada uma das suas palavras em voz alta, separando-as o mais possível para as reconhecer.
O homem pegou no livro com respeitosa reverência. As mãos tremeram-lhe um pouco, mas abriu a camisa e apertou-o ao peito. Olhou o ancião com um agradecimento sincero e profundo.
O dia lá fora estava bonito. Solarengo e morno. Suspirou. Estava na altura de se despedir. Voltou a expressar o seu agradecimento e, para seu espanto, o velho aproximou-se e beijou-o no rosto. As lágrimas correram-lhe então pela cara e, sorriu, sorriu por não sentir vergonha de amar aquele que servira de mestre.
Já na rua não se voltou para trás, firmou as pernas nos seus passos como se soubesse exactamente a direcção a tomar.
As dunas acenavam-lhe do horizonte.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Cego



Tu não reparas, não vês e não sentes
Que toda eu te anseio em ternura
Que neste sentimento a mistura
De mágoa e alegria, me tortura.

Tu não reparas, não vês e não sentes
Que me sobressalto a toda a hora
Que o meu espírito por ti chora
Calado no tempo da demora.

Tu não reparas, não vês e não sentes
Que despertaste em mim o alento
Que semeaste um sentimento
Que às vezes sozinha, chorando, lamento.

Não fora por ti não fora por ninguém
Porque antes de ti não há mais alguém
E porque és para mim último também.
Tu não reparas, não vês e não sentes.

O Evangelho de Íris


Vera

A verdade não é uma. Antes é una, porque é feita de muitas verdades que a completam.





O subúrbio da cidade é feito de lata e de madeira apodrecida que acoberta os homens.
Os seus trilhos são de lama mal-cheirosa mas servem de apoio aos passos cansados.
Os cães e os gatos disputam o lugar e ao mesmo tempo comungam do desalento.
No bairro das barracas há uma nudez que descobre as nódoas e os vincos das almas.
O horizonte do subúrbio é feito de estacas e silvas e fere...e fere...

Vende o seu corpo num bar da cidade. Uma troca que considera justa. Não finge o prazer nem disso é capaz !
Durante o dia serve outros senhores. Uma troca que considera injusta. Não finge o agrado porque isso não é capaz !
Vera é feita dessa verdade. Tem o corpo moído dessa escrava função. Mas mesmo nascida no lodo, Vera traz agarrado a si o cheiro das madressilvas do passado.
Vera recusa sempre a falsidade. Não entra na ilusão daqueles que mascaram a vida com químicos e éteres. Não se deixa embrulhar pela apatia dos que se defendem fugindo.
Vera é uma ponte que une o desejo à realidade. Sólida, ligação entre a vida e o sonho. A falta de esperança não a inibe, porque a sua esperança a empurra para a realidade quotidiana e a faz falar e agir com vigor.
Quem a rodeia não a teme. Vera não esconde nada. E ali é quase respeitada, quase amada, porque é nua, tão nua que se lhe vê a alma !

Quando Íris, Ofélia e Leonor entram no subúrbio, recebem dele o fedor da miséria. Pela primeira vez têm contacto com o pecado, mas não sabem o que é pecar. Recebem a esmola de quem nada tem para o seu sustento e, a indiferença que se molda nos rostos não as magoa. Na sua inocência não compreendem como pode a divindade estar presente ali ! No entanto, o vermelho espírito pairou sobre elas assinalando que aquele é também um lugar de recolha.
Sentadas no muro arruinado as três obedecem. Leonor tem nos seus olhos as lágrimas, Ofélia tem nas suas mãos o pão, e Íris no seu espírito, a vigia.
Esperam...

No crepúsculo da tarde, quando a luz do dia torna mais nítidas as formas, vêem Vera a regressar. Traz gravadas as expressões do dia. Os seus passos não se apressam nem se arrastam porque sabe que a esperam...
Quando se encontram, Vera é intuída pela voz da divindade:
- Viva quem de tão longe traz a Palavra e os Sentimentos. Não sei quem me guiou até vós, mas sei que em vós me completarei!
Íris levanta-se e sorri. Deita sobre ela a bênção do seu olhar e responde:
- Bem vinda sejas Vera. Esperávamos por ti. De nada vale a verdade senão ajudar o outro. De nada vale a verdade se não for vestida de compaixão e o inverso também é certo, a ajuda e a compaixão devem conter cada qual, parte da verdade.
- No entanto...- hesita pela primeira vez Vera- É visível a minha nudez. Nem sempre salvo com ela quem se ornamenta de ilusão e quase nunca a verdade se reconhece na Palavra.
- É para isso que aqui estamos. Para te levar connosco no caminho que nos indica a divindade.
Vera recebe de Leonor o sorriso e de Ofélia o seu abraço. Despede-se sem mágoa do bairro e descem o trilho que as conduzirá mais além.
A faixa vermelha do pôr-do-sol já escondeu o dia. Serão as estrelas e a Lua que a partir de agora as iluminarão.

O Caminheiro


Uma vida



Sabe, nasci nesta casa há setenta e oito anos. Foi herdada pelo meu pai de um tio solteirão que tinha fama de ser rico e avarento.
Os meus pais poderiam ter tido uma boa vida não fosse a doença da minha mãe. Nunca soube exactamente que tipo de doença era, só sei que me lembro dela passar os dias e as noites fechada no quarto aos gritos. Ás vezes escapava à vigilância do meu pai e fugia para a rua onde deambulava seminua.
Meu pai tratava-a pacientemente e com uma resignação única! Ouvi muitas vezes comentários maldosos à cerca da nossa situação mas nunca o ouvi queixar-se.
Talvez para me afastar desse ambiente, o meu pai enviou-me para o seminário. Tinha eu aproximadamente dez anos.
Naquele tempo era um estabelecimento de ensino acessível e com qualidade. Como eu era um garoto inteligente, obediente e sossegado, adaptei-me facilmente.
Quando acabei o correspondente ao ensino liceal, perguntaram-me se eu queria seguir a via sacerdotal e, até para surpresa minha, respondi claramente que não. Fui convidado a sair, está claro!
Entretanto a minha mãe falecera e o meu pai arrastava-se como podia aqui. Vim visitá-lo e falar-lhe da minha decisão. Não concordou nem deixou de concordar, limitou-se a falar de uma certa quantia depositada no Banco e no valor desta casa. Perguntou-me ainda qual era a minha ideia em termos de curso. Respondi-lhe que me inscrevera em Ciências. O meu pai acenou levemente a cabeça e sentenciou:
“- És tu que deves viver a tua vida. Por isso em nada te influenciarei.”
Fui pois para a Universidade. Os dois primeiros anos foram bem empregues, depois... depois entreguei-me aos desvarios, ás farras, deslumbrado com os novos amigos e o brilho da fama académica.
Levei quase sete anos a terminar a licenciatura e quando isso aconteceu não tinha um tostão no Banco.
Tive que me virar! Fui dar aulas para um liceu. Era mal pago, mas pela primeira vez comia o fruto do meu trabalho.
Foi por esse tempo que tive pela primeira vez contacto com uma organização de filosofia esotérica. Até aí nunca tinha pensado muito nesses assuntos, mas naquele momento senti uma necessidade enorme de compreender a minha própria existência.
Toda a doutrina aprendida no Seminário ficava-se pelo aspecto religioso, não me respondia, sentia-a como forma de repressão em vez de um meio de libertação das consciências. O meu espírito científico não se coadunava com dogmas.
Na altura em que frequentara a Universidade tinha-me assumido como agnóstico, era mais prático e ao mesmo tempo era uma espécie de reacção à educação que tinha tido.
No entanto, chegara o momento de perspectivar outro caminho. Só não sabia que esse caminho de busca era eterno, individual, evolutivo e extremamente doloroso no caso de o querer cumprir inteiramente.
Comecei como é evidente com conversas quase banais, depois pouco a pouco, um amigo aproveitou para me indicar alguns livros. Foi com um misto de curiosidade e desconfiança que os aceitei.
Ao começar a ler o primeiro não fui capaz de interromper, tudo era uma surpresa, uma revelação! A minha cabeça ficou um caos, mas o meu coração abriu uma porta que eu ignorava existir dentro de mim.
Falei com o meu amigo sobre os sentimentos que me assaltavam, a inquietação e o súbito reconhecimento da necessidade urgente de respostas a todas aquelas dúvidas que me haviam surgido.
Era como se uma comporta tivesse permitido uma avalanche de mistérios. E eu queria resolvê-los a todos! Com uma serenidade imensa, o meu amigo seleccionou as questões e as prioridades e ajudou-me a sistematizar a minha aprendizagem.
Ensinou-me sobretudo que livros daqueles não se liam assim de fôlego. Que capítulo a capítulo, parágrafo a parágrafo, frase a frase, palavra a palavra, eu deveria parar para, reflectir e meditar.
Confesso que me foi muito difícil essa aprendizagem. Naquele estado de ansiedade em que me encontrava era como parar a meio de uma corrida para recordar e reflectir sobre cada uma das minhas pegadas. Aprendi a anotar cada dúvida e cada pensamento que surgisse, aprendi a caminhar na corda bamba do pensamento sem me deixar cair.
Demorei quase dois anos recuando e recuperando, equilibrando-me!
Mas finalmente, estava preparado para ser um iniciado. Encontrei-me então numa casa situada num barro antigo da cidade. Uma casa por onde provavelmente teria passado milhares de vezes sem nunca suspeitar que estava destinada a pertencer ao meu destino.
Era uma bela noite de Verão. Jantamos ainda à luz do pôr-do-sol, tranquilamente, como se fôssemos tratar de assuntos vulgares. Depois, enquanto fumávamos, fizeram-me saber que uma das principais regras era o sigilo. Nesse tempo além de ser proibido pelo governo as “ seitas secretas”, também era arriscado passar por louco ou por feiticeiro. Assenti. Afinal quem era eu, acabado de entrar, que os contradissesse! Acima de tudo tinha que provar ser merecedor da confiança que depositavam em mim.
Quando se entra nestes ciclos dificilmente compreendemos a dimensão diferente que o conhecimento tem em relação aos conhecimentos adquiridos academicamente. A alquimia foi o ramo escolhido por mim para alcançar as respostas que procurava. E, a alquimia, é uma prática intensa que requer o treino da paciência e da persistência, aliadas a uma disciplina rígida da nossa conduta moral. É fácil sermos tentados a utilizar as nossas aprendizagens para resolver problemas comuns. É fácil sermos tentados pelo o nosso orgulho a destacarmo-nos dos outros. A primeira coisa que aprendemos é que tudo tem um tempo e uma medida certa que não depende inteiramente de nós. Mas o mais importante é que deveremos ser prudentes para não sermos enganados pela aparência. Sobretudo é preciso não uma, mas várias vidas de estudo intenso para se subir um degrau que seja. Descobrir o ouro alquímico é descobrir a perfeição espiritual e, essa não tem limites!
Uma guerra perdida, pensará você?! Talvez, mas repleta de pequenas batalhas que se vencem e nos dão o conhecimento. A “magia” aliada à manipulação dos elementos é uma forma de consubstanciar as ideias. Através dela chega-se à ciência perfeita porque agrega a física, a matemática, a química, a biologia, a ética. É a antiga filosofia, mãe do saber universal.
Enfim, apesar de tudo sou humano e, ao chegar aos trinta e cinco anos, senti-me de repente sozinho. Nunca me havia preocupado com esse aspecto até que conheci aquela que viria a ser a minha mulher. Foi uma revelação! Ela era a outra parte de mim. Conhecia-a por acaso. ( Como se o acaso existisse...), em casa de um médico meu conhecido que também fazia parte da organização.
Logo no primeiro olhar a reconheci. A ela aconteceu-lhe o mesmo. O curioso desta situação é que nunca falámos de amor, como se esse sentimento fosse tão evidente e conhecido de nós que nunca houve dúvidas. Era uma espécie de reencontro, sabíamos os dois o que esperar. Deste modo tivemos um namoro pouco convencional e no final do terceiro encontro propus-lhe casamento. Ela aceitou sem subterfúgios, era tão natural! Casámos precisamente três meses depois e foi nessa altura que lhe confessei que estava ligado a um grupo de estudos e que ela teria que me partilhar. Outra mulher talvez tivesse ficado assustada com a ideia, ou aborrecida... no entanto ela sorriu e disse-me que era melhor assim, porque aprenderia através de mim. Fiquei admirado com tanta compreensão mas com o decorrer do tempo entendi que afinal era ela que me ensinava a mim. No final do segundo ano apercebemo-nos que não poderíamos ter filhos. Não houve culpas e a minha mulher reagiu sentenciando:
-“ Se não nos é permitido ter filhos é porque teremos que amar de uma outra forma.”
Pedi transferência para o colégio da vila e viemos morar para esta casa. Eu ainda quis modificar alguns pormenores para a tornar mais cómoda, mas ela opôs-se dizendo que era nesta simplicidade que queria viver.
Começamos então a amar o nosso quintal. Plantámos árvores, fizemos a horta e o jardim. Construímos um pombal e umas colmeias. Aos poucos o nosso quintal foi-se tornando a nossa razão de viver, o nosso pequeno paraíso.
Eu continuava, como continuo, a trabalhar em alquimia. Ela entretinha-se neste lugar. Tudo o que fazia lhe dava prazer, nunca a ouvi dizer que trabalhava, mas sim, que se ocupava de...
Adoeceu há quatro anos, quis levá-la ao médico mas recusou-se. Disse-me que me preparasse porque estava na hora de nos despedirmos mais uma vez. Fiquei magoado e andei uns dias rabugento, sentia que me iam roubar um pedaço de mim. Mais uma vez, foi ela que me ensinou dizendo:
-“ Nada do que demos um ao outro pode ser tirado porque foi de alma para alma e não apenas de corpo para corpo.
Depois de partir ficarei contigo em cada canto desta casa, em cada flor do nosso jardim. Ter-me-ás quando comeres os frutos das nossas árvores ou os legumes da nossa horta. Afagar-me-ás quando afagares os nossos gatos, os nossos pombos. Cada átomo do ar que respiramos está aqui, no ar que ambos fecundámos. Um dia, quando tu partires também, e nos voltarmos a ver, perceberás como realmente somos um só!”
Partiu. Eu fiquei. Não lhe vou dizer que não sinto a sua falta, mas a recordação das suas últimas palavras acompanham-me.
As pessoas daqui nunca nos viram com bons olhos. Não estão habituadas à felicidade dos outros, nunca entenderam porque vivíamos no nosso mundo sem o partilhar com elas. Sabem que tenho um laboratório e então, na sua ignorância, chamam-me bruxo...
Não me preocupo. Afinal tenho a consciência que nunca os prejudiquei! Que falem, isso dá-lhes prazer!
Acho que estava à sua espera. Sabia que viria alguém ter comigo antes de terminado o meu tempo e que lhe teria que revelar algo. Obrigado por ter vindo. Obrigado por me ter escutado!
O que tenho que lhe dar é segredo. Um segredo que você usará da forma como entender. A responsabilidade é inteiramente sua e as consequências também. Percebeu?

domingo, 20 de dezembro de 2009

Misterioso




Para além dos mistérios e dos universos
Ondula esquivo o teu olhar de navegante
Em intensa, fantástica procura, constante
Vagueando no mundo das palavras em meus versos.

Cerrado no culto, qual solene oficiante
De ritos que esconjuram presságios adversos
Dominas meridianos e seus inversos
E fazes-te ao mar, como mareante.

Transportas, ainda mesmo que o não saibas dizer,
Arrastada, a indomável e estranha fera
Que se manifesta, tocando e me faz doer.

Enquanto que eu queda no porto da tua espera
Abrigo no colo aberto para te receber
A encarnação felina da enorme quimera.