domingo, 20 de dezembro de 2009

O caminheiro


Estranho contacto




A noite apanhou-o ainda no percurso.
A neblina envolveu-o criando um cenário de feitiço.
Não sabia onde estava, caminhava apenas tendo como orientação a cúpula de uma igreja longínqua levemente iluminada.
Daí a algum tempo os seus pés pisaram uma estrada. Era de terra batida, estreita e esburacada, mas tornava-se uma esperança de vida.
Uma casita aqui, outra além, e na escuridão acabou por encontrar uma pequena vila adormecida. Àquela hora não era provável que lhe dessem abrigo.
Por instinto encontrou a igreja que fora seu farol, recolheu-se num canto abrigado e adormeceu.
Sentiu que o abanavam com firmeza mas o seu corpo não respondia, estava entorpecido tanto pelo o sono como pelo esforço da véspera. Os olhos resistiam, cerrando-se ainda mais.
- Ó homem, homem! O que faz aqui a esta hora? Levante-se que ainda fica doente. Vá venha comigo, dentro da minha casa há um bom fogo onde se pode aquecer e um caldo acabado de fazer. Está a ouvir?
O calor prometido começou a despertá-lo, aos poucos foi reagindo, abriu as pernas e os braços, tornou a fechá-los e enfrentou o homem de idade avançada e magro que tinha na sua frente. A luz apesar de fraca deu para o observar. Tinha um rosto estranho, quase mítico, dele sobressaíam-lhe uns olhos escuros, muito vivos, um nariz e um queixo salientes e uma boca que se divertia discretamente.
- Então homem? O que faz por aqui? É forasteiro?
- Atravessei ontem toda a serra a pé e quando cheguei já não havia ninguém a quem pedir abrigo...
- Venha comigo, esta neblina dá cabo dos ossos de qualquer um. Eu moro já ali.
Ele levantou-se, as pernas doíam-lhe, tinha uma pressão incómoda na cervical. A posição em que adormecera fora castigadora. Atrás das passadas rápidas do homem, caminhou trôpego.
A casa ficava no outro lado do largo. Era relativamente pequena, na fachada havia apenas uma porta e um postigo. Quando entrou viu-se numa espécie de átrio empedrado e abobadado. O corredor em frente estendia-se até à cozinha. Pareceu-lhe ter entrado de repente num laboratório alquímico da Idade Média. A mesa comprida de madeira e mármore ocupava quase todo o compartimento, em cima dela estavam bicos de bisel, retortas, tubos de ensaio, toda a panóplia utilizada para experiências do género! Numa parede do fundo havia um forno encastrado, ao lado uma chaminé e uma lareira onde uma trempe suportava um caldeiro de ferro.
- Garanto-lhe que é caldo de hortaliça! Hoje não há sapos... ( riu o velho ao ver a sua cara de espanto)
- Parece que entrei noutro tempo!
- Sente-se, sente-se aí nesse canto.
- Se... se não se importasse gostava de lavar as mãos e... a cara.
- Além, olhe está a ver? Há ali uma pia, um jarro com água e sabão. Não tenho casa de banho. Para urinar saia essa porta que dá para o quintal. É o que lhe posso oferecer...
- Agradeço muito.
Saiu até ao quintal, para seu espanto viu um vasto espaço primorosamente cultivado. Havia desde árvores de fruto a ervas medicinais, passando é claro, pela horta. O sol começava a dar sinais de vida e todas as plantas estavam cobertas de orvalho.
- Que rico quintal o senhor tem aqui!
- Sou eu que trato dele. A sopa que vai comer é feita com legumes e hortaliças dele. Vai ver como lhe vai saber!
Lavou-se rapidamente e sentou-se à mesa. Um cheiro delicioso lembrou-lhe que já não comia há muitas horas.
O velho acompanhou-o, repetindo várias vezes e insistindo que ele ficasse à vontade.
Estava cansado, transpirava imenso, recostou-se na cadeira com a sensação de que ia desmaiar.
- Isso já passa, é da fraqueza. Deixe-se estar tranquilo.
O velho pegou nas tigelas e lavou-as. Veio sentar-se junto dele com as pernas esticadas para o lume. Acendeu o cachimbo e ofereceu-lhe. Ele recusou educadamente.
- Então já se sente melhor?
- Já sim, muito obrigado.
- Disse que tinha atravessado ontem a serra...
- Sim, precisava de fazer esse caminho!
- Os caminhos são para se cumprirem, e neles há paragens obrigatórias...
- O senhor é sempre assim tão hospitaleiro?
O outro riu. Uma gargalhada rouca de completa surpresa.
- Nunca me deram esse nome! A maior parte das vezes chama-me bruxo. É o preço de quem não se obriga a ser como os outros....
- É alquimista?
- Não, ainda não... vou dominando e transformando a matéria, mas dificilmente serei um dia alquimista!
- Vive sozinho?
- Que remédio! Enviuvei há quatro anos e não há por estas redondezas mulher que me ature!
- Afastou-se do mundo com o desgosto da perda?
- Não. Longe disso! Sabe, há muito tempo que não falo com ninguém. Pelo menos com alguém que valha a pena! Hoje estou bem disposto e penso que a minha história o ajudará.
- Porque diz isso? Não me conhece...
- Posso vê-lo como realmente é. A minha casa é uma paragem obrigatória no seu caminho.
- Talvez! Não tenho nada a perder!
O velho retirou do lume o caldeiro e pôs-se a fazer o café, com gestos regulares foi colocando as canecas e o açucareiro em cima da mesa.
Despejou o resto da sopa numa malga velha e assobiou. Três enormes gatos malhados apareceram de algures e atiraram-se à comida. O dono fez um afago a cada um deles.
O cheiro do café invadiu a cozinha e ambos se prepararam para o beber.
Depois de um demorado olhar, o velho começou:

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