domingo, 20 de dezembro de 2009

O Evangelho de Iris


Leonor
Ainda que não se veja, a compaixão adormece as dores e suaviza os sofrimentos.




Leonor tem nos olhos o espelho do mar. É sua filha porque nasceu no barco que a viu crescer e que continua a ser o seu lar.
Dizem os homens da vila que Leonor tem pacto com a Lua, que aprendeu com ela o seu sorriso suave e que a luz do seu olhar aquece as almas tiritantes, que alumia a escuridão dos medos e domina as marés da revolta.
É mansa Leonor ! Tão mansa que o mar se encanta com ela !
Íris e Ofélia caminharam para a vila que se planta junto do mar. Recebem o seu cheiro como uma nova experiência, apetece-lhes mergulhar naquela imensidão bordada de ondas constantes. Têm os pés feridos da caminhada. Leonor vem até elas, chama-as para a beira-mar e lava-lhes as feridas com água salgada e beija-lhes os pés com meiguice.
Íris pergunta-lhe então:
- Queres tu espalhar a compaixão nos caminhos que percorrem o mundo e seguir-me para além de todos os carreiros?
- Quero. - Responde Leonor - Quero que o luar que habita em mim se espalhe na negrura dos caminhos.
- Queres tu com a tua compaixão ouvir todos aqueles que carregam fardos maiores do que eles ?
- Quero. Quero que o sal que se desprende de mim sare as feridas abertas dos que se queixam.
- Queres tu, juntamente connosco, levar a esperança e a caridade a quem desespera e sofre ?
- Quero. Quero que a liquidez do mar que me constitui envolva também os outros e que lhes naufrague o medo.
Então Íris junta nas suas as mãos de Leonor e Ofélia, pedem silêncio ao mar que é espelho do céu, as palavras. Fica parada no tempo da emoção e por fim murmura:
- Que a ajuda seja feita de compaixão e que a compaixão seja sempre de ajuda que ambas me sigam até à cidade onde a loucura dos tempos incendeia os vícios. Tu, Ofélia, sê a mão caridosa que segura e tu, Leonor, sê o sorriso que sustém o olhar de quem se sente perdido. Tornai-vos hoje filhas da divindade que nos indicará a jornada.
Ambas as discípulas se sentam agora no areal esperando com Íris, a Palavra.
Íris eleva a voz para as ondas e pede:
- Mar. Tu que és feito das águas do mundo; das fontes que correm para os ribeiros, dos ribeiros que enchem os rios, e que Te alimentam. Mar. Tu que és feito das lágrimas e do suor daqueles que se alimentam de Ti, diz-me o que tens a dizer !
Um búzio rola nas ondas e vem até junto delas, Leonor apanha-o e entrega-o a Íris que o coloca no ouvido e repete o seu recado, frase a frase com o vagar de quem medita:

- Felizes os que acreditam que um grão de areia os pode suster.
Eles sentir-se-ão seguros no seu caminhar.
- Felizes os que aceitam as tormentas sem revolta.
Eles também saberão sorrir à bonança.
- Felizes os que forem capazes de mergulhar na escuridão à procura de luz.
Eles encontrá-la-ão e serão por ela alumiados.
- Felizes os que sabem calar os seus segredos na caverna dos seus peitos.
Eles passarão a receber nessa caverna a voz do oceano que os tranquilizará.
- Felizes os que comparam o azul do céu ao azul do mar.
Eles estão no caminho certo.
- Felizes os que sabem que uma maré se segue a outra assim, sucessivamente, até ao fim dos tempos.
Eles serão eternos.
- Alegrai-vos pois porque vos escolhi como mensageiras da Palavra, do Socorro e da Compaixão.
Vós fareis parte de mim em pouco tempo.

As raparigas levantam-se e seguem pela marginal em silêncio. Ali os homens não tiveram medo. Ali a divindade não se vestiu de cor mas falou na língua do mar.
A cidade espera-as..

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