quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O Caminheiro


Era Dezembro


Era Dezembro.
O frio da neve derretida penetrava os ossos e os músculos endurecidos e magoavam-no..
A viagem ficara adiada. Agora dormia todas as noites com a mesma mulher. Aprendera a reconhecer cada sinal do seu corpo, o seu cheiro, a sua voz, o seu olhar...
Para se manter, voltara à sua actividade profissional, o jornalismo. Para isso bastava-lhe o uso dos correios, o telefone e jornais locais. Engordara um pouco e voltara a usar os óculos de aros escuros. Também colaborava na contabilidade da pensão, desse modo ela ficava mais disponível para si. O movimento sem ser intenso era no entanto regular, todos os dias havia clientes de passagem, na maioria camionistas e comerciantes que almoçavam ou jantavam. Alguns, raros, dormiam uma noite. Depois esses homens anónimos partiam pela estrada comprida que não deixava adivinhar o princípio e o fim.
Naquele dia tudo podia ser igual aos anteriores, mas à hora do almoço chegou com grande aparato um camião de longo curso. Um homem alto e forte, de pele avermelhada e quase careca, desceu da cabina e dirigiu-se à sala com passadas largas. A sua voz cantante e bem disposta perguntou:
- Boa tarde! Vocemecês que é que têm para um homem esfomeado como eu?
A mulher, serena como sempre, respondeu-lhe que havia o prato do dia, um prato de “sustância”!
Ele deu uma gargalhada, esfregou as mãos e sentou-se disposto a começar. Enquanto esperava mirou com ar aprovador a modéstia quase familiar daquele espaço. Percebeu de imediato que ele pertencia ao lugar e sem cerimónia sentenciou:
- Sim senhor, vomecês têm aqui uma bela casa! Limpinha e sossegada! Faz lembrar uma casa de família! É a primeira vez que cá entro e estou a gostar!
O homem sentiu-se na obrigação de agradecer o elogio, dobrou o jornal, tirou os óculos e sorriu.
A mulher apareceu entretanto com a travessa do cozido e o jarro de vinho tinto, perguntou se estava tudo a seu gosto. O camionista provou e acenou diversas vezes com a cabeça garantindo a sua aprovação. Ela voltou à cozinha deixando a responsabilidade de acompanhar o hóspede ao homem da casa.
Era um prazer observar a disposição para comer daquele homenzarrão! Passados alguns minutos o camionista voltou a falar:
- Vomecês não são daqui pois não? Pelo menos o ano passado não reparei nisto! Olhe que deve ser um bom negócio, por aqui passa muita gente...
Ele ia confirmando e esclarecendo o outro apenas com monossílabos, não era pessoa de grandes conversas mas ao mesmo tempo sentia curiosidade por aquele tipo.
Contra o seu costume dirigiu-se à mesa.
- Posso?
- Ó homem a casa é sua!
- O senhor parece ser muito bem disposto. – Disse enquanto se sentava.
- Graças a Deus, senhor, graças a Deus! Mas também não tenho do que me queixar!
- No entanto... o seu trabalho deve ser duro e solitário, não combina consigo...
- Estou habituado! Há mais de quinze anos que ando nesta vida! É verdade que é duro, mas há outros trabalhos que são duros e a gente quando faz uma coisa que gosta nem dá por isso! Eu sou forte, aguento bem! E depois, não é tão solitário como isso, há sempre estradas novas, gente diferente que se conhece todos os dias. O que custa mais é a saudade da família, mas compensa-se quando chego. Enchem-me de mimos!
- Tem uma família grande?
- Não. É pequena mas boa. Mulher e três filhos.
- E eles não se aborrecem com a sua ausência?
- Eles sabem que os tenho sempre no meu pensamento e no meu coração. Ah! A minha mulher é uma mulher e pêras! Já fizemos vinte e um anos de casados e nunca brigámos a sério.
O que um diz o outro acata, tanto faz que seja ela ou seja eu!
- E os filhos? Como se sentem?
- Bem. Olhe, não é para me gabar, mas são uns miúdos formidáveis. O mais velho é muito esperto, está na universidade. A do meio também está a estudar e é tal e qual a mãe! A mais novinha, veja vocemecê, tem só três anos! Veio sem a gente contar... mas graças a Deus que veio! É a nossa alegria! Quando chego a casa, corre logo para o meu colo e abraça-me de tal maneira que, oh homem! Não sou de ferro! As lágrimas chegam-me a assomar aos olhos!
- Pode-se então dizer que é um homem feliz!
- Claro! Diga lá se tenho alguma coisa porque reclamar?
Ali estava alguém que conseguia percorrer um caminho sem percalços! - Pensou ele. - É verdade que não procurava nada de transcendente...
Toda a sua felicidade residia nas pequenas e boas coisas da vida!
O camionista acabou a refeição, puxou a cadeira para trás, alargou um furo no cinto, estendeu as pernas e suspirou.
- Vomecê não é feliz?
Fora apanhado de surpresa. Não sabia como responder. Tinha receio de dizer que se acomodara, que não sabia exactamente se queria a felicidade. Mas o problema maior era explicar isso aquele homem. Ele não iria entender que ele também fora um dia um caminheiro. Mas um caminheiro diferente, um caminheiro que percorrera espaços que não vinham no mapa das estradas!
Salvou-o da complicada resposta a entrada de um outro cliente.
Era um homem velho e magro vestido de negro. O seu colarinho branco identificava-o bem.
Quando cumprimentou, o camionista levantou-se de um salto e deu-lhe um forte abraço.
- Veja vocemecê como as coisas são! Este aqui é o senhor padre Galvão, foi ele que me baptizou e casou! É da minha freguesia!
- Coincidências... – Disse timidamente o padre.
- Muito prazer. – Respondeu ele educadamente apertando-lhe a mão. Enquanto o velho padre se sentava na mesa do camionista. – Aceitou o seu pedido: apenas sopa e pão. Como convinha a um homem de espírito! Foi à cozinha dar o recado e hesitou em voltar a sentar-se no mesmo lugar. Mas a sincera insistência do camionista forçaram-no.
- Sente-se homem e responda lá a pergunta que lhe fiz há pouco.
- Vim interromper a conversa? – Perguntou o padre.
- Não é nada de especial senhor padre! É que aqui o nosso amigo fez-me uma daquelas perguntas simples cuja resposta é mais complicada.
- E que pergunta lhe fez este maganão?
- Se eu era feliz?
- E então? - Insistiu o padre já interessado.
- Então ... então não sei, sinceramente, não sei e, nem sequer sei se procuro a felicidade!
- É a primeira obrigação do Homem. Cada um deve procurar a felicidade! Já há coisas bastante tristes que acontecem no nosso caminho para que nós ainda compliquemos mais... - Disse o padre.
- Pois é, acho que sou um homem complicado... Não tenho a pureza e simplicidade aqui do nosso amigo. Toda a minha vida andei à procura de encontrar algo que respondesse às minhas dúvidas, numa espécie de jogo das escondidas. Agora acho que me acomodei a este lugar e gozo de uma paz tranquila... mas dormente...
- Dúvidas. Todos nós temos dúvidas! São elas que nos fazem caminhar! Que tipo de dúvidas tem? Se é que posso perguntar...
- As dúvidas que muitos têm, penso eu. Quem sou? Que faço aqui? Para onde irei? Sabe, e perdoe-me a franqueza, as respostas que as igrejas dão não me parecem satisfatórias. Recuso-me a acreditar que sou apenas um objecto de entretém nas mãos de um deus que um dia se lembrou de nos fabricar...
O padre acenou com a cabeça. Parecia ter entendido o que ele estava a querer dizer. O camionista sacudia os ombros e bocejava, não era conversa que lhe interessasse.
Após breve pausa, o padre continuou:
- Essas respostas que o senhor pretende encontrar só o tempo lhas trará. Quando tiver mais experiência. O senhor ainda é jovem, tem muito tempo para descobrir. Mas desde já lhe digo que não as vai encontrar nos livros nem nos lugares de culto. Há um sítio mágico que as revela: O centro da nossa alma!
Ouvir um padre falar daquela maneira surpreendeu-o. Depois, como um menino perante o mestre, murmurou:
- Ás vezes... ás vezes gostava de ser mais simples, de ver as coisas como este amigo que encontrou a felicidade na família e no trabalho...
- Cada um alimenta-se de forma diferente. Porque cada um é diferente. É essa a grandeza da Obra Divina. A individualidade. Veja bem, os animais reflectem comportamentos idênticos dentro de um mesmo grupo. Reagem segundo padrões pré estabelecidos. À medida que o animal sobe a escala da evolução nota-se uma certa individualidade. No Homem então, essa característica é acentuadíssima. Não concorda?
- Sim, concordo. Mas senhor padre Galvão porque não estamos todos ao mesmo nível? Porquê que alguns se satisfazem com as necessidades mais básicas e outros ficam insatisfeitos a vida inteira?
- Porque escolheram meios diferentes de caminhar. Olhe, eu viajo
naquela velha “carripana” e aqui este amigo no camião.
Mesmo percorrendo a mesma estrada temos uma visão diferente dela. Para além disso ele tem uma família e a sua lembrança acompanha-o, eu não tenho família, mas tenho uma comunidade que me faz pensar nela. As nossas disposições e motivações são diversas, logo não podemos de modo nenhum ter as mesmas dúvidas e as mesmas certezas.
O camionista estava impaciente. Queria concluir a estrada que o levava a casa.
- Vocemecês não me levem a mal mas tenho que voltar ao camião. Senhor padre Galvão não se esqueça de aparecer, eu e a minha senhora temos muito gosto em o receber.
- Vai lá rapaz, vai com Deus. Dá cumprimentos lá em casa. Qualquer dia apareço. Prometo.
- Serão entregues senhor padre. E vocemecê amigo mais uma vez parabéns pelo negócio. Quando cá voltar hei-de parar, nem que seja para o cumprimentar.
- Muito obrigado, apareça sempre. Tenho muito prazer em recebê-lo aqui de novo.
Depois desta interrupção, o camionista partiu.
Ele e o padre puderam então conversar mais um bocado.
- Está a ver senhor padre, há poucos assim tão puros como ele!
- É verdade, mas ele estacionou no seu percurso e ainda não deu por isso. Não tem dúvidas nem ambições. Fechou-se no seu espaço e não procura. Deste modo pouco mais pode crescer. É que crescer magoa....
- Se magoa! - Pensou ele – Cada vez que avanço parece maior o meu sofrimento.
- E... resolveu parar?
- Só para respirar fundo. Recuperar energias...
- Cuidado homem, não deixe o seu espírito adormecer...
- É disso que tenho medo...
- Nesse caso porque não corta as amarras e se não faz ao caminho?
A mulher chegou perto deles para levantar a mesa, traíram-se nos seus olhares, o padre compreendeu. Quando ela se afastou de novo perguntou:
- É por ela?
- Talvez. Nela encontrei muitas respostas e o colo macio aonde me encosto!
- ... Mas não é a companheira da mesma jornada!
- Não. Apenas a fonte que me matou a sede, o pão que me alimentou. A sombra que me cobriu ao entardecer!
- Foi bom então?
- Sim, mas não é tudo!
- O tudo não existe! Só tem que optar.
- É na escolha que rasgo a alma!
- Deixe sangrar... em breve cicatrizará. Se o não fizer terá sempre uma ferida aberta que corre o risco de infectar e alastrar, tornando-se perpétua.
- Ele concordou.
O padre apertou-lhe a mão para sair. Ao chegar à porta voltou-se para trás, hesitou ainda um bocado mas acabou por dizer:
- Ao contrário do nosso amigo, espero não o encontrar da próxima vez que aqui passar.
Ele sorriu e acenou levemente com a mão.

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