quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

O caminheiro


Era manhã


Era manhã.
Nem ele nem ela dormiram a noite.
Fizeram amor sabendo que era a última vez.
Ela levantou-se e desculpou-se que tinha que ir à cidade.
Ele ainda perguntou se queria que a acompanhasse, mas ela calou-o com um beijo.
- Vai. Vai porque ficas. - Murmurou ela ao ouvido. - Para que a árvore possa dar bons frutos é necessário podá-la.
E saiu!
Saiu, deixando-o naquele quarto quente que o acolhera durante o Inverno.
Enrolou a esteira e a manta, meteu a roupa na mochila e desceu.
Fez alguns telefonemas e meteu o pouco dinheiro que trazia no bolso dentro da lata dos trocos.
Abriu a porta sem olhar para trás.
Em vez de tomar a estrada que o levaria até à cidade, preferiu seguir pelo carreiro que o levava à serra. O nevoeiro estava bastante cerrado, a humidade em breve trespassou-lhe a roupa e penetrou-lhe na pele. Era como se quisesse fazer parte dele mesmo! Escolheu as veredas traçadas pelos pés dos pastores da região. Elas o levariam a algum lugar. Já não fazia caminhadas há muito tempo e as folhas e os fetos molhados faziam-no escorregar com frequência. Agarrava-se aos ramos e arbustos naquela subida cada vez mais íngreme da montanha. A lama pesava-lhe nas botas, pegajosa... embora não conseguisse entrever animais, ele pressentia-os nas suas tocas, nos seus ninhos, nos seus charcos, e agradecia-lhes mentalmente a companhia.
Aos poucos a vegetação foi rareando dando lugar a grandes blocos de rocha desfeita, agrestes e traiçoeiros. Uma espécie de embriaguez tomou-o, ia marcando metas e investia todo o seu esforço em as alcançar. Quando o conseguia, parava, respirava profundamente e lançava o olhar para o pretérito despedindo-se dele com um grito selvagem.
O Sol acabou por vencer a resistência das nuvens, perfurou-as e surgiu amarelo e morno.
O vento no seu reino, fazia-se ouvir e sentir empurrando-o para o apressar.
Ele caminhava, sem sede, sem fome, sem cansaço...
Por volta do meio-dia atingiu o cume da primeira montanha. Então, olhando em redor, deu conta que dera o seu primeiro passo.
Ali estava ele no alto da serra, entre o céu que quase o tocava e o abismo que deixara. Entre a imobilidade do absoluto e a agitação de um vento teimoso e dançarino.
Ele estava ali. Ele!
O mundo revelava-se-lhe. Um mundo maternal, fecundantemente generoso! E chamava-se Terra!
Um repuxo? Não. Uma onda de sentimentos soltou-se do seu coração inundando-o, multiplicando-se em outras ondas que o tomavam por inteiro.
E ele... Ele fez a sua primeira oração:

Abençoada. Abençoada sejas tu, Terra Mãe
Porque te estendes assim em caridade,
Tudo de ti, por um imenso amor, vem.
Abençoada sejas por toda a eternidade!

Abençoado. Abençoado sejas tu, ó Sol
Porque aqueces a minha longa jornada,
Porque estendes sobre mim, o lençol
Que envolve, a minha alma cansada.

O dia ainda não tinha acabado. A sua visão estendeu-se para lá da imensidão dos montes e vales, de planícies... não havia caminhos traçados, seria ele a desbravá-los com a mesma força e tenacidade que o levara até ali. O seu passado ficava para Leste. Mesmo que a Norte uma cidade rica e poderosa o chamasse. Mesmo que a Sul uma praia dourada o convidasse. O seu caminho era em frente porque as montanhas ocultavam o fim.
Depois de alimentar o corpo e a alma, descansou, embalado pelo segredar dos ventos que o acarinhavam.
A tarde veio rápida e desceu sobre ele sem sombras.
Estava na hora de descer.

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