quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O Evangelho de Íris


O CARREIRO

Por muito estreito que seja um carreiro é sempre um caminho.



Corre e tropeça e cai e sangra e chora.
Pelo caminho acaba Íris os seus dias de Geração.
Não sabe para onde vai, o que vai fazer. Só sabe que foi banida do lugar onde nasceu. Do lugar onde as perguntas não têm respostas, do lugar em que a serra e o mar entalam os espíritos dos homens.
O carreiro é longo mas pode ser o princípio ou o fim de uma nova vida. Íris na sua inocência sabe disso e sabe que não tem outra alternativa. Sente já saudades do seu monte, da sua figueira, do Sol que saúda todos os dias e das fontes que lhe não negam as respostas. Mas sabe que não pode ficar agarrada ao seu passado.
Haviam-lhe dito que o carreiro era do tamanho de uma manhã. Mas a manhã das suas pernas é mais comprida...
Os pés ferem-se nos tojos e pedras do caminho. Já os tem em sangue mas isso não é nada comparado com as dores horríveis que sente na barriga das pernas. Senta-se um pouco na berma junto das giestas amarelas e roxas. Uma sonolência invade-a deixa vir a si o som das palavras tentadoras.
"Íris em Geração chamam-te as flores. Elas perguntam por ti ao Sol e as flores temem de novo que o sofrimento lhes toque, perdem o perfume a cada momento e choram as pétalas ao entardecer. Volta para trás Íris, volta para trás. Terás quem te sare as feridas se obedeceres à Avó Grande, se souberes calar o teu pensamento. As mães que te criaram recolher-te-ão no seu seio. As tuas companheiras acompanhar-te-ão, se souberes calar o teu pensamento.
- "Não! - grita Íris - Não. O meu pensamento tem a voz da divindade. Mesmo que morram as flores de Geração há outras flores no fim do carreiro. O lugar de onde vim não precisa dos aromas nem das cores, basta-lhe o silêncio. Eu vim dar voz, eu vim dar voz...
Íris volta a andar revigorada pela revolta. A fome enfraquece-a mas não a derruba. Mais além há uma figueira brava, os espinhos que protegem os frutos gritam-lhe:
- "Vem Íris, fere as tuas mãos, vale a pena o sofrimento delas para o alimento do teu corpo. Em Geração as figueiras são mansas e doces os seus frutos, se levares de mim as sementes e as plantares no monte do Sol, também eu me transformarei e me tornarei na árvore dos frutos de mel. Tu podes. Tu és a divindade feita voz que fala por todos os seres. Volta a Geração. A tua voz falará pelo silêncio dos homens."
- Não - grita Íris - Não. As tuas sementes bravias jamais se tornarão doces. A minha voz fica calada na solidão das palavras dos outros. Eu não pertenço a um lugar. Pertenço a todos os carreiros do mundo. Por isso vim trazer a palavra...Vim trazer a Palavra...
Agora que a divindade susteve o cansaço e a fome, Íris sofre horrivelmente a sede. Gretam-se-lhe os lábios e a língua parece ter dobrado o seu tamanho. O carreiro parece mais longo e curvo. O seu corpo cai desamparado junto da lama quase seca de um buraco do chão. Íris saboreia o pedaço de lama tentando reter dele o resto de humidade. As pedras e areias comentam:
-" É esta a forma material do espírito da Palavra. A divindade é sua aliada. Se ela quiser pode transformar Geração, basta-lhe que volte para trás e diga bem alto o que o seu pensamento lhe fala. Vê como sofre a sede e lá, há fontes amigas que a confortam com alegria."
- Não!-Grita Íris - Não. Não voltarei atrás porque o meu destino é percorrer os carreiros do mundo. Não voltarei atrás porque nem os homens, nem os animais, nem as plantas, nem as rochas me merecem. A divindade que trago em mim é universal e fala em todos os recantos da existência. E vós, vós todos não me tenteis porque eu faço o que me é ordenado. Eu só obedeço Àquele que tem vida e não tem nome.
O grito de Íris morre-lhe nos lábios e o seu corpo caído perde o resto das forças.
Os espíritos das sete cores acorrem, alimentam-na, saram-na, e dão-lhe de beber o orvalho mais puro. Ressuscitada, Íris vê o Sol desaparecer lá no fundo e a Lua a sorrir-lhe junto dela.
Perto ouve-se o ladrar de um cão, o balido de ovelhas e a flauta de um pastor.
Chegou ao fim do carreiro.
Chegou ao princípio da aldeia.

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