sábado, 20 de março de 2010

O Evangelho de Íris


Lectícia




A alegria dá à vida o brilho com que se destacam os pormenores da neutralidade dos factos.





Íris não dorme, fica ali sentada, vigiando, junto das suas companheiras. Acompanha o percurso da noite e recebe de seus pais intemporais a mensagem do dia próximo.
Quando o horizonte muda de tom não pode evitar um sorriso de bem estar. Acorda as companheiras deixando que a energia transmitida pela paisagem lhes toque a alma. Correm para as águas cantantes que correm no ribeiro, mergulham nelas e lavam nelas as tristezas do passado.
Com a voracidade juvenil comem todos os frutos que podem oferecidos pelos arbustos e as árvores. É preciso dar alimento ao corpo que as transporta.
A aurora do dia chega plena de luz, desperta os bandos de aves que repousam nos ramos e enche as margens do ribeiro com criaturas diversas, dispostas a viver mais um dia. O sol ainda se orna de rosa, mas aquece já o orvalho que se eleva no ar formando uma neblina baixa e mágica que encanta. Cheira a pinheiros, fetos e violetas. Uma mistura de aromas que inebria os sentidos. O vale coberto de musgo abraça e recebe a graça divina de uma primavera benevolente.
Apetece gritar bem alto:
Bom dia! Bom dia!

Da encosta do monte desce a voz de uma pastora que canta. Cantiga simples em que as palavras jogam com os sons da rima quebrada, mas, a música, vem de dentro, sobe e desce e volteja no ar como trinados. O eco repete-a como um coro no espaço. A pastora pensa que está só em intimidade com a natureza, por isso se despe de todo o pudor e através da voz se mostra nua.
O grupo faz-se encontrado e ela recebe-o surpreendida. O breve momento de hesitação desvanece-se e abre o seu sorriso franco. Oferece então o pão da partilha e o leite das suas ovelhas.
Emocionada com a simplicidade da jovem, Íris pergunta-lhe o nome. O nome é fundamental porque imprime no espírito a personalidade.
- Lectícia.
- Lectícia!- Repetem em conjunto as companheiras.
Íris convida-as a todas a sentarem-se, dá a mão a Lectícia e, virando-se para o grupo, explica:
- Lectícia é a alegria. A alegria que nos falta tantas vezes. Toda a caridade, toda a verdade, toda a coragem e acção devem ser feitas com alegria. Agradece-se a oportunidade de viver, demonstrando a alegria, porque ela filtra a luz que entra no coração dos homens e torna maior a dimensão em que vivemos.
Tu, que és pastora, que estás longe das estradas e das cidades, que vês o mundo do alto dos montes e o céu inteiro do fundo dos vales, tu que aprendes com os pássaros a voar com a tua voz para além de todas as dores e de todas as dúvidas, tu que calcas as ervas que atapetam o solo, és outro elo da cadeia que arrasto e com a qual desejo prender o mundo de meu pai ao de minha mãe, vem. Vem connosco espalhar generosamente os teus risos e deixa, Lectícia, que eu ria também contigo, que eu aprenda contigo a tua música e dance, dance até à exaustão, o bailado, que o Divino coreografou!
Talvez Lectícia não perceba todo o sentido das palavras que ouve, Talvez se acanhe perante aquela que veste todas as cores. Mas sente no seu corpo o desejo de ir. Olha, uma a uma, cada uma das presentes e vê nelas a mesma ansiedade que vê em Íris.
Mas e o rebanho? Que contas dará dele?
Não pode haver alegria sem liberdade diz-lhe Íris.
- Homens! Eis que a Palavra se mistura com o som da música no meu peito.
Homens! Ouvi comigo a canção e deixai que o vosso corpo se contagie de ritmos e baile...baile...
Homens, aquela que foi escolhida também me acolhe, como acolherá a vós se quiserdes!
Glória. Glória à Vida. Deixai que o Sol solte uma risada e vos aqueça até ao fim dos tempos. A alegria chegou!

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