sábado, 20 de março de 2010

O Caminheiro


O Próximo




A corrente de ar deslizou fria por cima dos seus cabelos arrepiando-os. Depois muito lentamente afagou todo o seu rosto passando em seguida para o peito. Aí, foi aumentando a temperatura tornando-se tão quente que lhe abrasou todo o corpo. Gemeu. Depois, desceu arrefecida, pelo seu ventre, pelas suas pernas, terminando na ponta dos pés e, fluiu como se de um rio de suor se tratasse. Suspirou. Daí a pouco um novo fluxo fez o percurso inverso enchendo-o de força e de paz. Uma paz a que não estava habituado.
O conjunto das vozes em confusão foi deixando distinguir alguns termos técnicos sobre o seu estado de saúde. Até que uma mais forte disse: - Abre!
Foi então que as vozes passaram a ter rostos.
Eram homens e mulheres de idade e aspecto diferentes que tinham apenas em comum o estar vestidos com uma espécie de túnica verde-água que lhes escondia o corpo de modo que os contornos se perdiam em pregas soltas.
Reparando mais atentamente, pode verificar que algumas das formas não eram humanas, tratavam-se de criaturas com feições bizarras mas que apesar disso inspiravam confiança e bondade.
Uma delas, com cerca de um palmo de altura e olhos encovados de uma cor violeta deslumbrante, levitou até junto da sua fronte. À sua volta havia um halo luminoso amarelo dourado que lhe acariciou o coração.
- Pronto. Daqui a pouco poderás descansar, agora no entanto é necessário que aguentes a dor para teu próprio bem. Depois disto compreenderás muitas coisas que te estavam vedadas.
Foi o que percebeu! Pois a voz que ouvia não tinha som, apenas entrava nele como um pensamento.
De repente, aquilo que lhe pareceu ser um dedo comprido e delgado, tocou-lhe um ponto entre as sobrancelhas. Uma dor aguda e ardente violou-lhe todo o crânio. Vulcões de fogo, explosões de estrelas, ondas gigantescas de lava, encheram-lhe a visão. Durou uma eternidade!
Quando acordou verificou que tinham passado apenas quinze minutos desde a última vez que olhara para as horas. Tinha a certeza absoluta disso porque o seu velho relógio de parede continuava fiel na marcação do tempo. Já não sentia dores nem calor excessivo, embora estivesse completamente transpirado. Sentia um torpor agradável que o embalava.
Com incredulidade reparou que tudo à sua volta estava rodeado de auras luminosas que se exprimiam em cores e intensidades diferentes. Algumas dessas auras, como as das plantas do vaso sobre o parapeito da janela, pareciam intermitentes, outras, eram pálidas e pouco definidas.
Quando a mãe voltou a entrar, vinha rodeada de um largo espectro. Azul. Verde. Matizando-se com um dourado fascinante. Emocionou-se. Um nó na garganta impediu-o de falar. E ao sentir as suas mãos magras a afagá-lo, teve vontade de chorar.
A mãe. Quem era aquela mulher?
Tivera-o em fase adiantada da vida, no entanto a diferença de idades nunca obstara a um óptimo relacionamento e até a uma certa cumplicidade. Ela compreendia porque razão aquele filho tinha tanta necessidade de se afastar e de viver uma vida solitária porque o aceitava e o amava tal como ele era.
Fora sempre uma grande mulher, a mãe! Tivera uma infância pobre e com poucas oportunidades, casara muito cedo com um homem doente e agressivo. Criara três filhos dele com imensas dificuldades e muita instabilidade afectiva. Quando o marido morreu de forma atroz, ela ficou sozinha com todas as responsabilidades e sem ajuda de ninguém, mas o mais grave, sem um trabalho que lhe garantisse o sustento dela e dos filhos. Desembaraçou-se. Fez limpezas, costurou para fora, dormia e comia muito pouco para que nada faltasse. Encontrou então um homem tranquilo e bondoso que por amor dela aceitou o encargo de uma família já formada. Casaram. Sem exigências, apenas com a ternura de bagagem. Os filhos cresceram e tomaram conta dos seus próprios destinos. Nunca souberam agradecer à mãe e ao padrasto a vida que puderam usufruir.
O nascimento dele fora aceite de má vontade, como se o considerassem um intruso. Um bastardo. O que fazia sofrer aquela mãe divida entre o amor dos primeiros e a paixão do último.
Tanto o pai como a mãe pareciam ter sido talhados à medida um do outro. Tinham uma delicadeza de trato que mesmo nas horas de maiores dificuldades se fazia sentir. Nunca os ouvira queixar um do outro, nunca se apercebera dos defeitos de um através da crítica do outro. Eles amavam-no e mimavam-no com alegria. Deram-lhe todas as possibilidades de progredir e desenvolver as capacidades. Sem grandes recursos contudo, tornaram-lhe a infância feliz e tranquila. Com o seu exemplo, ensinaram-lhe a ser tolerante, generoso e respeitador para com toda a gente. Fora um privilegiado!
Agora voltar à casa paterna era reaprender os afectos.
- Então, meu filho, como te sentes? – perguntou a mãe suavemente.
- Bem, obrigado, minha mãe. Perdoe o trabalho que lhe estou a dar!
- Ora filho, que trabalho? O que me fez mal foi o susto que nos pregaste. Já não somos novos e situações destas perturbam-nos muito.
Ficou envergonhado. A última coisa que desejava era fazer mal àqueles dois seres maravilhosos.
- Eu sei que já és adulto e tens a tua própria vida, mas filho, ficamos tanto tempo sem ter notícias tuas!
- Não é por indiferença, mãe, sabe que não é por mal! É que o meu trabalho não tem horário fixo... nem lugar...
- E os outros teus colegas que têm família? Será que a abandonam assim?
- O que eu faço é diferente. Sou repórter.
- Quando telefonei para o jornal, ninguém sabia dar resposta. Disseram também que havias deixado de enviar trabalho há algum tempo. O que se passa? Confia em mim!
- O segredo é alma do negócio, não é? – Disse para desviar a atenção- E sabe, tenho andado todo este tempo à procura do sentido da vida. Quero escrever sobre ele.
- O sentido da vida? Porquê? A vida não tem que ter um sentido! Talvez seja bom que o não o conheçamos. O melhor é viver. O ontem de uma maneira, o hoje de outra , e o amanhã ... Bom o amanhã logo se verá! Para que queres tu complicar as coisas? E ainda por cima escrever sobre isso? A tua vida é tão importante como a dos outros! Só tu é que a vês diferente...
Era verdade. A mãe sempre fora uma mulher muito prática. Nunca tivera tempo para problemas existenciais. Sorriu. Que mais poderia fazer? Prometeu à mãe que voltaria a trabalhar e a pôr em ordem as suas ideias. Talvez fosse interessante falar da vida dos outros, daquilo que aprendera a conhecer neles. Sim, falaria dos homens e das mulheres que encontrara no caminho.
A mãe respirou fundo aliviada e convencida que ele a havia escutado.
Assim que ela saiu, retirou o livro do peito e passou a mão pela sua capa macia e lustrosa. Que lhe diriam agora aquelas páginas de sabedoria?

“ Nas angústias do Ser há sempre um cais.
Um cais onde o Homem pode aportar
E, olhar o horizonte, e exigir dele mais,
Estendendo a mão de modo a poder agarrar.
Em cada viagem há outros companheiros
Que de tão próximos de nós são esquecidos,
São como nós, também, caminheiros,
E dão-nos a comparação do que sentimos.”

Fechou os olhos e compreendeu. O seu orgulho de homem convencido foi rasgado pelas lágrimas da compreensão.
A mãe, o pai, eram os eus próximos que havia esquecido. Nunca lhes soubera agradecer realmente a oferta da sua vida. Pensara que ela era só sua!

A vida! Agora entendia-a como o entrelaçar de todas as vidas.



Passado o tempo da convalescência era preciso voltar à vida activa. Tinha deixado de ganhar dinheiro durante a sua aventura e precisava de voltar a tê-lo para subsistir, tornava-se urgente voltar à redacção, rever os colegas e sobretudo concretizar as ideias que germinavam dentro de si.
Preparou-se para sair de casa naquela manhã com a sensação de ter fechado um parêntesis na sua vida. A mãe abeirou-se com a sabedoria dos anos e o hábito velho de o aconselhar: Estava nevoeiro, não convinha uma recaída, que tivesse cuidado, que se agasalhasse... ele abraçou-a com a ternura feita de reconhecimento. Era bom!
A rua agora parecia-lhe um lugar mágico, envoltos como estavam, os contornos do que via.
Apanhou o autocarro e saiu em frente da porta castanha do edifício decadente que o esperava. O cheiro familiar do papel e da tinta, do fumo e do suor, escorregou-lhe pela garganta, obrigando-o a tossir.
À sua entrada, os colegas de trabalho regozijaram-se com o seu regresso, como se ele fora um filho pródigo! Palmadas nas costas, piadinhas salgadas, e apertos de mão viris e sinceros. Sentiu-se amado, sentiu-se protegido, no seu lugar.
O chefe da secção ainda não tinha chegado por isso a confusão soava alto. Mas poucos minutos depois, o “Riscos” apareceu e a sua voz rouca surpreendeu-os como a meninos apanhados em falta. Todos voltaram as suas mesas de trabalho para voltar a martelar textos. Só ele ficou em pé à espera de ordens e... talvez um cumprimento!
“Riscos”, sem o olhar, disse:
- Duas colunas sobre as condições hospitalares. Estiveste internado, não foi? Um gajo como tu deve ter percebido muitas coisas. Ao meio-dia quero tudo pronto.
E foi sentar-se na sua velha secretária. Preparou a máquina e ficou à espera. Que havia para dizer? Dois terços do tempo estivera a dormir, o outro terço entre a vida e a morte! Pediu com jeitinho ao seu cérebro que se recordasse e o ajudasse. Uma enxurrada de palavras soltou-se e pespegou-se no papel. Quando terminou de escrever eram onze e meia. Levantou-se e foi mostrar o trabalho ao chefe.
O velho leu em silêncio e depois tirou de trás da orelha o famoso lápis vermelho e desatou a riscar. – O “Riscos”- remontava o texto e acrescentava, encavalitando, algumas palavras.
- Continuas o mesmo literário! Mais objectividade, menino! Bem, passa isto a limpo e envia para baixo.
Quando ia a sair ouviu:
- Depois volta aqui que quero propor-te uma coisa. É bom ter-te de novo!
Ele sorriu e levou a mão à cabeça em jeito de continência.

Escrever contos para o jornal? Era uma ideia aliciante. Sempre sonhara ser escritor de verdade e aquela era uma óptima oportunidade para começar.
Logo que chegou a casa revirou a secretária para encontrar os seus cadernos. Leu-os de um fôlego, a mãe até lhe veio trazer o jantar num tabuleiro, porque ele não conseguia interromper a leitura.
Os olhos ardiam-lhe e a noite estava já cerrada quando concluiu com uma certa decepção que todos aqueles contos religiosamente guardados eram imaturos, quase infantis. Ficou desconsolado e deitou-se sobre a cama. Escrever sobre o quê?
De repente a sua atenção foi desviada para o baú onde guardava os despojos da sua vida: brinquedos, cartas, fotografias, etc. tudo era tão vulgarmente raro! Tudo estava tão impregnado de história! Da sua história, da história dos outros!..
E se escrevesse sobre esses objectos?
Naquele momento tudo se tornou mágico, as palavras que lhe vieram à memória encheram de vida as vidas antigas desenhando-se nas páginas brancas do caderno recém aberto.

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