sexta-feira, 5 de março de 2010

O Evangelho de Íris


A cor




Íris veste no primeiro dia um manto vermelho, ergue a voz e começa:
- Falo-vos hoje do vermelho. Do fogo vermelho que purifica e transmuta o minério mais pobre do mais nobre metal. Este fogo de que vos falo é o fogo redentor, aquele que separa a ganga dos vossos preconceitos da vossa pureza mais profunda. O fogo alimentado pela sinceridade, essa frágil chama que ora queima ora se apaga. Deixai que a destilação se faça dentro das vossas almas. Não permitais que ela arrefeça, cristalizando em vós a hipocrisia. Sede vermelhos. Vermelhos como o fogo e dai às noites o primeiro raio de sol de cada dia.
Sede fortes. Sede vermelhos. Sede puros e sinceros. deixai que o fogo de artifício faça uma festa dentro dos vossos corações. Rejubilai com a cor.
Sede vermelhos!

Íris veste no segundo dia um manto laranja, ergue a voz e começa:
- Fresca e doce. Luminosa e quente. Eis a cor que envolve em gargalhadas sonoras a promessa do dia seguinte.
Que cor é esta que ri, que invectiva a força na coragem de prosseguir? Que cor é esta que aquece os peitos e doira os corações dos homens afastando-lhes o medo?
Laranja. A cor do centauro incansável lutando contra a ignorância e a superstição.
É laranja o rasto colorido das vitórias. É laranja!
É essa a cor que deveis agarrar quando as forças vos faltarem. É dela que deveis vestir para vencerdes os obstáculos quando o cinzento vos ameaçar sujar a alma.
Ai mordei de prazer essa cor! Ai sugai esse suco que vos dessedenta e vos alimenta!
E amanhã, acordareis revigorados, alegres, preparados!
Não esqueçais nunca o laranja, pintai-o em vossos horizontes. E vencereis. Vencereis.

Íris tem no terceiro dia sobre os ombros o manto amarelo.
É com ele que nesse dia a sua voz se ergue para começar o discurso:
- A generosidade da cor amarela estende-se para além de tudo quanto é concebível. Com ela acredita-se que se é eterno e essa crença gera a fé em nós mesmos. O amarelo é intenso. é fluído. E inflama-nos sem nos ferir.
Olhai, olhai só por momentos, o Sol. Aquele Sol que ao meio-dia se torna pleno. Vede como ele nos abraça, nos acalenta, nos amima. Doce e generoso Sol que sustenta a vida!
Os campos de trigo, ondulando suaves no nosso imaginário, alimentam-nos o corpo. O mel escorrente dos favos encanta-nos os sentidos, embriaga-nos com o seu cheiro meigo. O âmbar que protege dos tempos, os fósseis dos nossos avós mais remotos. A gema do ovo que guarda a herança genética das espécies numa ternura de mãe. O ouro incorruptível, que torna as memórias do passado presentes.
São amarelos... Estão amarelos...

A divindade assenta a sua força no espectro do vermelho, do laranja e do amarelo. Essa força propulsora da vida, combustível dos actos da humanidade.
O ouro alquimíco cambia estas cores no cadinho do projecto. A divindade é uma estrela dourada que deixa os seus raios tocar-nos. Cá dentro... Cá dentro no microcosmos de nossas vidas.
Brilhai. Brilhai, vós sois super-novas de vós mesmos!

O ciclo da força terminou. Mas a cor entende também a sabedoria, por isso no quarto dia Íris veste o manto verde e, prepara a Palavra:
- Tenho-vos falado da força, da energia que cada um pode acender dentro de si e inflamar a humanidade inteira. No entanto toda essa chama se pode apagar perante as barreiras da vida e, num momento, deixar que o cinzento volte a reinar.
Por isso hoje tenho que vos dar a conhecer o verde. O verde da maturidade que nos ensina a paciência e a prudência.
Lembrai-vos que são verdes as algas do mar, as copas das árvores, as ervas do campo! Lembrai-vos que a natureza é verde...
O verde é lento no seu desabrochar e antes que tome cor vive uma eternidade no seio da terra húmida e escura. Ele é a promessa de vida onde há o vazio.
A semente que realiza em si o milagre deixa que se estendam as suas raízes, apalpando meticulosamente cada espaço que o seu equilíbrio requer. O tempo não conta porque a prudência lhe ensina que sem segurança jamais crescerá.
Depois, sabendo bem o que quer, ergue-se, pacientemente, perfurando a camada que a separa do exterior, expõe-se então, em toda a sua pujança, aliada ao tempo, ornando-se de mais verde numa tarefa nunca acabada.
É o verde que vos assegura a realização dos vossos desejos. Sem ele perder-vos -eis no caminho do sonho.
Podeis enfeitar-vos de todas as cores, mas sob os vossos pés terá de haver verde para avançardes.
Não esqueçais o verde que vos suportará a vida.
Adubai e semeai na terra as sementes que se tornarão verdes um dia.

Aqueles que rodeiam Íris, diluem-se na cidade.
A Palavra leva os homens, a partir de agora, a verem-se com olhos interiores e a cegueira a que estão habituados é difícil de recuperar.
O quinto dia já se cansa na voz de Íris, que se encontra coberta pelo manto azul, a sua voz sai-lhe mais lenta, mas expande-se até ouvidos recuados:
O que está em baixo é como o que está em cima. A imensidão do céu reflecte-se na imensidão líquida da terra. Azul cetim, que acaricia as almas numa envolvente duplicidade equilibrando a vida! Tudo o que existe flutua em azul. Esta é a cor maternal que harmoniosa e justa, ama sem contrapartidas e sussurra o divino impelindo à ascensão.
O ameno azul cobre as cidades e lugares oferecendo-se a todos em alegria e paz.
Estar azul é um estado de espírito capaz de abraçar de uma só vez toda a humanidade e ao mesmo tempo clarificar os limites da nossa vontade. É o finito espaço da nossa existência...
É preciso que esvoaceis nesse campo de luz, que percorreis toda a sua extensão para poderdes conhecer a dimensão da verdade.
Subi, para além de vós e tornai-vos azuis.

Está rouca a voz de íris.

Quem a escuta, debruça-se sobre si e alerta o sentido da audição. Alguns, veladamente, dormitam sem perturbar.
O manto está a seus pés. É anil, cor da noite, da noite que aconchega aqueles que não ousam mostrar-se de dia.
O anil- diz Íris- é a cor da humildade e do desapego, aquela que torna vultos de cor igual, os diferentes passantes. O anil partilha a sua tonalidade com todos os espíritos que se soltam e mostram a sua nudez mais pura. Sem pejo, sem arrogância, tornando-os reais. As máscaras do dia estão penduradas nas portas da rua, e os rostos, aliviados, resplandecem de emoção.
A mesa comum é larga e os convivas aconchegam-se na procura do calor.
Comungam do pão comum e do vinho de uma só taça. Átrio da Graça, lugar dos humildes que alcançaram a esperança. Vestem o anil da igualdade vendo mais perto o que está longe.
É a noite da consciência, da tranquilidade, preâmbulo da exaltação final.
Tão fácil e tão difícil tornar anil o branco das almas!

O sétimo dia chegou.
Junto de Íris, as suas companheiras estendem-se, rodeando-a. Contemplam-na e tentam perceber nos seus lábios a Palavra que fecha o ciclo das cores.
O último dia, veste-a de violeta, a cor feita de bondade e de tolerância.
Hoje é último dia do reinado de Íris na cidade que a festejou.

A Força empolgou os homens mas a Sabedoria estremeceu-os e acobardou-os.
Muitos foram os chamados, poucos os escolhidos que acolheram a Palavra.
O violeta reveste-lhes as auras e coloca-lhes no rosto um sorriso beato. O êxtase coloca-os acima do solo de pedras e torna-os mais próximos do divino.
A voz de Íris já não sai da sua boca, sai-lhe dos seus olhos, do seu rosto, das suas mãos, de todo o seu corpo em expressão.
Junto delas duas novas personagens esperam entrar no círculo. São Constância e Ema, as raparigas da cidade.
A aurora vem aí. A rotina vem aí.
Mas primeiro é preciso expurgar o sonho, por isso os rumores da multidão já ameaçam o lugar.
Íris que tem sobre o estrado os sete mantos do seu reinado reconhece a hora da partida. Levanta-se com as suas companheiras e prepara-se para a jornada.
O violeta não foi ouvido.
O violeta só veste quem tem já em si as cores da força e da sabedoria e os homens esqueceram-se de algumas...
É preciso sair da cidade.

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