sábado, 4 de abril de 2009

O suspiro de uma cadela


7. O largo da feira é o meu mar de descobertas. Um mundo de cores, ruídos e aromas que entontecem e estimulam os meus sentidos e me agitam perante a indiferença.

O dia estava esplêndido, por isso resolvi ir por novos caminhos e descobrir as coisas perdidas.
No meu passo miúdo, revisitei a feira que fica pendurada na colina que serve de colo à cidade.
O mundão de gente, animais e tralha, atravanca mas não atrapalha os avanços, ate porque não fui para andar em frente mas, para rondear as tendas, gincanar os espaços, enfim, cirandar, cirandar…
Nariz levantado, absorvendo o ar, caminhava como num exercício de memória de olfactos. Alem do mais há sempre umas guloseimazinhas caídas no chão. É sempre bom andar assim sem cuidados, sem pressas e sem medos.
Ali estava eu cheirando uns, cheirando outros, muitos que não via há um ror de tempo, quando deparei com uma das minhas irmãs. Estava prenha de novo (segundo parece tem sido uma boa parideira) mas estava gorda, luzidia e, como se diz, de olhos límpidos. Nem parece minha irmã gémea, fez-me sentir mais velha! Também vive na cidade mas raramente nos encontramos. Como vai a tua vida? O que fazes? Perguntas de quem não tem muito para contar. Vive, já lá vão três anos, com o mesmo macho, um cão grande e gordo que antes de a conhecer guiava um cego. Diz que foi amor à primeira vista, largou ela a velha do pátio, largou ele o cego e ala, lá foram eles viver para perto do porto. Habituou-se bem àquela vida, traz sempre os cachorros debaixo dos olhos, é feliz! Naquele dia vinha à procura de um mimo especial para o seu cão. – Sabes, ele é tão bom para mim! – Ladrava ela, sem disfarçar um certo desprezo pela minha situação. Acreditasse ou não, fiquei satisfeita por a rever e saber da sua felicidade. Eu não a invejo, apesar da minha solidão não me imagino a viver apenas para o “meu cão” e para “os meus cachorrinhos”. Prefiro mil vezes esta liberdade e esta disponibilidade que tenho e que, me proporciona vaguear por todos os lados. Claro que ela me considera irresponsável, a vergonha da classe canina! Pensa que a evolução da raça passa por imitar os humanos e a sua sociedade plena de esquemas complexos.
Na curta conversa que tive com ela, fez-me o relato sobre a vida indecorosa da nossa outra irmã. Vê-a com frequência, disse-me que está escanzelada, ainda mais do que eu, que é constantemente requisitada por cães a qualquer hora do dia e da noite. Notei-lhe uma pontinha de despeito mas disfarcei e escutei apenas.
No final, vejam lá! Aconselhou-me juízo e que procurasse um cão que me protegesse. Anuí só para não a ouvir e despedi-me sem mágoa, digo mais, até com algum alívio. Prometi que a iria visitar para conhecer a sua família, promessa, essa, que não penso cumprir.
Depois continuei a andarilhar pela feira com um gosto renovado pela minha independência!
Ao regressar a casa passei por um tanque pouco fundo onde me lavei do pó, da gordura, do açúcar acumulados durante o dia. Sentia-me verdadeiramente cansada, mas em paz! Ah como é bom regressar ao nosso canto preferido e poder dormir sem cuidados!
Afinal o sono não veio tão depressa como eu julgara, de olhos fechados via passar a uma velocidade imensa os acontecimentos do dia, mas não era eu que caminhava, eram as imagens que vinham até mim e que depois disparavam em direcções diversas. Todo o filme era acompanhado pelo latir constante da minha irmã, do companheiro e dos filhos, sentia-me enjoada. Tão mal disposta me encontrava que sacudi do meu corpo a minha sonolência vomitando aquela girândola de recordações. Desatei a correr à toa pelas ruas rosnando atrevida para todos os gatos que encontrei. Acho que precisava de dar folga às minhas emoções, gritar bem alto que esta era, a minha vida! Toda a vida, com todos os sofrimentos e crises de identidade que fazem também parte dela, ninguém, nem nada maior do que eu poderia alterar isso. Era livre, com todas as consequências que a liberdade nos dá!
Acabei estoirada no degrau de um edifício moderno e adormeci então profundamente até à manha seguinte.

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