sábado, 18 de abril de 2009

O suspiro de uma cadela


9. A pardacenta nuvem que me aconchega ameaça escurecer de vez. Não faz mal, a ressurreição surge sempre! Tenho que me recordar como é…

Chove sem parar há três dias e, há três dias que vagueio pelos meus pensamentos. Não há mais nada que fazer! Há três dias que estou completamente só e não me lembro de ninguém.
Há pouco tempo, porem, um ventinho doce e meigo varreu as pedras da calçada e os regueiros sujos, animou-me. Sacudi-me com a maior energia de que fui capaz e propus-me a procurar alimento. Não sentia fome mas forcei-me a ir para não voltar a cair na modorra. Dantes o exercício dava-me forças e prazer mas agora, que já não luto por muito, a tentação de ficar e morrer apanha-me constantemente.
Vou até ao campo. Pensei. E fui.
Já tinha percorrido umas quantas veredas quando me deparei com quatro cachorrinhos malhados, de olhos recém-abertos que latiam desajeitadamente enquanto disputavam as tetas da mãe. A cadela sem brilho, nem se mexia. Não os desinquietei, fiquei ali a olhar os pequenotes que pareciam querer beber todo o universo no leite materno.
Uma espécie de dor aguda perfurou-me o peito e a barriga. De repente senti uma nostalgia enorme. Ah quanto tempo sofri eu, as ferroadas trémulas de meus filhos?! Aquela sensação de me dar toda no leite que escorre?! Suspirei. Um suspiro que desceu até ao fundo da minha juventude.
Enquanto mamavam mantive-me discreta a observá-los, temia assustá-los. Depois, quando a cadela se levantou deixando no ninho o rancho adormecido, meti conversa. Ficámos ali as duas a falar dessa coisa que se chama maternidade. De gravidezes goradas e de outras bem sucedidas, de partos fáceis e difíceis, de cuidados e ralações, de prazeres e emoções. Acabei por ficar surpreendida com o que eu sabia partilhar. Daí a pouco, como todas as crias, os cachorros acordaram e vieram cheirar-me sem inibições, alguns chegaram a lamber-me, o que, vejam lá, me comoveu bastante! No final da tarde, separarmo-nos e não tive coragem de voltar a casa logo. Por esse motivo resolvi revisitar a falésia. De lá, olhei para o mar líquido que me pareceu disposto a abraçar a terra. E, uivei. Uivei afirmando a mim mesma que estava viva. Ainda viva…
Então o luar desceu sobre mim e vestiu-me com a sua luz pálida, os cheiros dos frutos silvestres dessa tarde voltaram ao meu nariz descendo e perfumando-me por dentro. Estava viva e sentia. Sentia e estava viva!
Na minha mente rasgou-se uma cortina que eu ignorara e todas as minhas perguntas obtiveram resposta. Viver é isto. Partilhar sentidos e descobrir que há intimidade. Lançar o maior uivo de todos para que esse grito se repercuta nos elementos que nos rodeiam. Acreditar que o tempo que nos falta cumprir deve ser cheio, pleno de nós até ao fim.
Então esperei que o céu mudasse de cor e rosasse o princípio da noite. Marquei aquele lugar com o meu cheiro e senti consciente, que me multiplicara eternamente e que portanto eu existiria sempre. O vento despenteou-me o pêlo voltei enfim ao encontro com a cidade.
Senti os olhos húmidos, as patas transformaram-se em asas e a minha cauda, tantas vezes mordida, encontrava-se agora esticada até ao limite do universo. Sem uma única pelada, pelo contrário, nunca a vira tão lisa, comprida, lustrosa! Toda a sua extensão abraçava a vida de que me esquecera. Agora eu sentia-a na minha boca. Eu tornava-me nela e, projectava-me em sentido inverso ao da morte. Agora sim, era verdadeiramente livre! Suspirei!






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