terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Temo, o marujo

Uma visita à Ilha do Labor (2ª parte)

A entrada da aldeia fazia-se sem grande transição. Primeiro uma casa, depois duas, por fim meia centena delas nas duas margens de um pequeno riacho que ali passava vagaroso.
Umas quantas crianças brincavam com terra e calhaus, crianças como outras quaisquer d meu mundo. Irene perguntou-lhes qual era a casa de Naomi e eles, graciosamente, indicaram uma que ficava ligeiramente recuada, por de trás um muro pintado de amarelo.
A casa parecia muito antiga porque debaixo da camada branca actual podiam observar-se outras camadas de tinta de diversas cores. Havia manchas de humidade que confirmavam o clima pouco agradável daquela ilha, mas de resto, era uma casa sólida, capaz de durar mais três ou quatro gerações.
À porta estava uma mulher madura que ao ver Irene se precipitou nos seus braços:
-Que bom, Seguidora, afinal sempre conseguiste chegar a tempo! Minha mãe está prestes a partir para o lugar do Repouso e eu sei como ela era tua amiga! – As palavras da mulher eram ditas sem choro e sem aflição, talvez a ruga profunda que lhe separava as sobrancelhas fosse mais vincada! Além disso, havia no seu olhar alguma inquietude, nada mais.
Irene bateu-lhe levemente nas costas da mão e apresentou-me à filha de Naomi como um dos “eleitos” e a mulher, convidou-me também a entrar.
Lá dentro tudo era muito simples, limpo e confortável. Em redor do leito baixo estavam todos os filhos de Naomi, as noras, os genros, os netos e alguns bisnetos. Serenos, silenciosos e tranquilos, possuíam uma tal dignidade que me comoveu. Veio-me de repente à memória o funeral do meu avô, da gritaria e alvoroço dessa altura e não pude deixar de comparar os comportamentos de uma família e de outra. Aqui a morte era esperada como um facto natural sem deixar de ser respeitado.
Quando me aproximei do leito da moribunda observei como era velha, tão velha que nunca me passou pela cabeça ver alguém daquela idade. Magra, pálida, de rosto e braços enrugados e estendidos ao longo do corpo. Os seus cabelos entrançados com carinho, chegavam-lhe quase à cintura, eram tão brancos que quase resplandeciam. Tinha os olhos abertos, secos, cinzentos mas cegos… a respiração audível e irregular, mostravam o grande esforço que fazia para continuar viva.
Irene aproximou-se com o carinho que eu já lhe reconhecia há muito, debruçou-se e falou-lhe quase em segredo:
- Então Naomi, estás no fim da tua jornada? Agora é a minha vez de te ajudar a fazer a passagem como forma de te agradecer teres-me ajudado a nascer. Não tens nada a temer… há alguma coisa que te prenda a este lugar?
O abanar lento da cabeça da moribunda deu a entender que estava completamente lúcida e preparada para o que se ia passar.
- Naomi, minha velha, já sabes como é… lembra-te da tua verdadeira pátria, daqueles que irás rever… esperam-te, com certeza, cheios de alegria. Decerto que alguns já se encontram aqui para te acompanhar, conhece-los?
A velha rodou lentamente a cabeça, parou aqui e ali, sorrindo e mentalmente respondeu que sim, que os reconhecia.
Irene então endireitou-se e perguntou se ela estava pronta para iniciar o rito. Quando obteve a resposta, destapou o corpo e desprendeu-lhe os cabelos com paciência, alisou-os ternamente com os seus próprios dedos, depois, começando pelos pés, foi massajando-lhe o corpo com um óleo que trouxera consigo. A família afastara-se o suficiente para dar espaço à Seguidora e mantinha-se calma. À medida que lhe passava as mãos pelo corpo cantav uma melodia sem palavras, quase hipnotizante! Por fim, levantou os braços sobre a cabeça de Naomi e fez um movimento como quem ajuda alguém a sair debaixo para cima e exclamou: - “Estás solta!”- o suspiro que se ouviu foi tão leve qye se perdeu no emio da respiração dos outros.
Eu nunca tinha visto alguém morrer assim e fiquei verdadeiramente impressionado.

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