quarta-feira, 11 de março de 2009

Histórias de mim para ti ou Histórias mágicas de reais acontecimentos


Uma noite com as palavras

Aborrecida por não ter nada que fazer, sentei-me à borda do papel branco onde as linhas azuis se confundem e, esperei que o parágrafo se iniciasse.
Era noite. Acentos graves ouviam-se lá fora. Fora do pensamento. Abri a capa do caderno e as palavras assomaram tímida mas convictamente na ponta rolante da esferográfica. Convidei-as a entrar na página em branco e a tomarem o lugar que quisessem.
Artigos e pronomes pessoais disputaram discretamente um lugar à esquerda. O hábito é assim, torna-nos prisioneiros dos lugares! Aqueles ali não o sabiam, por isso tomaram essa atitude instintiva.
Os verbos, pelo contrário, acostumados a desdobrarem-se, foram mais flexíveis. Bem, sabiam que tinham que respeitar os tempos, os modos e o número, mas enfim, uma noite não são noites! Que o digam os substantivos!
Encheram por isso as linhas como se sentassem num estádio antes de um jogo importante e deliciaram-se completamente em jeito de gozo antecipado com a sua provocação, pois desta maneira, as palavras sobrantes, ligadas ao sentido da ordem, teriam que procurar na confusão, as suas posições. Situação que provocou momentos hilariantes e alguma confusão.
- Os verbos são terríveis! – Comentou um ponto de exclamação por entre um suspirozito de inveja.
- …e no entanto… - sentenciaram as reticencias. – São demasiado humanos, sentem e agem como eles. Nenhum de nós, pode confiar inteiramente neles… basta um pequeno deslize e transformam uma frase…
Os verbos tinham consciência da sua reputação, e compraziam-se com isso, realmente eram praticamente humanos, tirando algumas interjeições que os compreendiam muito bem e que às vezes até os substituíam, nenhuma, nenhuma outra palavra era capaz de dar tanto sentido à linguagem.
Estar ali à noite com as palavras, era diferente. Eu já calculara, mas confirmei à medida que via as palavras entrar, percebi então, como é que palavras curtinhas podiam ser mais poderosas que outras bem mais compridas.
Querem ver como? Eu conto:
A dada altura, um advérbio de mais de dez letras resolveu plantar-se com todo o seu tamanho quase no fim da linha. Estava à espera que reparassem nele, o que foi uma esperança vã! Ainda por cima, como todos têm a mania de terminar sempre em “mente”, quem é que ia olhar duas vezes para ele? A verdade, é que a falta de atenção o irritou. Revoltou-se, e até foi inconveniente com o maroto de um verbo, sentado no início da linha de baixo, que o olhava com ar divertido. Tanto esbracejou, tanto se esticou ao comprido que acabou encavalitado na margem e perder um “e”.
De outra vez, ocorreu um pequeno incidente.
Mesmo no meio da página, estava um daqueles substantivos epicenos que pudicamente escondem o sexo. Andavam todos embaraçados sem saber como o haviam de tratar, por nada deste mundo desejavam ofendê-lo. Zum zum, daqui, zum zum, dali, e eis que um pequeno artigo, humildemente constituído por uma só letra se foi sentar á sua beira. Um “Ah!” de alívio encheu os circundantes já esclarecidos.
Mas, vaidosos, vaidosos mesmo, são os adjectivos. Sempre com a mania de criticar as outras palavras, com a agravante de as rotular e de as quererem substituir em alguns casos. Têm a presunção que fazem parte de uma elite e não se dão com a maioria das palavras, acham que quando se associam é para fazer realçar a sua importância.
O mais engraçado é que os substantivos, suas vítimas principais, não se deixam escolher ao acaso, eles é os escolhem cuidadosamente. Coisa que não agrada nada a estes meninos de bem de todas as gramáticas do mundo. Ainda não perceberam que fazem parte de uma língua e que, para a enriquecerem têm que trabalhar em equipa e resolver as suas rivalidades.
Claro que estando eu, em tão viva comunhão com as palavras, aproveitei para as convidar a agruparem-se em frases, de modo a registar aquela noite diferente de todas as outras noites.

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