domingo, 29 de março de 2009

o suspiro de uma cadela


6. Era tão bom que tivéssemos todos, um dono que provesse as nossas necessidades, que sorrisse benevolente quando das nossas faltas e, nos afagasse o pêlo do lombo nos momentos de desilusão!

Foi só uma vez na minha vida que tive alguém a quem me apeteceu chamar dono!
No fim de um dia chato, quente e abafado, que ainda recordo a dificuldade que tinha em respirar e mexer, procurei um lugar fresco e encontrei-o, debaixo de um arco, numa viela esconsa e escura. Tinha a minha língua de fora, arquejava, quando de repente, vi na à minha frente, duas mãos encardidas com uma tigela rachada cheia de água. Bebi sofregamente todo o líquido e de novo, essas mãos me voltaram a pôr uma quantidade igual da minha salvação. Quando me senti saciada, levantei os olhos e vi um velho barbado e sujo, tresandando o cheiro enjoativo dos humanos. – “Pobre cadelinha! Tens muita sede, não tens? Toma, toma que também és filha de Deus.” _ Embora não tivesse conhecido o meu pai, creio que não deve ser o tal Deus, por acaso até nem sei se ele tinha algum nome, não o conheci! Nunca percebi muito bem, quem é esse deus que os homens passam a vida a falar, mas naquele momento, acreditei que devia ser alguém muito bom pois, em seu nome, o velho me oferecia água e me salvava. Filha de Deus! Parece que ainda o estou a ouvir!
Deixei que o velho me afagasse porque ele parecia feliz com isso, e sinceramente, também não me senti nada mal! O homem falava, falava comigo num palavreado que não percebi, mas deixei-o falar porque me pareceu que falava mais para si do que para mim. Depois disso, chamou-me para eu ir com ele, acompanhei-o à porta de uma taberna mas não entrei. Ele passado um bocadinho, veio até à porta trazer uns “restozinhos” para eu me entreter. Senti-me na obrigação de o seguir quando ele, trôpego, saiu de lá e caminhou pelas vielas murmurando sem parar. Ele à frente e eu atrás, nada de confusões porque ainda não o conhecia bem! Por fim deitou-se num banco de pedra e eu também me deitei por debaixo dele. Falava, acariciava-me, falava, julgo que mesmo a dormir ele falava!
Tomei o hábito de o seguir, já lhe conhecia o cheiro e o passo arrastado, até que um dia as coisas mudaram. Talvez nem tivesse passado uma semana, pois havia um dia certo que eu costumava ir às traseiras de um restaurante onde todos os cães se encontravam para rilhar os ossos e pôr a conversa em dia e ainda, não lhes falara do meu novo companheiro. Seguia-o como de costume naquele dia, primeiro percorremos a avenida, depois atravessaríamos a rua e por fim esgueirar-nos-íamos até à rua do arco onde nos tínhamos encontrado pela primeira vez se não acontecesse o que aconteceu. O trânsito parecia louco e o velho arriscou atravessar a rua apesar da insegurança do seu andar. Ainda lhe puxei com os dentes uma das pernas, mas ele sacudiu-me rindo. Recuei sem saber porquê e foi então que ouvi um barulho horrível que me fez estremecer. Ouvi gritos e apesar de meio desorientada corri para o corpo do velho empapado em sangue, em pouco tempo percebi que estava rodeada por uma multidão de pessoas e que elas faziam comentários sobre mim e o velho. Foi então que percebi que perdera num instante, aquele a quem um dia poderia chamar dono. Gani e uivei como nunca o fizera, lambi-lhe as mãos e o rosto como se antes de ele partir pudesse levar consigo a minha gratidão. Pareceu-me que ele se erguia, agora mais limpo, quase brilhante, que falava uma vez mais comigo, até lhe ladrei com satisfação, mas deixei de o ver quase logo quando um carro a apitar se aproximou e de lá saíram uns homens que levaram o corpo. Atirei-me contra a parede de pernas e corri sem parar até à “nossa rua”, deitei-me debaixo do banco de pedra e pareceu-me, uma vez mais, que as suas mãos me tocavam.
Uma cadela não costuma sorrir por isso dei ao rabo com quanta energia tinha. Durante muito tempo, foi aquele o lugar preferido para dormir as minhas noites. Ainda hoje, quando me sinto mais só, percorro a cidade para me encontrar sob aquele banco e, às vezes desejo um dia de calor sufocante e umas mãos sujas a darem água numa tigela rachada.

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