domingo, 15 de março de 2009

O suspiro de uma cadela


4. Valeu-me estar longe quando tudo aconteceu. Imagine-se que eu previa o que se passou!

Foi mais um daqueles tropeços que nos desviam da linha do destino. Nós a pensarmos que vamos bem por um caminho torto e, de repente, atravessa-se uma linha recta que nos leva serpenteantes para um outro final! Eu explico. Claro que não vos ia aqui atiçar a curiosidade por coisa nenhuma, por acaso até tinha graça! Fazia lembrar aqueles prestigiadores de vulgaridades que acabam por se esquecer dos coelhos na cartola!
Bom, o caso foi assim: andava eu à procura de umas côdeas sem quaisquer resultados, quando me se depara à frente um enorme alazão a arreganhar o dente e a fazer alarde do seu tamanho. Confesso que meti a cauda entre as pernas e fiquei tremelicante. No entanto ergui o focinho e fiz valer a minha veneranda idade rosnando cavamente. Durante algum tempo medimos as forças e a coragem mas, mal tínhamos começado o confronto quando um enorme estardalhaço cuspindo ferro e fogo, rebentou de dentro do casarão amarelo que fica ao pé do chafariz, onde costumo dormir nos dias de chuva. A confusão demoveu-nos de qualquer ajuste de contas e, obrigou-nos a refugiar por entre as rodas de um camião que ali se encontrava parado.
Passado um bocado a rua era um ror de gente, de carros a apitar, de jactos de água, de cinzas, de gemidos, de madeira queimada e de pedras caindo.
Eu e o meu inesperado companheiro, resolvemos safar-nos dali para fora. Barrigas roçando a calçada, orelhas coladas ao focinho e, ala, que se faz tarde! Logo que apanhámos uma ruela mais desimpedida, tratámos de correr. Corremos, corremos tanto que, acabámos por ir parar ao miradouro de um outro bairro antigo. Felizmente, charcos não faltavam, por isso bebemos gulosamente toda a água que pudemos. Saltámos para a relva dos jardins e espojamo-nos descontraidamente.
Tempo depois, não era mais dois desconhecidos e entrámos em confidências. Ele começou por pedir desculpa pela maneira como me tratara, não era por mal, era o jeito dele! Como fora criado no campo, num lugar onde a enormidade do número de cães vadios era tanta, a sua natureza levava-o ter que mostrar constantemente a mostrar-se forte e dominador. Claro que já tinha ouvido falar que com o sexo feminino, devia ser mais gentil, mas a verdade, é que se esquecia sempre desse pormenor, desses aprumos de civilidade. Era o hábito! Até porque não costumava fazer mal nem a uma mosca. As cadelas da sua terra natal não eram delicadas, eram cadelas de luta e que muitas vezes, mordiam à descarada. Também contou que fora criado ao Deus dará, aprendera as leis da vida e da sobrevivência à sua custa.
Era quase um cachorro, a impetuosidade própria da sua idade estava ali à vista: num momento agressivo, noutro, trémulo e inseguro. Não lhe fiz muitas perguntas, só as suficientes para que ele sentisse que podia falar à vontade. E ele via-se, coitado, que tinha necessidade de botar cá para fora toda aquela angústia que o estrangulava. É sempre assim! É muito mais fácil despirmo-nos das nossas máscaras com os estranhos do que com os próximos. Portanto, ele falou, parecia que era só a sua voz que ele queria ouvir, e eu, queda, deixava escapar de vez em quando um suspiro de verdadeira compaixão para que ele sentisse de facto que o estava ouvir.
A noite foi caindo aos poucos, àquela hora, com a luz mortiça, os estragos da minha idade tornavam-se quase invisíveis. Aproveitei também para esvaziar os meus pesos e confessar todas aquelas “coisinhas” que borboleteiam no na nossa consciência.
Cavalheirescamente e muito longe do que eu pudesse acreditar, o alazão acabou por se mostrar atento, sério, quase reverente para comigo, não me intimidei e, cá para nós, fez-me sentir um certo orgulho!
Já os gatos andavam em plena caçada e a noite se fechava, se sobressaltava com os ruídos sem nome, quando resolvemos procurar abrigo. Daí a pouco o orvalho frio da madrugada seria tanto que se transformaria numa capa branca com que cobriria as ervas. Se isso acontecesse, o desconforto alteraria por certo a nossa disposição e quebrar-se-ia o encanto.
Vagueámos então em silêncio. Aquela parte da cidade era-me tão desconhecida para mim como para ele, só que eu tinha a vantagem de ser uma citadina enquanto ele, só agora começava a desvendar este mundo. Descobrimos finalmente uma casa desabitada e gradeada dentro do jardim público, nos fundos encontramos uma quantidade enorme de ferramentas humanas que nos atravancava um pouco o espaço. Descobri um canto menos atafulhado e aproveitamos umas sacas de serapilheira para nos deitarmos.
Daí a poucochinho ele pediu-me licença para sair um bocadinho. Não demorou nada, trouxe dois belos ratos gordos para a nossa ceia, acho que lhe sorri, dentelhei um pouco da refeição, mas como já não tenho a fome de outrora, deixei-lhe o resto que ele aproveitou. Via-se bem que estava habituado a comer mais, mas não voltou a sair.
Ajeitámo-nos para um sono reparador. Ele adormeceu logo e eu, fiquei ali a observá-lo. Reparei em todos os seus músculos que subiam e despiam ao ritmo da respiração. Não era raro que de tempos a tempos, ele não soltasse um rosnear entrecortado de palavras sem sentido. Experimentei a ternura. Há tanto tempo que a não sentia!... o seu cheiro forte de macho perturbou-me a memória, não era só desejo que eu sentia, era algo mais, quase um sentimento incestuoso. Afinal ele poderia ser qualquer um dos meus filhos. Alguns dos quais seriam bem mais velhos do que ele, filhos! Devem andar por aí esquecidos do meu ventre e das minhas tetas! Se calhar não fui uma grande mãe, mas pari-os, alimentei-os, a todos, sem um queixume. E nunca nenhum me morreu por falta de cuidados. Eles cresceram, partiram. Encontraram outros caminhos que não são forçosamente perpendiculares ao meu. De todos os que eu tive e ficaram neste mundo armadilhado, só sei de dois.
Um, encontrei-o aqui há uns tempos, esguio e magro como eu, trotando obediente ao lado do dono caçador, chagou-se a mim, farejou-me e depois lá foi, satisfeito com a sua vidinha. O outro, mora não muito longe daqui, é um belo cão! Muito parecido com o pai, troncudo e coberto de um pêlo sedoso e dourado. Mas o garbo com que a natureza o dotou, não tem reflexos na sua personalidade…passa a vida atrelado a uma mulher saltitante, cego na sua fidelidade. Está um pouco gordo demais, provavelmente com o excesso de comida que a dona lhe dá. É tão perdidamente dedicado que ao passar por mim, se encosta às pernas da dona como se temesse que eu me chegue a ele. Confesso que a principio essa atitude me magoou, mas agora, aceito e compreendo-o.
Assim, olhando este jovem que podia ser meu filho, sinto-o menos estranho que os meus próprios filhos, e tudo porque ontem entrei no domínio das emoções e sentimentos e, partilhei com ele, a novidade da confidência.
Ainda não era manhã clara e cheia quando alguém com estrondo abriu o casinhoto onde nos encontrávamos. As imprecações acordaram-nos em sobressalto e saímos daquele lugar. O meu companheiro ainda tentou refilar mas eu empurrei-o levemente com o focinho e avançamos pela estrada granulosa do jardim à nossa frente.
Parámos junto à ponte que estende uma das pontas ao campo e outra à cidade. Ficámos ali calados, cheirando-nos mutuamente sem ruído. Vi nele o desejo contido na timidez genuína dos jovens e, então percebi que devia, de alguma forma, agradecer os breves momentos de quase felicidade que ele me trouxera. Toquei-lhe com explícita intenção e encorajei-o a dar ao corpo a alegria. Ele tomou-me desajeitadamente, demasiado rápido para uma despedida, mas perfeitamente ajustável à pressa que sentia. Não me emocionei e fingi graciosamente que sim. Ele não reparou, acreditou que tinha dado o seu melhor. Até nem era mentira! Só que o melhor dele não passava de mediocridade para mim. No entanto, não era o meu prazer que eu queria, era antes a vontade de lhe dar uma recompensa pela sua dedicação.
No momento da sua actuação, ainda murmurou a possibilidade de ficar comigo mais alguns dias, eu disse-lhe que não, que o recordaria melhor assim, que fora feliz por o ter encontrado. Ele acreditou.
Primeiro, lentamente, depois com agilidade e rapidez, partiu correndo para o outro lado da ponte. Ainda fiquei ali vendo o seu vulto tornar-se invisível, acabei por me virar para a cidade e recolhi-me nas ruínas do casarão amarelo.
Já nada restava, senão o amontoado de pedras e lixo, mas abanei as orelhas e a minha cauda em sinal de reconhecimento e, mais tarde, procurei outro lugar de guarida onde pudesse, tranquilamente, meditar no resto dos meus dias.

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