domingo, 22 de março de 2009

O suspiro de uma cadela


5. Não há volumes. Só superfícies no reflexo das nossas relações. E, apesar disso, bastava que eu ou tu, nos projectássemos um pouco para além de nós!

Esta tem sido, toda a vida, a minha política. Porém, na maior parte das vezes, só consigo arranhar a polidez dos outros com a minha tacteante ternura. E, quantas? Quantas vezes se aproveitam dela num breve movimento para me roubarem?! Penso reconhecer a protuberância dos outros, mas a minha mola está demasiado lassa pelo hábito de me esticar e acabo por não me encolher…
Foi há três dias que encontrei este lugar, recolhia a minha necessidade de me isolar do vai e vem da cidade. Nunca gostei muito de praia, mas nesta época, o areal está húmido e encontra-se quase deserto. Por isso, não é desagradável.
Acho que andava a precisar de sentir novos cheiros, espojar-me em espaços abertos e, coçar-me, coçar-me como poucas vezes o faço, nestes espinheiros que crescem nas dunas. Além disso, este marulhar repetido do mar, embala-me, apaga-me os contornos mais ásperos do pensamento e ajudam-me a mergulhar fundo, bem fundo do fundo de mim mesma.
Estar aqui, é estar no vestíbulo da eternidade, prepara-nos a entrada, sem a agudeza dos opostos. Uma cadela como eu, já pouco mais pode esperar do que um terminar sereno e, precisa sem dúvidas, de se treinar para a solidão.
A perversidade que nos mantém presos à realidade é demasiado objectiva, acredito que passei anónima pela vida, isso incomoda-me! Talvez porque sinto cada vez mais curta e apertada a trela que me segura ao mundo, talvez…
Quando mergulho na minha história, curiosamente nunca a vejo igual. Encontro dezenas, senão centenas de outros cães e cadelas que para além do cheiro, não me deixaram mais nada. São, como hei-de dizer, ornamentos de memória!
Baixo o focinho por entre as patas na areia da beira-mar e deixo que a espuma das ondas desmaiadas mo beijem.
De olhos abertos, cego-me para o que está próximo e projecto-me para além do horizonte.
Imagino – um cão também pode ter imaginação! – Vultos caninos que me parecem familiares, acenam-me, chamam-me, apelam ao meu corpo mole. Um deles faz-me lembrar a minha mãe, uma cadela tão magra como eu, que vagueava nas ruas e generosamente servia os machos das redondezas. Tinha fama de mansa, só quando tinha crias se arrebitava toda na fúria de as proteger. Não faço ideia, em qual das ninhadas nasci, sei que houve muitas antes da minha e que depois de eu a deixar, continuou a gerá-las.
Lembro-me apenas que éramos quatro. Três fêmeas e um macho. Todos amarelos, híbridos de um galgo. O nosso tamanho em breve superou o dela, o que claramente, dificultava a disciplina e o respeito entre nós. O meu irmão em breve perdeu o domínio porque cegou, não me lembro porquê. Sei apenas que deambulava sem segurança e um dia, desapareceu para sempre. O conflito entre nós, as cadelas, tornava-se cada vez maior, principalmente quando chegava a época do cio, cada uma de nós queria o melhor macho, hoje já nem sei bem para quê! Mas não durou muito essa luta, pois cada uma seguiu o seu destino. Nem sequer nos despedimos umas das outras, partimos, simplesmente!
A minha mãe lá ficou no seu território, não sei por quanto tempo. Talvez os laços familiares entre cães não sejam assim tão apertados! Eu procurava mais que um breve lamber ou mordiscadela. A maioria dos cães que se cruzaram comigo aproveitou bem essa ânsia de afecto, aproveitavam o melhor que podiam e logo que se sentiam satisfeitos, afastavam-se apagando todos os episódios do passado recente. Confesso, que me desiludi, passei então a lutar pelos direitos dos outros, a servir de confidente, a socorrer os menos capazes, a lamber as feridas de uns quantos. Alguns aproveitavam a minha acção para em seguida me tentarem dominar, roubar ou magoar, outros, vá lá, afastavam-se e esqueciam-me.
Por vezes rebentava dentro de mim uma revolta tão grande que passava as noites a uivar, a morder o meu próprio rabo. Agora, quando penso nisso, e estou no epílogo da minha passagem por aqui, já não faço caso, vivo mais comigo mesmo, se tiver que ajudar um cachorro ou um cão perdido do dono, é porque me faz melhor a mim do que a eles. Já não estranho as partidas precipitadas, nem os silêncios comprometidos, fico até admirada quando algum se lembra de agradecer.
Hoje, quando me projecto tenho a certeza que é um reflexo instintivo que me impede a indiferença perante os que me rodeiam, assim, defendo a minha existência de um sono sem sonhos e resguardo-me das sombras.

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