domingo, 8 de março de 2009

O suspiro de uma cadela


1. Mordo a ponta do meu rabo enrolada no corpo nervoso e, dento o pêlo hirsuto e amargo, rasgando-me calada.

O vento expulso dos largos pelas ruelas e becos, arranha-me as orelhas e os olhos com a poeira que traz, chego mesmo, a inspirá-lo, desprevenidamente.
Há nas pedras da calçada, enodadas de canseiras, umas poçazinhas lodacentas onde me arrasto para diminuir o frenesim que sinto.
Não consigo já ganir as minhas dores. Elas tornaram-se tão materiais que me perfuram a pele como carraças. Profundamente.
Já não me incomodam os pontapés e as alguidaradas de água fria. Limito-me a encolher sob a soleira de uma porta envelhecida.
Já não farejo por entre as fitas de plástico dos talhos, a benesse de um osso duro de roer.
Fico aqui, como não quer a coisa, a ver se reparam em mim.
Dobro o cachaço ante aqueles que rosnam altivos e, passo indiferente por outros que também se encontram nesta volta da vida.
Colecciono suspiros no peito como quem compõe um colar de angústia. Um colar que aperta o pescoço e me deixa entorpecida.
Nem o assédio de um macho pouco exigente me animam já. Como se o cio fosse coisa longínqua… e, se um deles se serve, deixo simplesmente que aconteça, sem ruído, sem ofegação.
Eu sei que há um bairro do outro lado da cidade onde os cães têm vida de luxo, que são escovados, perfumados, passeados por donos pervertidos ou carentes de afecto. Eu sei que há ainda para lá da cidade, um baldio onde as ervas são muitas, os ratos e os láparos acessíveis à caça, onde se corre à vontade e se pode adormecer de barriga para o ar.
Mas para viver no bairro é preciso coleira, às vezes, até açaime. E, para viver no baldio, é preciso andar, andar muito, até lá chegar. E eu, estou velha!
Nunca tive outro dono senão eu própria, nuca dormi sem ser ao relento ou num qualquer coito mal cheiroso. E, já não tenho forças. Não, não tenho, para procurar o baldio e conquistar o lugar.
Prefiro ficar por aqui, onde cada esquina tem um sinal odorado por mim. Prefiro rastejar nesta lama fiel que partir à aventura.
Um dia, eu sei que é a única certeza, estender-me-ei numa berma, esticar-me-ei de ventre inchado, até que o carro municipal me leve dentro e me meta na pira que tudo purifica e alimenta.
E então, tornar-me-ei pó. Um pó fino e cinzento que se espalhará nos ares e entrará nas narinas dos que o respirarem. Nesse momento, acolher-me-ão dentro de si, nessa altura, sem esforço, farei parte das brisas e chegarei a todo o lado, sem medo, sem cansaço, sem lutas. O meu rabo e a minha boca, deixarão de ter sentido porque não terão forma e passarão a ser apenas a existência que a minha imaginação lhe queira dar.
Também não precisarei de um nome, porque terei apenas a consciência de que existo independentemente dos sentidos dos outros.
Ah sim, esse tempo virá! E eu, abocanhá-lo-ei mais depressa que hoje, abocanho o meu rabo!

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