sábado, 17 de janeiro de 2009

Telmo, o marujo

1.Os Seguidores do Rasto do Sol

Despertei quando o barco embateu no muro do cais. Quis levantar-me, mas logo que ergui a cabeça, senti uma espécie de zoada que me obrigou a baixá-la de novo.
Um dos meus salvadores ajoelhou-se junto de mim e esfregou-me os pulsos, enquanto os outros três procediam à tarefa da amarração do barco.
As forças regressaram rapidamente ao meu corpo e voltei a tentar pôr-me em pé, o homem que me ajudou fez menção de me levar ao colo, mas eu recusei porque me sentia envergonhado com o meu estado de fraqueza. Ele sorriu mas amparou-me no meu passo trôpego enquanto subia a rampa que nos levava à estrada marginal.
Era como sair de um sonho pegajoso! Mas entrava aos poucos no meu domínio. Já mais desperto, pude então observar o quanto era limpa aquela estrada, pavimentada com grandes lajes octogonais de cor ocre, muito polidas e brilhantes e, quanto era larga! Dava perfeitamente para que dois carros se cruzassem e deixava ao mesmo tempo, espaço para as pessoas caminharem em segurança.
Não consegui determinar exactamente o tamanho da marginal porque de outro lado havia uma praça rectangular e do outro, estendia-se o porto que parecia prolongar-se em curva.
Dirigimo-nos precisamente para a praça, fiquei espantado com o seu tamanho, devia ser muito importante! De frente para o mar erguia-se um enorme edifício todo cor-de-rosa e branco, calculei que tivesse no mínimo quatro ou cinco pisos. Reparei que em vez de janelas, apareciam na sua fachada, uma quantidade enorme de vigias redondas e um magnífico portão encaixilhado por uma arcada. Quer o portão, quer a arcada, eram de um metal alaranjado, o que me espantou muito! De cada lado da praça, havia outros edifícios idênticos ao maior, mas bastante mais pequenos, intercalados por ruas que aí desaguavam. Fiquei logo com a ideia que para lá daquele espaço, deveria haver outras ruas e praças e que aquele lugar, do qual não conhecia o nome, era uma cidade bem grande.
À medida que nos aproximávamos do edifício principal, reparei que este não tinha arestas vivas, elas estavam como que limadas, mostrando-se arredondadas.
Chegados ao portão verifiquei que todo ele estava preenchido por uma quantidade de símbolos que não fui capaz de identificar, esses símbolos constavam de círculos concêntricos, espirais, curvas com contracurvas sobrepostas, não havia nenhuma linha recta naquela linguagem estranha. Senti-me impelido a tacteá-los, mas um dos meus acompanhantes retirou-me suavemente a mão do portão.
Entretanto uma das portas abriu-se e passamos a percorrer uma espécie de túnel que tinha um gradeamento no final. Esse gradeamento, abriu-se sozinho para nos dar passagem sem qualquer ruído e encontrámo-nos em seguida num claustro com planta octogonal.
No centro do claustro, essa forma repetia-se em colunas e arcos feitos do tal metal alaranjado. No meio havia um lago circular com pequenos repuxos em todo o seu rebordo, o que embelezava o espaço. Tanto as colunas como os arcos estavam revestidos de trepadeiras em flor que exalavam um perfume levemente adocicado e calmante. Nas bases das colunas estavam também canteiros com plantas verdes e amarelas.
O homem que cuidou de mim até ali, indicou-me um banco junto à parede, e eu obedeci, embora ficasse ansioso pelo que se iria passar. Aproveitei para passar as mãos nas paredes e confirmei que elas não estavam pintadas, mas sim revestidas de um material sedoso, cor de pêssego, enquanto o chão me pareceu pavimentado de blocos castanhos brilhantes e translúcidos. O lugar era tão relaxante que fechei os olhos e creio que adormeci um bocado porque, quando os abri, encontrei à minha frente a mulher mais bonita que jamais vira!
Ela sorriu para mim e eu, atarantado, levantei-me num pulo e curvei-me instintivamente para a cumprimentar. Era belíssima! A sua pele morena clara parecia resplandecer, os cabelos de um castanho doirado, caíam em cachos pelas costas quase até à cintura, trazia vestida uma túnica de panos finos sobrepostos como lenços que esvoaçavam com os movimentos, tal qual uma borboleta, pensei eu! Não trazia quaisquer outros ornamentos além de uma pequena gota de cristal sobre a fronte, presa numa fita azul escura lhe rodeava a cabeça.
O meu corpo foi percorrido por um arrepio quando a voz dela em vez de vir da boca entrou directamente na minha cabeça:
- Bem-vindo sejas às Ilhas do Arquipélago do Ocaso, jovem Telmo! Compreendo a tua confusão mas peço-te que não tenhas receio porque logo ficarás esclarecido. Temos muito prazer em te ter connosco. Para que nos entendamos, não precisas de falar, basta que formules os teus pensamentos como estou fazendo contigo.
- Rainha...Senhora...Donzela... o que está a acontecer? Que lugar é este? – Disse eu, articulando naturalmente as minhas palavras com a voz esganiçada própria de um adolescente como eu.
- Sabê-lo-ás em breve. Chama-me apenas Helena, não sou nem rainha, nem Senhora. Sou apenas uma das representantes do raio de luz que iluminará algumas das tuas dúvidas. Sou uma das Seguidoras do Rasto do Sol.
- Meu Deus! Que ilhas são estas? O que são os Seguidores do Rasto do Sol? O que faço aqui?
- Calma, calma, responder-te-emos a tudo na hora certa! Agora tens que te recuperar, refrescar e alimentar, vem.
Aturdido, segui Helena pelos corredores, onde havia muitas portas mas, nem o cheiro nem o ruído, me permitiram descortinar a natureza das suas funções. Acabei por entrar num quarto todo revestido de azulejo colorido com uma espécie de tanque arredondado, onde no fundo, uma água esbranquiçada e borbulhante, esperava por mim.
Recuei assustado ao verificar que ela tinha intenção de me enfiar naquele “caldeirão”. Helena riu e mostrou-me que não havia qualquer perigo. Ajudou-me a despir e a mergulhar na água o que me fez ficar um pouco intimidado. Logo que me meti dentro de água achei óptimo o banho, era tranquilizante e ao mesmo tempo o seu aroma dava-me energia! Foi um pouco contrariado que tive que sair de lá.
Helena tirou de uma arca de madeira avermelhada a minha nova indumentária; uma túnica e uns calções curtos e brancos, uma jaqueta cor de laranja e umas alpargatas de um material idêntico à pele mas, muito mais macio! Dei um suspiro de alívio, aquela roupa dava-me uma grande liberdade de movimentos e era muitíssimo confortável, há tanto tempo que não me sentia assim tão limpo nem tão leve!
Regressei com Helena pelos corredores e desemboquei num salão de jantar fantástico em que as paredes eram revestidas de inúmeras pinturas, e no centro, uma enorme mesa repleta de iguarias que me fizeram esfregar os olhos e lembrar que há muito tempo não comia.
Sorrindo, divertidos, seis personagens esperavam por mim.
_ Senta-te e come connosco, Telmo. Dá-nos o prazer da tua companhia. Nós, tal como Helena, também somos Seguidores do Rasto do Sol, embora sigamos diferentes raios. - Disse o que parecia ser o mais velho, cujo nome era Hélio, o Guardião das Portas Sagradas.
Sentei-me timidamente, enrugando a testa à medida que ele falava porque me custava a compreender o sentido das suas palavras.
- Agora o jovem tem que se alimentar. – Interveio com ternura Helena.
Logo que me senti mais à vontade, cresceu-me uma enorme excitação, como se tivesse bebido álcool e que me fez fazer perguntas.
- Não sei o que é ser Seguidor do Rasto do Sol mas gostava de saber o que faço aqui? Sobretudo que me expliqueis se há relação entre vós e o mistério dos cânticos e da cor tão invulgar que tomou o céu há dias. Já agora porque é que todos os homens enlouqueceram menos eu e o imediato? Isto ainda me parece uma espécie de sonho, não sei se bom se mau, podeis esclarecer-me?
- Não foi bem um sonho – respondeu Hugo – mas há sonhos que são mais reais do que aquilo que se crê... tu não percorreste já terras longínquas cujos povos vivem de forma bem diferente da tua? Pois bem, o que pensariam alguns deles se fossem transportados sem qualquer explicação para o teu país? Provavelmente sentir-se-iam tão desajustados como tu neste momento. Poder-lhes-ia parecer também um sonho! Nós existimos há muito, mas porque estamos num espaço paralelo, tornamo-nos invisíveis para vós. Desta vez os nossos dois mundos tocaram-se e o vosso navio entrou no nosso. És capaz de me entender? Somos de alguma maneira iguais a vós. Invisíveis, só aos vossos olhos, porque aos nossos, não. Fazemos muitas visitas ao vosso mundo sem que vocês dêem por nós.
Em relação ao delírio colectivo que tomou os homens deve-se simplesmente ao medo. Eles não aguentaram encarar o desconhecido. Os cânticos que ouvistes, foram de boas vindas porque a música é uma linguagem universal. Quanto ao céu, no nosso mundo ele tem sempre a mesma cor, a cor do Ocaso, porque vivemos sempre no rasto do Sol, não a reconheces no vosso entardecer? Tens mais dúvidas?
- Mais ou menos...nem sei se percebi muito bem! Quereis dizer que há dois mundos diferentes, que sempre existiram lado a lado e que só são visíveis para os seus próprios habitantes?
- Exactamente! Mas atenção, eles podem sempre tornar-se visíveis para aqueles que os entenderem.
- Nesse caso… se nós pudemos entrar no vosso mundo, vós também podeis entrar no nosso!
- É muito frequente, isso acontecer. Sobretudo se algum de nós tem um objectivo muito definido no vosso mundo! O que aconteceu desta vez é que entrastes acidentalmente, sem preparação para o fazer, foi isso que gerou todo aquele pânico.
- E agora como posso eu regressar?... O navio incendiou-se, a tripulação morreu, eu não sei viajar entre dois mundos! Vocês vão-me ajudar, não é verdade?
- Cuidaremos disso fica descansado! No entanto temos um plano para ti.
- Um plano? Que plano?
- Tu és um rapazinho diferente dos mais, poderás cumprir uma missão muito importante, mas para isso terás que ser educado.
- Uma missão importante? Eu? Que posso eu fazer se não passo de um ignorante?
- Tu não és ignorante, apenas esquecestes o que sabias... nada em mundo algum, acontece por acaso! Serás tu quem vai descobrir essa missão e nós ajudar-te-emos a criares condições para a realizares.
- Posso fazer ainda outra pergunta?
- Claro, todas as que quiseres!
- Como se chama este mundo e que ilha é esta?
- O nome do mundo, não te podemos dizer, mas estás na Ilha dos Seguidores do Rasto do Sol, no Arquipélago do Ocaso. O nosso mundo, como perceberás um dia, acompanha o rasto do Sol, por isso recebemos dele esta luz tão generosa e plena de conhecimento. Nunca há noite nem manhã, mas sempre o eterno pôr-do-sol.
- Então não sabem em que tempo, vivem! Não tendes datas? Nasceis todos adultos?
- O nosso tempo não é avaliado pelos dias, mas pela nossa experiência e aprendizagem. E não somos assim tão perfeitos! Repara que também precisamos ter um corpo para sustentar e viver! Ele também se desgasta ao longo de cada vida, e precisamos de cuidar dele. Também nos reproduzimos para que a matéria se renove, nascemos e morremos como vós, e também passamos da infância à idade adulta.
- Há outra coisa que me faz muita confusão: A voz! não falais como nós, parece que a vossa voz vos sai directamente do pensamento!...
- Porque desenvolvemos mais essa capacidade! Vós também a tendes, só que preferistes desenvolver a outra que vos obriga a usar o sopro e a boca. Não há magia nenhuma nisso. Vós é que complicastes! Cada povo com a sua língua! Não achas que é mais fácil, falarmos todos a mesma? E repara, usando a linguagem do pensamento é se muito mais preciso e só com muita dificuldade se pode enganar os outros! O pensamento sai mais límpido, sem artifícios! Podemos, se quisermos, afastar as ideias ou impedir que terceiros se interponham, mas não podemos mentir.
- Ah são perfeitos!
- Meu jovem não há perfeição senão na essência divina! Entre Ela e o resto das suas manifestações, há uma imensidão de mundos que representam outros tantos estados de evolução. Além disso, os padrões de exigência são sempre maiores à medida que progredimos. Há mundos inferiores ao teu, mas há muito mais mundos superiores ao nosso!
- O quê? Então o homem não é o único ser criado à semelhança de Deus? Ah se eu dissesse uma coisa dessas na minha terra seria condenado por heresia!
- Quantos o foram! Semelhança não significa igualdade, na verdade todos os seres são semelhantes a Deus porque todos trazem em si a Sua centelha. Deus manifesta-se e reparte-se em todas as formas diversas e simultaneamente!

Todas aquelas emoções tinham-me arrasado! Estava completamente esgotado com o esforço que fizera para acompanhar a conversa e receber os novos conhecimentos, sem dar por isso, encostei a minha cabeça sobre a mesa e adormeci.

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