sábado, 24 de janeiro de 2009

Telmo, o marujo

A justiça de Daniel (2ªparte)

- O que pensas verdadeiramente daqueles que fazem parte da tua família actual?
- Bem…não tenho grande impressão dela… às vezes até parece que não faço parte dela!
- Sim, mas sinceramente, analisa cada um deles.
- O meu pai é muito trabalhador, esquece facilmente as necessidades dos outros, só pensa em acumular riqueza, é um bocado mesquinho e, não tem nunca um gesto de generosidade. Nunca faz nada pelos outros se não obtiver algum ganho com isso.
- O teu pai ainda está num degrau muito abaixo do seu desenvolvimento, não o culpes, ele não aprendeu ainda a importância de outros valores.
- A minha mãe criou-nos, tratou de nós como soube, mas está sempre a reclamar da vida que tem. Julgo que gostaria que nós fossemos famosos, importantes, assim reconheriam o seu trabalho e a sua contribuição na nossa educação. Dedica-se muito a João por causa da sua doença.
- Ela não é muito diferente do teu pai. Espera que tu regresses rico, admira Gil e Henrique porque os sabe ambiciosos, despreza Bernardo por ser humilde e reservado e, espera, mesmo que secretamente, que João morra e a liberte desse fardo.
- Gostava que assim, não fosse, mas acho que estás certo em muitas coisas, tenho pensado nisso algumas vezes, mas achava que estava a ser um pouco duro com os meus pais!
- Mesmo que lhes reconheças os defeitos, não quer dizer que não tenhas uma grande dívida para com eles, afinal o teu projecto de vida nunca seria posto em prática se não nascesses deles. Se calhar se fosses um filho muito amado, não terias ansiado procurar outro caminho! E, os teus irmãos, que pensas deles?
- Bernardo e João são os meus favoritos. Bernardo é forte e manso, obediente e cumpridor. Não tem grandes ambições. Às vezes parece-me um bocado triste mas nunca lhe ouvi uma palavra desagradável. É o braço direito do meu pai, mas ele não reconhece e prefere os meus irmãos, Gil e Henrique. João foi sempre doente, é o que está mais próximo da minha idade mas nunca brinquei com ele. Tem o olhar parado, quase não sai de casa, tem medo de tudo. Mas olha-me nos olhos com ternura, às vezes até parece que me quer dizer qualquer coisa, mas eu não o percebo. Gosto muito dele sem saber porquê, sinto as suas dores no meu peito e não posso fazer nada por ele!
- Quanto a João já te expliquei que a sua doença é uma espécie de cura na sua vida, não tens que ter pena dele, só tens que o amar, mais nada. Bernardo, talvez não seja o mais esperto da família, vê o que vê, e mais nada. É muito terra a terra, como costumam dizer as pessoas no teu mundo, mas é um homem muito generoso, honesto e tranquilo. Talvez numa próxima vida ele vos ultrapasse. E, os outros, já manifestaste a tua pouca simpatia para com eles. Porque razão sentes isso?
- Bom… eles não são exactamente iguais, no entanto, dão-se bem. Não sei explicar bem porque sinto isso em relação a eles, mas Gil, tem uma linguagem feia, tudo nele é malícia, não respeita ninguém, sobretudo as mulheres. Henrique é violento, está sempre pronto para uma boa rixa, parece que já nasceu zangado. E não é só bater, ele sente prazer em magoar. Sofri bastante com ele quando era criança, e João também é muitas vezes uma vítima nas suas mãos. Até com a minha mãe é bruto.
Sabes, Hugo, apesar de reconhecer que a minha família não é aquilo que eu desejava, custa-me falar dela assim, é a única família que tenho!
- É bom que tenhas esses sentimentos. Mas enganas-te numa coisa, não é a única família, é a tua família actual, esta é mais uma que tiveste.
- Como assim?
- Já tiveste outras famílias em vidas passadas, a todas deste um pouco de ti, criaste com elas laços de amor, hoje porém, a tua família é a humanidade inteira, tens que aprender que não devemos amar só o que é nosso, mas o que é de todos.
- Ai! Hugo, receio que não entenda tudo o que me estás a dizer? Sinto uma confusão enorme na minha cabeça!
- Eu sei, pequeno, mas a nossa conversa entrou em ti como semente, e ela, germinará dentro de ti. No dia em que desabroche, terás o conhecimento inteiro sobre ela.
-Só mais um esclarecimento: quando falas em vidas, fico curioso, afinal quantas vidas temos nós?
- Uma só, revestida de infinitas formas. Não há limites, e o seu número não é mensurável.
- Não?
- Não. O mais importante é o que vives em cada uma delas, o que aprendes com elas, como te transformas e aperfeiçoas ao longo da tua única vida!
- Pensei que ia ficar esclarecido! Mas acho que fiquei ainda com mais dúvidas!
- Óptimo! São as dúvidas que nos fazem procurar respostas. E por isso aprender! Estás cansado, não estás?
- Estou, mas não te zangues comigo!
- Claro que não, compreendo. Está na altura de repousares, talvez no jardim encontres um lugar aprazível que te ajude a sossegar o espírito e a organizar as ideias.
Daniel despediu-se de mim e eu desci até ao jardim como ele me recomendara, durante o percurso ia pensando como era interessante haver uma justiça que não era exercida pela força, mas feita através da razão e dos sentimentos, que em vez de castigar, reabilitava os homens sem os derrubar nem os atirar para um inferno em chamas. Acho que nesse dia fiquei um pouco mais sábio, afinal, não era o tempo que me fazia crescer, era apenas uma forma nova de ver as coisas.

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